Meu Captiveiro entre os Selvagens do Brasil (2ª edição)/Capítulo 39

CAPITULO XXXIX
De como um outro prisioneiro sempre
me calumniava e do que lhe succedeu

Havia na taba um outro prisioneiro de raça carijó, que fôra escravisado pelos portuguezes e conseguira fugir. Aos que os tupinambás assim tomavam não matavam, a não ser em virtude de algum crime especial; mas os conservavam como escravos de trabalho.

Este carijó contou que estivera tres annos com os portuguezes e lá me conhecera atirando contra os tupinanmbás por occasião das guerras. E como annos antes os portuguezes haviam morto a um morubichaba com um tiro, dizia o carijó que o tiro fôra meu, e, pois deviam matar-me.

Esse escravo mentia em tudo, porque estava entre os tupinambás havia tres annos e eu só tinha um anno de Brasil.

Succedeu, porém, que no sexto mez do meu captiveiro o carijó enfermou; meu dono, Ipirúguaçú, que era tambem o senhor desse escravo, pediu-me que o curasse, pois lhe fazia falta no serviço. Fui de parecer que o doente não se curaria, e Ipirúguaçú resolveu dal-o a um amigo, para que o matasse e ganhasse mais um nome.

Os indios costumam sangrar os doentes nas veias, com um dente de paca afiadissimo. Deram-me um destes dentes e eu procurei sangrar o carijó; mas o intrumento estava cégo e nada consegui. Os indios, que me rodeavam, indagaram o que eu achava do doente, e ao dizer-lhes que não poderia sarar replicaram:

— Sim, elle quer morrer e nós vamos matal-o antes disso.

— Não! Não o façam, que elle póde levantar-se ainda acudi eu.

De nada valeram estas palavras; levaram-no para de fronte á cabana de Guaratinga-açú, a braços, porque o doente não dava accordo de si.

O indio, a quem Ipirú-guaçú havia presenteado com esse escravo, approximou-se de tacape em punho e deu-lhe tamanho golpe na cabeça que os miolos saltaram.

Deixaram-no alli e começaram a preparar-se para comel-o.

Intervim dizendo que não o fizessem, pois era um homem doente, cuja carne lhes podia fazer mal. Tinha um só olho o carijó e estava tão feia a sua cabeça, por effeito da doença, que mettia horror.

Os indios ficaram vacillantes, sem saber o que fazer, até que um sahiu da sua cabana, mandou que as mulheres accendessem fogo ao pé do morto e lhe decepou a cabeça, lançando-a fóra.

Em seguida chammuscou o cadaver e o esfolou. Depois o esquartejou e dividiu a carne pelos circumstantes, com excepção dos intestinos e da cabeça, que já não estava no pescoço.

Percorri as varias cabanas. Numa, assavam os pés: noutra, as mãos; noutra, as pernas.

Aproveitei-me do ensejo para tirar partido do incidente, e lembrei-lhes que o carijó vivera tres annos de perfeita saude naquella taba, mas como me calumniara a mim, affirmando que eu havia morto alguns tupinambás, meu Deus se zangára e o fizera adoecer e acabar matado e devorado.

— E assim procederá meu Deus para com todos os que me fizeram mal, conclui eu, alimentando dessa forma o medo que já meu Deus inspirava aos selvagens.

Emquanto se davam estes factos ia-se approximando a época da expedição contra a Bertioga. Eu esperava que quando sahissem para essa incursão me deixassem na taba com as mulheres, o que me poderia proporcionar bôa opportunidade para a fuga.

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.