Junto a uma velha figueira, que ficava a dois passos da caverna, onde a estrada, bifurcando-se, dava uma sinuosa trilha para os montes e um caminho direito para os campos, sentara-se Maria com Jesus ao colo, gozando o frescor da manhã serena e vendo os pombos revoarem, com um rumoroso ruflo d’asas, passando, repassando em torno.
José descera à fonte.
Zagalejos passavam soprando frautas e o sol, acendendo as camarinhas do orvalho, fazia da paisagem uma extensa cintilação.
A Virgem entretinha-se, enlevada no pequenito que acompanhava a ronda alígera das aves, quando uma pálida mulher, andrajosa e descalça, os cabelos desgrenhados, os olhos fundos, a caveira estalando a pele seca, apareceu no caminho, tão lenta e tão alto e angustioso arquejo que foi por ele que Maria sentiu a aproximação da infeliz.
Era ainda moça, conservava na miséria um resto de emurchecida beleza.
Os olhos negros ardiam febris como dois carvões em que faiscassem fagulhas; as rosas das faces haviam amarelecido, os lábios, ressecados e lívidos, estalavam em fendas como golpes.
Trazia nos braços, envolta em grosseiras faixas, uma criança que vagia.
Diante da Virgem deteve-se. Arrasaram-se-lhe os olhos d’água e, parada, tremendo, estendeu a mão magra a pedir.
Maria encarou-a compadecida e, como não possuísse moeda, não respondeu à infeliz, alanceada de pena. E a mulher soluçou:
- Não é por mim que peço, é por ele. Tenho-o, desde ontem, ao seio, bebendo sangue – não é o peito que lhe dou, mas uma ferida. A boca do pobrezinho está da cor da anêmona.
Não lamentaria a dor com que a sua fome me apunhala se o visse saciado, mas o sangue não farta e, ainda que eu não lhe recuse o que me resta de vida, sinto-o enfraquecer a mais e mais.
Já não chora, nem abre os olhos, começa a agonizar, como a planta que o sol mirra na terra adusta.
Dai-me o bastante para que ele viva um dia, só enquanto eu viva. Que ele morra depois de mim para que eu o receba na morte.
Maria fez lugar junto à figueira para a enferma e, entregando-lhe Jesus, tomou o pequenino moribundo. Pôs-lhe na boca o peito túrgido e logo o sentiu sugar avidamente.
A mísera mulher embalava o divino infante, apertava-o ao colo com medo de que chorasse e interrompesse a esmola que seu filho recebia.
Tão enlevada estava vendo o seu penhor mamar que nem sentiu que os seus peitos, junto aos quais Jesus agasalhava-se, enchiam-se, apojavam-se. E toda ela refazia-se: a carne renovava-se-lhe robusta, voltava-lhe a cor ao rosto.
Satisfeita, a criança adormeceu ao colo de Maria e da boquinha entreaberta escorreu, rolou na grama uma gota de leite, caindo, como uma pérola, na raiz da figueira.
As duas mães olharam-se caladas porque as crianças dormiam. Trocaram-nas tomando, cada qual, a que lhe pertencia e a miserável, agradecendo a esmola, foi-se por entre as margaridas do caminho.
Perdeu-se no meio das árvores, reapareceu no lançante do cerro.
De repente, já no cimo, envolta em luz, estacou derreando a cabeça como para olhar o céu e súbito, lançando os braços, tombou sobre os joelhos.
Dera, sem dúvida, pelos peitos cheios.
Maria, para segui-la com o olhar, levantou-se e, como se apoiasse à figueira, uma folha caiu. Sentindo os dedos úmidos mirou-os – estavam molhados de leite.
De onde proviria? da fina haste da figueira de onde se destacara a folha.
A árvore sorvera a gota de leite que rolara da boca do pobrezinho e sempre a verte mostrando-a aos incrédulos, mal se lhe arranca uma folha ou se lhe golpeia um galho, como uma prova da misericórdia suave.