Meu Captiveiro entre os Selvagens do Brasil (2ª edição)/Capítulo 28

CAPITULO XXVIII
De como me levaram ao grande
Chefe Cunhambebe

Alguns dias depois levaram-me para outra taba, Ariariba (lugar das ostras), onde assistia o chefe supremo da nação tupinambá, Cunhambebe. Havia lá uma grande festa na qual queriam exhibir-me.

Ao approximar-me da taba ouvi grande rumor de cantos e trombetas, e defronte das cabanas divisei quinze cabeças espetadas. Eram cabeças de inimigos, maracajás, que haviam sido devorados.

Apavorei-me e disse commigo: assim me farão elles á minha!

Quando entravamos na taba um dos meus guardas avançou e gritou com voz forte:

— Aqui trago o escravo, o portuguez!

E falou muito mais coisas, conduzindo-me até o sitio onde estava assentado o morubichaba-açú, bebendo com outros e já meio embriagado. Olharam-me, desconfiados, e disseram:

— Vieste como inimigo?

Respondi:

— Vim, mas não sou vosso inimigo.

Deram-me então de beber.

Eu já muito ouvira falar de Cunhambebe, que devia ser um grande homem lá entre elles. Dirigi-me ao selvagem que pelo apparato parecia ser tal chefe e falei na sua lingua:

— E's tu Cunhambebe? Vives tu ainda?

— Sim, respondeu o cacique; vivo ainda.

Eu continuei:

— Já ouvi falar muito de ti e sei que és um homem valente.

O morubichaba ergueu-se cheio de orgulho e poz-se a passear na minha frente. Cunhambebe tinha uma grande pedra esmeraldina engastada nos labios, e ao pescoço um collar de conchas brancas. de mais de seis braças de comprimento. Foi esse ornato que m'o designou como o chefe.

Cunhambebe tornou a sentar-se e perguntou-me o que planejavam seus inimigos tupininquins e portuguezes — e porque atirava eu contra elles na Bertioga.

Respondi que os portuguezes me mandaram para o forte e me obrigavam a atirar.

O morubichaba redarguiu que tambem eu era portuguez, como lhe dissera "seu filho" o francez. visto como não entendia a lingua dos francezes.

— Sim, é verdade; estive muito tempo fóra da terra dos francezes e esqueci a lingua.

Cunhambebe disse então que já tinha capturado e comido cinco portuguezes, e que todos mentiram.

Comprehendi que só me restava recommendar minh'alma a Deus, pois tinha de perecer.

Cunhambebe continuou, perguntando o que os portuguezes diziam de si e se o temiam.

— Sim falam muito de ti e das guerras que tu lhes costumas fazer, e porisso fortificam melhor a Bertioca.

— Hei de caçal-os como caçaram a ti no matto, redarguiu o chefe.

— Teus verdadeiros inimigos, accrescentei, são os tupiniquins, que preparam vinte e cinco canôas para atacar tua gente.

Muito mais coisas perguntou-me e lhe respondi, sempre ouvidos pelos presentes alli de pé.

Cunhambebe regosijava-se dos muitos portuguezes e selvagens inimigos que havia morto.

Emquanto isso se passava, acabou-se o cauim da cabana e os indios mudaram-se para outra, pondo fim á minha entrevista com o grande chefe.

Nas outras cabanas continuaram as zombarias; o filho do morubichaba-açú atou-me as pernas em tres pontos, obrigando-me a pular de pés juntos. Riam-se e diziam:

— Alli está a nossa comida pulando!

Perguntei ao meu dono se me iam matar na quelle dia e soube que não, mas era de costume tratar assim aos prisioneiros. Desataram-me depois as cordas das pernas e rodearam-me, beliscando-me e escolhendo pedaços. Um dizia que o couro da cabeça era delle; outro, que a barriga da perna lhe cabia.

Em seguida obrigaram-me a cantar; obedeci á intimação entoando versos religiosos que elles quizeram saber o que significavam.

— São os versos cantados ao meu Deus.

— Teu deus é tipoty (excremento).

Taes palavras me magoaram, e puz-me a dizer commigo: ó tu, Deus bondoso, como podes isto soffrer com pasciencia?

No dia seguinte Cunhambebe recommendou aos meus guardas que tomassem muito cuidado commigo.

D'alli conduziram-me de novo para Ubatuba; ao partir gritaram atráz de mim que breve la appareceriam para me devorar. Mas o meu dono me consolou dizendo que tão cedo tal não aconteceria.

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.