XVII
DOS "LADRÕES"
A varanda do "cottage" de Mr. Slang dava para os fundos de uma casa em abandono. Della podia se ver, nesse quintal, uma caixa d'agua que nunca se enchia, apesar da torneira de alimentação conservar-se permanentemente aberta. E' que a caixa, roida pela ferrugem, vasava em numerosos pontos.
Como eu puzesse os olhos na caixa furada, Mr. Slang disse:
— Ha mezes que está assim, desde que o ultimo inquilino deixou essa casa. E sempre que a vejo tenho a sensação physica dos orçamentos do Brasil.
Estranhei a comparação.
— Explique-se, Mr. Slang.
— Muito simples. O orçamento do Brasil compõe-se de uma torneira como aquel-la, a Receita, e de uma infinidade de "ladrões" por onde a agua escapa. Sabe o que é "ladrão", em technica hydraulica?
— Sei. Falso escapamento de agua.
— Isso. Ha "ladrões" em excesso na caixa d'agua do thesouro deste paiz. O dinheiro se escôa em pura perda por milhares de canaliculos insidiosos, com prejuizo da nação e das obras publicas. Eu, si fosse governo, supprimia os impostos anti-economicos que estão empobrecendo o paiz, e para compensar o desfalque das rendas tapava os buracos.
— Supprimia os "ladrões"...
— Exactamente. Com a simples suppressão dos "ladrões", os saldos avultariam. Calculo em 200 mil contos o dinheiro escoado por esses canaliculos em cada anno fiscal.
— Duzentos mil, Mr. Slang? Não está exagerando? exclamei, incredulo.
— Falo com base. Um dos ultimos presidentes americanos, creio que Harding, fez isso na America do Norte. Depois da guerra o orçamento americano tambem se encheu de "ladrões". O desperdicio das rendas publicas tornou-se assustador e o presidente resolveu pôr-lhe o basta. Para isso escolheu um grupo de auxiliares honestos e mandou-os inspeccionar em segredo todos os serviços publicos e annotar tudo que representasse desperdicio. A machina administrativa do paiz foi assim revisada d'alto a baixo, sem que o funccionalismo o percebesse.
De posse dos elementos necessarios, o presidente operou os cortes e obturou os "ladrões". Sabe qual foi o resultado?
— Economias, está claro.
— Uma reducção de 800 milhões de dollares nas despesas.
Levei tamanho susto que por um triz não cahi de costas. Oitocentos milhões de dollares eram assopro violento demais para a minha fraca mentalidade de mil réis.
— Oitocentos milhões? urrei, com os olhos tão arregalados que, disfarçadamente, Mr. Slang chegou a tirar o phone do gancho.
Recahi em mim e disse-lhe, envergonhado:
— Não chame a Assistencia, por favor. Não é caso. Assustei-me, mas já passou. Oitocentos milhões! E' dinheiro!...
— E esse corte se operou sem o menor prejuizo dos serviços publicos, ao contrario...
— Sem o menor prejuizo! repeti arregalando de novo os olhos. Quer isso dizer que...
— Que si o vosso governo fizesse coisa parecida, os resultados seriam identicos. Só com a economia assim conquistada poderia o Brasil liquidar a sua divida externa em menos de dez annos.
Continuei de olhos arregalados, absorto, a pensar naquillo. Mas as objecções acudiram-me logo.
— Lá tudo é possivel ,Mr. Slang. Que não fará um paiz que adoptou a lei secca? Mas aqui? Um absurdo!
— Por que?
— Ha os direitos adquiridos.
— Já vimos o que isso vale e não consigo admittir que certas medidas de simples honestidade só possam ser applicadas na America do Norte. Apesar de britannico, vejo o Brasil com melhores olhos do que a maioria dos brasileiros. Noto entre vocês uma descrença excessivamente generalisada.
— E temos razão para isso, gemi, lembrando-me do quatriennio sinistro.
— Terão razões, mas não terão o direito de descrer do paiz. A bôa vontade e amor ao bem publico operam prodigios.
— Sei disso. Mas a nossa mentalidade politica se divorciou demais do bem publico. Perdeu-o de vista. Só enxerga o bem pessoal.
— Não comparticipo dessa descrença, meu amigo. Basta que um homem no alto creia no bem publico para que os maiores milagres se operem. E isso é mais facil no Brasil do que em qualquer outra parte, uma vez que a forma real de governo aqui é a de uma perfeita dictadura sob apparencias constitucionaes.
— Facil de dizer, Mr. Slang. Os obices são tremendos...
— Mas não insuperaveis. Não ha obives insuperaveis para a boa vontade. E eu já noto por cá um começo de reviravolta na mentalidade. Conhece o vendeiro ali da esquina?
— O Ferreira, sei...
— Pois converso com elle ha annos e sempre o vi feroz contra os governos do Brasil, não admittindo hypothese de regeneração. Mas hontem estive lá e achei o meu homem mudado. Perdeu a carranca. Já sorri, coisa que passou os ultimos quatro annos sem fazer.
— "Que é isso, senhor Ferreira? Todo risonho..." disse-lhe eu.
O homem acabava de ler um jornal amarello.
— "E' que, respondeu-me, as coisas estão com o seu geitinho de mudar. Estes vétos parciaes... ha de crer que me tenho regalado com elles? Si continuam..."
— E' o que dizem todos, observei. Ha um si de espectativa geral. Tudo está em que continue, porque o povo anda sceptico a respeito de vassouras novas. Todas varrem bem no começo. Qual a sua opinião intima, Mr. Slang?
— Eu de mim estou que as vassouras de bôa piassava varrem bem de começo a fim. Em todo o caso, espero. Tenho tido minhas desillusões. As mais das vezes a vassoura é bôa, mas os amigos do lixo travam a mão ao varredor.
— Continua o si, portanto... murmurei, desconsolado.
Neste momento entrou a Dolly, com a sua cesta de compras ao braço. Deu-nos o good evening e passou.
— A Dolly, por exemplo, disse Mr. Slang, voltando ao começo da nossa conversa. Dou-lhe para as despesas da casa metade do que dava á sua antecessora, e passo melhor. E' uma Harding de saias, que supprimiu todos os "ladrões" deste meu home de solteirão.
— Numa casa é facil, mas num paiz... adverti, sceptico.
— Si Harding fosse vivo discordaria da sua opinião, meu amigo. Elle foi a Dolly dos Estados Unidos e achou facilima a tarefa. São sempre faceis as tarefas que recebem apoio da opinião publica.
— Mas teremos nós opinião publica?
Mr. Slang olhou-me surpreso.
— Bôa pergunta! disse. Que somos nós aqui sinão duas bocas da voz publica? E a esta hora pelo paiz inteiro milhões de bocas como as nossas estão a cochichar opinião.
— Cochichar, diz bem, Mr. Slang. E por isso os governos não a ouvem. Fala a coitada tão baixinho...
— Já começa a falar pela boca das carabinas. Dar tiro não me parece cochichadela, concluiu Mr. Slang.
Puz-me a arrumar as pedras no taboleiro com um pouco mais de fé na nossa regeneração. O optimismo de Mr. Slang erguera-me o animo.
Nisso chegaram as folhas da tarde. Abri "A Noite" e procurei ansioso novas politicas de Minas. Achei-as. O homem que bombardeara S. Paulo fôra indicado para senador... Opinião! Opinião!...
Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.
Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.