Meu Captiveiro entre os Selvagens do Brasil (2ª edição)/Capítulo 38

CAPITULO XXXVIII
De como um outro navio foi mandado
á minha procura

No quinto mez da minha escravidão appareceu no porto um outro navio vindo de S. Vicente.

Os portuguezes têm o costume de abordar a terra dos seus inimigos a negocio. Permutam facas, anzóes, etc., por farinha de mandioca, de que muito necessitam nas plantações de canna lavrada por escravos. Quando o navio chega, uma canôa com dois selvagens se approxima delle, emquanto os demais ficam de longe com as mercadorias. Ajustado o preço, effectua-se a entrega com as maiores precauções de lado a lado. E findo o negocio os selvagens avançam contra o navio disparando-lhe suas flechas.

O navio em questão entrou no porto e deu o tiro de aviso. Os selvagens chegaram á fala, e como os de bordo perguntassem de mim, responderam que eu estava vivo.

Pediram, então, os portuguezes, para ver-me, dizendo que um meu irmão, francez, estava a bordo com uma caixa de mercadorias que me trouxera.

De facto, no navio de S. Vicente havia um francez, de nome Claude Mirande, meu conhecido e camarada de outróra. Os selvagens voltaram do navio com essa noticia, e eu pedi-lhes que me deixassem falar de longe com o francez meu irmão.

— Quero, accrescentei, pedir-lhe que conte a meu pae a minha historia e que me volte a buscar trazendo muitas mercadorias.

Os selvagens accederam nisto, mas não queriam que os portuguezes me falassem. Andavam a organisar uma expedição contra a Bertioga, para o mez de Agosto, e como eu lhes conhecia os planos receiavam que os trahisse.

— Nada temam, disse-lhes eu; os portuguezes não comprehendem a minha lingua, nem a do meu irmão, que é a mesma.

Levaram-me então á distancia de um tiro de funda, nú como eu vivia entre elles. Chamei os do navio e gritei-lhes:

— Deus seja comvosco, irmãos! Que só um fale commigo e não deixe perceber que não sou francez.

Adeantou-se o biscainho João Sanchez, meu conhecido, e disse-me:

— Meu querido irmão, por vossa causa viemos cá, não sabendo se estaveis vivo ou morto porque o primeiro navio não levou noticias vossas. O capitão Braz Cubas, de Santos, ordenou que investigassemos se estaveis vivo, para eu resgatar-vos, ou trocar-vos por alguns delles, que deviamos capturar.

Respondi:

— Que Deus vos recompense eternamente, pois vivo em grande afflicção e não sei o que os indios pretendem de mim. Só sei que já me teriam devorado se Deus singunlarmente não o houvesse impedido.

Continuei dizendo que os selvagens não me venderiam e que pelo amor de Deus não os deixassem perceber que eu não era francez; pedi ainda algumas facas e anzóes.

Os de bordo concederam-me o que lhes pedi e um indio foi de canôa ao barco buscar esses objectos.

Depois, como os selvagens não queriam que eu por mais tempo falasse com os portuguezes, avisei-os de que tomassem cautellas, porque iam os indios atacar a Bertioga. Os portuguezes responderam que tambem os tupininquíns estavam em aprestos para virem atacar a taba de Ubatuba, e pois me não devia eu desanimar; Deus havia de levar tudo a melhor, já que me não podiam elles no momento acudir.

— Sim, dise eu por despedida; porque é melhor que Deus me castigue nesta vida do que na outra; e rogae a elle para que me ajude nesta miseria.

Queriam os portuguezes falar ainda, mas os selvagens se oppuzeram e levaram-me dalli para a taba.

Tomei as facas e anzóes recebido e os distribui entre elles, dizendo:

— Tudo isto meu irmão francez me trouxe.

Os selvagens logo indagaram do assumpto da minha conversa.

Respondi:

— Recommendei ao meu irmão que fugisse dos portuguezes e voltasse para nossa terra, e de lá trouxesse navios carregados de mercadorias para vos presentear, visto que sois bons para commigo e me trataes bem.

Esta fala muito agradou aos indios, os quaes murmuraram entre si:

— Certamente que elle é francez; vamos agora tratal-o melhor.

Continuei a confirmal-o nisso e a mantel-os na esperança de que um barco viria buscar-me. Depois desse dia começaram a levar-me ao matto, ás suas roças, obrigando-me a ajudal-os no serviço.

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.