XII
DOS DIREITOS IMMORAES
O meu cheque-mate era dos que irritam 0 commum dos jogadores. Mr. Slang, porém, não se irritava nunca. O equilibrio dos seus nervos jámais se rompia, excepto para manifestações hilariantes quando o thema era a Central. Começámos nova partida e. antes de sair com o peão da dama, disse-lhe eu:
— E' muito facil criticar a nossa pobre Caveira de Burro. Mas ninguem aponta o meio pratico de endireital-a.
Mr. Slang sorriu de novo. A idéa da "Central" fazia-lhe cocegas incoerciveis..
— Como não? disse. Dêem-lhe um objectivo technico, e ella se regenerará.
— O objectivo de todas as estradas sempre foi realizar transporte.
— Devia ser esse o objectivo de todas as estradas; no entanto, o mundo está cheio de excepções. Umas teem por objecto dar ensejo a jogo de titulos na bolsa. Outras visam apenas dar dividendos. Pouquissimas teem o transporte rapido, barato e seguro como o fim supremo da sua existencia. A nossa Central parece-me que traz como objectivo divertir-nos...
— Não é tanto assim, Mr. Slang. A Central presta muitos serviços e, embora não seja um modelo, como a Paulista ou a S. Paulo Railway, faz o que póde.
— E' pouco fazer o que póde. A uma estrada como essa o que cumpre é fazer o que deve. Conhece a historia da Detroit-Toledo & Ironton?
— Não.
— Pois vale por historia muito illustrativa. Foi uma especie de "Central" dos Estados Unidos. Nunca deu lucro, arrecadava 100 e gastava 150, servindo pessimamente ao publico. Quebrou diversas vezes, foi reorganizada outras tantas e por fim tornou-se a armadilha financeira mais duvidosa da America. Chegou a cair em abandono. Estava nesse miseravel estado quando Henry Ford a adquiriu.
Mr. Slang interrompeu-se nesse ponto para responder com jogo identico á minha sahida de peão da dama. Depois continuou:
— Comprou-a por 5.000.000 de dollares e a primeira coisa que fez foi mandar varrel-a. Ford é um grande inimigo do lixo. Quando entra na posse de qualquer fabrica ou mina, primeiro a varre — para ver claro, diz, e ainda porque considera a sujeira um luxo muito caro.
Depois de varrida a estrada, elevou fortemente o salario dos homens. Em troca exigiu de cada um oito horas de trabalho.
— Essas oito horas já davam elles antes, observei.
— Engano. Oito horas de trabalho para Henry Ford não querem dizer oito horas de acto de presença no serviço. Querem dizer oito horas de trabalho real e continuo.
— Isso me cheira a absurdo, disse eu. O trabalho numa estrada é forçosamente subdividido. Um machinista, por exemplo, que chega ao fim da sua viagem antes de completar as oito horas, tem de vadiar as restantes, a não ser que ganhe por hora de trabalho real, o que tornará incerto o seu salario.
— Assim é, de facto, no mundo inteiro. salvo na Ironton, replicou Mr. Slang. E foi o abandono desse regimen que transformou essa "Central" na mais rendosa e perfeita estrada de ferro americana.
— Como?
— Chega o machinista ao termo da sua viagem e não tem mais locomotiva a conduzir? "All right"! Vae completar suas oito horas com o serviço que houver. Vae varrer a estação, vae capinar o leito da estrada, vae arrumar o lastro...
— Mas isso não é trabalho de machinista! exclamei.
— Eis o segredo de Henry Ford, explicou Mr. Slang. Não ha categorias de trabalho nas suas industrias. Não ha trabalho mais nobre ou menos nobre. Ha trabalho. apenas. Varrer ou desenhar plantas: tudo é trabalho. E como elle paga um salario magnifico em troca de oito horas de trabalho, seja este qual fôr, ninguem se recusa ou escapa de dar realmente oito horas de esforço — e não, como aqui, oito horas de "empaliação".
— De facto, si é assim...
— E' assim, e nisto está o grande segredo desse genial reformador da industria. Um agente de estação, por exemplo, quando não tem serviço de agente, vae varrer, vae trabalhar de pedreiro, de pintor ou de carapina, no reparo do predio da sua estação. Resultado: o trabalho na Ironton passou a render de tal modo que essa estrada poude realizar todos os seus serviços de maneira perfeita e com o emprego de muito menos gente. Antes occupava 2.700 homens para um trafego de 5 milhões de toneladas; hoje emprega 2.300 para um trafego de 10 milhões...
— E dá lucro?
— Deu de lucro, o anno passado, 2 1|2 milhões de dollares, isto é, metade do que custou... A relação entre a despesa e a receita passou de 150 % a 60 %.
— E' maravilhoso!
— Mais maravilhoso ainda é o facto de ter-se tornado a Ironton um mimo de efficiencia, asseio e ordem, trazendo satisfeitissimos os que trabalham nella (pois são os ferroviarios que mais ganham no mundo), o publico, que jámais teve melhor transporte, e o dono, que aufere uma renda soberba. Antes da applicação do methodo Ford, os empregados se queixavam, queixava-se o puolico e queixavam-se os accionistas.
— Realmente. O trabalho, só elle, resolve todos os problemas da vida!...
— O bom trabalho. O trabalho dirigido por um cerebro que sabe o que é a efficiencia.
— E que é efficiencia, Mr. Slang? Abusa-se aqui desta palavra, e eu confesso que não lhe apprehendi integralmente o sentido.
Mr. Slang collocou um cavallo na terceira casa do rei. Em seguida respondeu:
— Efficiencia é fazer ponta no lapis com o córte em vez de com as costas do canivete; é ir de bonde para a cidade, em vez de ir a pé; ir de auto em vez de ir de bonde; ou ficar em casa, quando nada ha que fazer na cidade. Diz Ford que efficiencia é carregar um tronco de arvore numa carreta em vez de carregal-o ao hombro. Efficiencia, em summa, é fazer o contrario, exactamente o contrario do que faz a nossa administração publica em todos os seus departamentos.
— Mr. Slang acha então que si a Central...
— ... apontasse o lapis com o córte, em vez de o fazer com as costas do canivete virava incontinente uma Paulista, uma Ironton.
Sahi tambem com o cavallo do rei, em jogo symetrico ao do meu parceiro. Em seguida adverti:
— Do que Mr. Slang acaba de dizer concluo que com um pouco de boa vontade poderemos endireitar a Central.
Mr. Slang meneou a cabeça.
— Absurdo. Nunca o Brasil endireitará essa estrada. Não existe essa intenção em ninguem. Os politicos se beneficiam com o seu máo estado. Milhares de parasitas perderiam as têtas si ella entrasse nos gonzos. A regeneração da Central só aproveitaria ao publico, unica entidade sem a menor voz activa em coisa nenhuma neste paiz.
— Mas o facto da politica e os parasitas se beneficiarem com o desmantelo da Central não provará que até no desmantelo ha um lado benefico?
— Para os bacillos que roem os pulmões de um doente nada mais benefico do que a debilidade geral do organismo deste doente. Sem ella não viveriam elles. Mas que acha o meu amigo de um medico que á cabeceira de um doente vacillasse na cura, em attenção aos bacillos que lhe devoram os pulmões?
— Um absurdo, isso. Medico nenhum vacillaria entre a cura do doente, benefica a elle e a toda a communidade, e a manutenção do estado de doença, só benefico aos bacillos.
— Pois todos os nossos governos vacillam. Nenhum delles se anima a sanear a Central, em attenção aos bacillos que a veem entisicando. Os parasitas gosam de “direitos adquiridos".
— Não pode haver acquisição de direitos immoraes, nocivos á sociedade humana, adverti.
— No Brasil ha. Bôa parte do que aqui recebe o nome de direito adquirido é synonimo de abuso, de lesão do direito natural que tem uma communidade de se defender contra os parasitas sociaes. Eis por que não creio no vosso paiz. E' um paiz errado. Tem que desapparecer...
— Emquanto isso não acontece, vou "desapparecer" do jogo este seu cavallo, Mr. Slang. Como-o com o meu bispo e com a sua licença...
Disse e fiz. Comi-lhe o cavallicoque, com intimo deleite de vingança. A patria dentro de mim gosava-se da replica inflingida ao implacavel dolichocephalo ruivo...
Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.
Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.