I

COLLEGIO E ACADEMIA

 

Não preciso remontar ao collegio, ainda que alli, provavelmente, tenha sido lançada no subsolo da minha razão a camada que lhe serviu de alicerce: o fundo hereditario do meu liberalismo. Meu pae nessa epocha (1864-1865) tinha terminado a sua passagem do campo conservador para o liberal, marcha inconscientemente começada desde a Conciliação (1853–57), consciente, pensada desde o discurso que ficou chamado do uti possidetis (1862). Houve diversas migrações em nossa historia politica do lado liberal para o conservador. Os homens da Regencia, que entraram na vida publica ou subiram ao poder representando a idea de revolução, foram com a madureza dos annos restringindo as suas aspirações, aproveitando a experiencia. estreitando-se no círculo de pequenas ambições e no desejo de simples aperfeiçoamento relativo, que constitui o espírito conservador. O senador Nabuco, porém, foi quem iniciou, guiou, arrastou um grande movimento em sentido contrário, do campo conservador para o liberal, da velha experiência para a nova experimentação, das regras hieráticas de governo para as aspirações ainda informes da democracia. Ele é quem encarnará em nossa história – entre a antiga “oligarquia” e a República, que deve sair dela no dia em que a escravidão se esboroar – o espírito de reforma. Ele é o nosso verdadeiro Lutero político, o fundador do livre exame no seio dos partidos, o reformador da velha igreja saquarema, que, com os Torres, os Paulinos, os Eusébios, dominava tudo no país. Zacarias, Saraiva, Sinimbu, com os seus grandes e pequenos satélites, Olinda mesmo, em sua órbita independente, não fazem senão escapar-se pela tangente que ele traçou com a sua iniciativa intelectual, a qual parece um fenômeno da mesma ordem que o profetismo e que, por isso mesmo, só lhe consentia ter em política um papel quase imparcial: o de oráculo.

No colégio eu ainda não compreendia nada disto, mas sabia o liberalismo de meu pai, e nesse tempo o que ele dissesse ou pensasse era um dogma para mim: eu não tinha sido invadido pelo espírito de rebeldia e independência, por essa petulância da mocidade que me fará mais tarde, na Academia, contrapor às vezes o meu modo de pensar ao dele, em lugar de apanhar religiosamente, como eu faria hoje, cada palavra sua.

Era natural que eu seguisse aos quinze e dezesseis anos a política de meu pai, mesmo porque essa devoção era acompanhada de um certo prazer, de uma satisfação de orgulho. Entre as sensações da infância que se me gravaram no espírito, lembra-me um dia em que, depois de ler o seu Jornal, o inspetor do nosso ano me chamou à mesa – era um velho ator do teatro S. Pedro, que vivia da lembrança dos seus pequenos papéis e do culto de João Caetano –, para dizer-me com grande mistério que meu pai tinha sido chamado a S. Cristóvão para organizar o gabinete. Filho de presidente do Conselho foi para mim uma vibração de amor-próprio mais forte do que teria sido, imagino, a do primeiro prêmio que o nosso camarada Rodrigues Alves tirava todos os anos. Eu sentia cair sobre mim um reflexo do nome paterno e elevava-me nesse raio: era um começo de ambição política que se insinuava em mim. A atmosfera que eu respirava em casa, desenvolvia naturalmente as minhas primeiras fidelidades à causa liberal. Recordo-me de que nesse tempo tive uma fascinação por Pedro Luís, cuja ode à Polônia, Os Voluntários da Morte, eu sabia de cor. Depois, a questão dos escravos, em 1871, nos separou; mais tarde a nossa camaradagem na Câmara nos tornou a unir. Em casa eu via muito a Tavares Bastos, que me mostrava simpatia, todo o grupo político da época; era para mim estudante um desvanecimento descer e subir a rua do Ouvidor de braço com Teófilo Ottoni; um prazer ir conversar no Diário do Rio com Saldanha Marinho e ouvir Quintino Bocaiúva, que me parecia o jovem Hércules da imprensa e cujo ataque contra Montezuma, a propósito da capitulação de Uruguaiana, me deu a primeira idéia de um polemista destemido.

Na situação em que fui para S. Paulo cursar o primeiro ano da Academia, eu não podia deixar de ser um estudante liberal. Desde o primeiro ano fundei um pequeno jornal para atacar o Ministério Zacarias. Meu pai, que apoiava esse Ministério, escrevia-me que estudasse, me deixasse de jornais e sobretudo de atitudes políticas em que se podia ver, senão uma inspiração, pelo menos uma tolerância da parte dele. Eu, porém, prezava muito a minha independência de jornalista, a minha emancipação de espírito; queria sentir-me livre, julgava-me comprometido perante a minha classe, a academia, e assim iludia, sem pensar desobedecer, o desejo de meu pai, que, provavelmente, não ligava grande importância à minha oposição ao Ministério amigo. Nesse tempo as Cartas de Erasmo, que produziam no país uma revivescência conservadora, me pareciam a obra-prima da literatura política.

As minhas idéias eram, entretanto, uma mistura e uma confusão; havia de tudo em meu espírito. Ávido de impressões novas, fazendo os meus primeiros conhecimentos com os grandes autores, com os livros de prestígio, com idéias livres, tudo o que era brilhante, original, harmonioso, me seduzia e arrebatava por igual. Era o deslumbramento das descobertas contínuas, a eflorescência do espírito: todos os seus galhos cobriam-se espontaneamente de rosas efêmeras.

As palavras de um Crente de Lamennais, a História dos Girondinos de Lamartine, o Mundo Caminha de Pelletan, os Mártires da Liberdade de Esquiros eram os quatro Evangelhos da nossa geração, e o Ashaverus de Quinet o seu Apocalipse. Victor Hugo e Henrique Heine creio que seriam os poetas favoritos. Eu, porém, não tinha (nem tenho), sistematizado, unificado sequer o meu lirismo. Lia de tudo igualmente. O ano de 1866 foi para mim o ano da Revolução Francesa: Lamartine, Thiers, Mignet, Louis Blanc, Quinet, Mirabeau, Vergniaud e os Girondinos, tudo passa sucessivamente pelo meu espírito; a Convenção está nele em sessão permanente. Apesar disso, eu lia também Donoso Cortez e Joseph de Maitre, e até escrevi um pequeno ensaio, com a infalibilidade dos dezessete anos, sobre a Infalibilidade do Papa.

Posso dizer que não tinha idéia alguma, porque tinha todas. Quando entrei para a Academia, levava a minha fé católica virgem; sempre me recordarei do espanto, do desprezo, da comoção com que ouvi pela primeira vez tratar a Virgem Maria em tom libertino; em pouco tempo, porém, não me restava daquela imaginação senão o pó dourado da saudade... Ao catolicismo só vinte e tantos anos mais tarde me será dado voltar por largos circuitos de que ainda um dia, se Deus me der vida, tentarei reconstruir o complicado roteiro. basta-me dizer, por enquanto, que a grande influência literária que experimentei na vida, a embriaguez de espírito mais perfeita que se podia dar, pelo narcótico de um estilo de timbre sem igual em nenhuma literatura, o meu coup de foudre intelectual, foi a influência de Renan.

Politicamente o fundo liberal ficou intato, sem mistura sequer de tradicionalismo. Seria difícil colher-se em todo o meu pensamento um resquício de tendência conservadora. Liberal, eu o era de uma só peça; o meu peso, a minha densidade democrática era máxima. Nesse tempo dominava a Academia, com a sedução da sua palavra e de sua figura, o segundo José Bonifácio. Os leaders da Academia, Ferreira de Meneses, que, apesar de formado, continuava acadêmico e chefe literário da mocidade, Castro Alves, o poeta republicano de Gonzaga, bebiam-lhes as palavras, absorviam-se nele em êxtase. Rui Barbosa era dessa geração; mas Rui Barbosa, hoje a mais poderosa máquina cerebral do nosso país, que pelo número das rotações e força de vibração faz lembrar os maquinismos que impelem através das ondas os grandes “transatlânticos”, levou vinte anos a tirar do minério do seu talento, a endurecer e temperar, o aço admirável que é agora o seu estilo.

As minhas idéias, porém, flutuavam, no meio das atrações diferentes desse período, entre a monarquia e a república, sem preferência republicana, talvez somente por causa do fundo hereditário de que falei e da fácil carreira política que tudo me augurava. Um livro sedutor e interessante – é a minha impressão da época – o 19 de Janeiro, de Emílio Ollivier, tinha-me deixado nesse estado de hesitação e de indiferença entre as duas formas de governo, e a France Nouvelle, de Prévost-Paradol, que eu li com verdadeiro encanto, não conseguiu, apesar de todo o seu arrastamento, fixar a minha inclinação do lado da monarquia parlamentar. O que me decidiu foi a Constituição Inglesa de Bagehot. Devo a esse pequeno volume que hoje não será talvez lido por ninguém em nosso país, a minha fixação monárquica inalterável; tirei dele, transformando-a a meu modo, a ferramenta toda com que trabalhei em política, excluindo somente a obra da abolição, cujo stock de idéias teve para mim outra procedência.