Meu Captiveiro entre os Selvagens do Brasil (2ª edição)/Capítulo 34
á taba doente
Alguns dias depois regressaram os doentes. Fui chamado para a cabana delles, onde Nhaepepô declarou que eu sabia de tudo, pois dissera na noite da conferencia "que a lua olhava zangada para sua cabana".
Ao ouvir taes palavras lembrei-me do incidente e senti uma grande alegria, imaginando que Deus estava commigo. Aproveitei-me do caso e confirmei-o naquella crença. Era bem verdade a zanga da lua, e por quererem comer-me sem que eu fosse inimigo lhes vinha toda a desgraça.
Depois reflecti que, se sarassem, matavam-me como se nada houvera, e, se morressem, os outros me mantariam para previnir novas desgraças. E entreguei-me á vontade de Deus.
Nhaepepô pediu-me que os curasse. Andei então á roda delles, impondo-lhe as mãos de modo a convencel-os de que os estava curando.
Deus não quiz que tal succedesse; logo depois morreu uma creança; em seguida a mãe de Nhaepepô e mais uma velha, que se incumbira de fabricar os potes de barro necessarios ao fabrico do cauim destinado á minha “festa”.
Não ficou ahi a hecatombe; alguns dias mais tarde falleceu outra creança e por fim o irmão que primeiro viera de Mambucaba com a noticia da desgraça.
Nhaepepô cahiu em grande tristeza deante daquelle destroço da sua familia e receiando ir-se tambem com o resto, pediu-me de novo que intercedesse pela sua vida perante meu Deus. Consolei-o como pude e affirmei que nada soffreria elle, caso desistisse de me devorar depois de curado.
O morubichaba concordou e prometteu poupar-me, prohibindo aos demais da cabana que me maltratassem ou me ameaçassem de morte.
Continuou doente por algum tempo ainda; por fim sararam, elle e uma de suas mulheres. Havia perdido oito pessoas das suas relações, todas muito más para commigo.
O morubichaba de outra cabana, Guaratinga-açú, sonhara que eu lhe tinha apparecido em sonhos dizendo que elle ia morrer. De manhã cedo veio procurar-me e contou o caso. Expliquei-lhe que nada lhe succederia se desistisse de me comer e desaconselhasse aos demais de o fazerem. Guaratiga-açú accordou nisto, declarando que se os meus apresadores me não matassem não me faria elle nenhum mal, e que em qualquer caso não comeria da minha carne.
Do mesmo modo sonhou commigo um terceiro morubichaba de outra cabana, Karimã-kui (farinha de carimã). Chamou-me á sua choça, deu-me de comer e queixou-se de que numa expedição guerreira havia capturado e morto um portuguez, do qual comera tanto que o peito ainda lhe doia disso; e, pois, resolvera desd'ahi não mais devorar ninguem. Sonhara commigo sonhos horriveis que lhe prediziam a morte.
Consolei-o, como o fizera ao outro, affirmando que não correria perigo nenhum caso disistisse de comer gente.
Tambem as megeras de todas as cabanas, as quaes tanto me haviam maltratado com beliscões, pancadas e ameaças, começaram a dizer-me:
— Chê-raiva (meu filho), não nos deixe morrer. Se te tratámos mal é que te julgavamos portuguez, aos quaes detestamos. Já comemos varios portuguezes, mas o Deus delles não se zangava como o teu, e porisso vemos que não és da mesma raça.
E deixaram-me em paz.
Logo que um dos meus donos ficou bom, não mais se falou em comer-me; entretanto guardavam-me como d'antes e não me deixavam andar só.
Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.
Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.