XI
DA "ESTRADA ALEGRE"
As sahidas de gambito sempre me atrapalharam, de modo que no quarto lance já Mr. Slang tinha o lucro de um peão. O meio de equilibrar o jogo era fazel-o falar e, assim, distrair-se. Traição? Que importa! Era Mr. Slang um filho da perfida Albion e pois eu vingaria uma parte infinitesimal das perfidias feitas ao mundo pelo molosso britannico.
— Acha então, disse-lhe eu, que a nossa burocracia já paralysou metade do paiz?
O meu inglez largou do peão que tinha comido e accendeu o cachimbo.
— Sim, affirmou. Está já roendo o osso. Ha tempos fiz um passeio a Minas e vi lá, numa velha fazenda, um quadro contristador. Era um cavallo aposentado do serviço e solto no campo para que morresse em paz. Sua magreza era tamanha que me despertou a curiosidade. Approximei-me... Não era mais um cavallo. Era uma piolheira sobre quatro patas. Não teria talvez um millimetro de pelle livre de parasitas — e parasitas bem magros, porque o sangue já se fazia pouco para tantos. Puz-me a reflectir sobre a estupidez do dono do cavallo e sobre a estupidez maior dos parasitas. Aquelle multiplicar-se excessivo iria matar o cavallo, e com elle a piolheira. O Brasil é isso, meu caro, pelo menos no norte...
Horrorizei-me com a imagem de Mr. Slang e protestei:
— Mr. Slang exagera evidentemente. O Brasil não está assim tão parasitado...
— Queria mais? Não ha serviço publico que não empregue cinco homens, pessimamente pagos, para fazer, malfeitissimamente, a tarefa que um só, bem pago, faria a contento. Essa é a formula da burocracia brasileira, da qual decorrem tres males: prejuizo do serviço publico, miseria do funccionalismo e roubo de actividade á producção privada.
— Ha um quarto mal, adverti. A corrupção...
— Simples capitulo da miseria. Quem ganha o insufficiente para viver não póde resistir a tentações. Note que eu não faço ao caracter brasileiro o máo juizo commum. Acho-o até de um fundo mais honesto que o de muitos outros povos. As circumstancias, porém, impellem o brasileiro á deshonestidade.
— A miseria é má conselheira...
— Má e engenhosa. Os artificios que aqui vejo empregados pela burocracia para augmentar seus rendimentos são habilissimos. Calculo que em cada orçamento da Republica 200.000 contos se vão em commissões. O governo paga em tudo quanto compra 20 % a mais sem que o perceba — e a coisa é feita de modo tão habil que governo nenhum tem meios de impedir o latrocinio.
— E si fosse só isso! exclamei pensando nas gorgetas chamadas de "lubrificação". Nada corre sem propinas, Mr. Slang!...
— E' verdade. O publico paga duas vezes. Já tive negocios em varios ministerios e sei que sem azeitar as rodas a machina não gyra. Ha nisto dois males: a demora inevitavel no andamento dos negocios do Estado e o encarecimento dos serviços. Tudo porque a miseria da burocracia fórça-a a transformar-se em camorra para viver.
Emquanto Mr. Slang dissertava, eu estudava a situação do jogo, o que me permittiu um lance feliz. Mr. Slang esqueceu a burocracia e remergulhou no xadrez. Minutos depois vi-me na necessidade de distrahil-o de novo.
— E a Central, Mr. Slang? interpellei-o de surpresa.
Mr. Slang sempre achou uma graça infinita na nossa via-ferrea. Chegou até a escrever para o "Scribner's Magazine" um "sketch" humoristico cujo thema era a Central. Sua pachorra o levava a fazer viagens nessa linha apenas pela viagem, achando-as mais divertidas que qualquer outro espectaculo humano. Sempre que nas nossas partidas de xadrez fiz vir á baila a Central, vi Mr. Slang sacrificar o seu jogo, e por isso tenho, cá no coração, uma grata sympathia pela nossa pittoresca via-ferrea. Fez-me ganhar, no minimo, umas dez partidas mal paradas...
— A Central! exclamou elle. Da ultima vez que viajei nella, quando o comboio parou na Barra, desci, a espichar as pernas. E estava nisso quando cruzou por mim um preto de boné, que vinha dando pancadas de martello no eixo dos carros. Essa operação fazem-na elles, religiosamente, sempre que pára um comboio nas estações. Perguntei-lhe:
— Amigo, porque você espanca assim os eixos?
Com a testa a borbulhar de suor, olhou-me o preto com esse ar hostil que tem o nacional da plebe para com o estrangeiro bem posto, e disse, de máo modo:
— Sei lá! Ha dezeseis annos que estou neste emprego e ninguem nunca me fez semelhante pergunta. Bato porque meu serviço é bater, hom'essa!...
E Mr. Slang riu-se gostosamente.
— Esse funccionario, continuou elle, dá-me a perfeita idéa da burocracia brasileira. Ella faz uma série infinita de coisas sem a menor idéa do "para que". O "sei lá" negro do martello é a resposta que todos terão para perguntas identicas, relativas ao serviço de cada um. Não ha finalidade nos nossos serviços publicos, a não ser dar emprego ao maior numero possivel de parasitas. Bem publico, utilidade — nada disso tem que ver com a burocracia.
— E acha que deva o governo fazer, Mr. Slang? Qual o meio de corrigir-se isso?
Mr. Slang estava nesse dia de muito bom humor. Assim foi que me respondeu de um modo desnorteante:
— Corrigir, para que? Si é um elemento do pittoresco local, para que destruil-o? Todos os povos possuem os seus caracteristicos. Na Allemanha podemos observar a organização levada a extremos inconcebiveis. Nos Estados Unidos vemos a efficiencia como a mira de tudo. Modos de ser de cada povo. Si o Brasil prefere o pittoresco, respeitemos-lhe a preferencia...
— Esse ponto de vista, exclamei abespinhado, será o de um estrangeiro que não se liga de amor a este paiz. Um nacional nunca poderá encampal-o.
— Tem razão o meu caro amigo. Confesso que moro no Brasil apenas levado pelo meu amor ao pittoresco. As coisas brasileiras divertem-me tanto... Não as quereria na Inglaterra, está claro. Mas aqui, onde funcciono de espectador apenas, confesso não desejar mudanças. Gosto muito de Mark Twain e possuo toda a sua obra. Pois creia que a Central, por exemplo, me diverte mais que "The Stolen White Elephant", a obra prima, para mim, de Samuel Clemens. Ora, o Brasil não é tão rico em coisas originaes para que destrua, reorganizando em moldes civilizados, a sua ultra-pittoresca estrada de ferro...
— Mas o paiz paga muito caro esse pittoresco, Mr. Slang!
— Não se gabam tanto vocês das immensas riquezas do Brasil? Que é pois que se empreguem parte dessas riquezas na manutenção de um pittoresco inedito no mundo?
— Que crueldade! As vidas que a má direcção da via-ferrea custa ao paiz, os prejuizos á producção, nada disso conta para Mr. Slang...
Faz parte do preço do espectaculo. Mas o espectaculo vale! E o governo novo me terá contra si, caso mexa naquillo. Uma das ultimas scenas do espectaculo "E. F. C. B.", a "crise do carvão", que conheço por dentro minuciosamente, é tão curiosa, é tão engraçada que não resisti a mandar notas a respeito ao meu velho amigo Bernard Shaw, do qual justamente hontem recebi resposta.
Mr. Slang tirou do bolso uma carta em inglez, assignada pelo mordaz petroleiro, hoje premio Nobel. Dizia, entre outras coisas:
"Dá uma opereta maravilhosa! Já escrevi ao Franz Lehar, propondo a musicagem do "sketch" que compuz com as tuas notas. Si elle acceitar, teremos um "numero" de sensação.
— Que tristeza, Mr. Slang! exclamei sinceramente compungido no meu patriotismo.
— Tristeza? Vae ser de alegria pura essa opereta. Até no nome — "Estrada Alegre"... concluiu elle, cachimbando com satanico deleite.
Nesse dia vinguei-me do inglez da Tijuca dando-lhe um cheque mate de surpresa, daquelles que desapontam até aos indesapontaveis filhos da perfida Albion.
Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.
Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.