XVI


DAS FRUTAS E LIVROS


No outro dia Mr. Slang contou-me que a Dolly tinha comprado a cesta de frutas de cêra para enfeite do seu quartinho.

— Quando a mentalidade é viciada, disse elle, ha uma resistencia passiva ás taes verdades que entram pelos olhos. A bôa Dolly cedeu ás minhas razões só apparentemente. No fundo está convencida de que a funcção das frutas não é só servir á alimentação. Equipara-as ás flores e as quer como enfeite. Tal qual o Brasil com a sua marinha e as mil outras frutas artificiaes que lhe desangram o orçamento.

Não concordei com a inclusão da marinha entre os nossos arrebiques.

— Perdão, Mr. Slang. Um espirito justo como o seu não deve insistir em fazer máo juizo da nossa marinha, disse-lhe com patriotica severidade.

— Não faço máo juizo, meu caro. Considero-a apenas como um luxo em excesso caro para um paiz que vive á custa alheia.

A offensa fez-me vir o sangue ás faces.

— Mr. Slang!... exclamei em tom de censura.

— Sim! retrucou elle, irritado. O Brasil vive de emprestimos, cujos juros não paga. Sou um dos seus credores. Tenho titulos dos quaes não recebo juros. Posso falar. Vive de emprestimos, a hypothecar quanto possue e não me parece honesto que gaste um dinheiro que não é seu em exhibições de povo rico.

Mr. Slang estava inteiramente fóra da sua calma habitual. Que sensivel é o bolso dos homens!

— Perdão, Mr. Slang! Somos um povo soberano...

— Cada vez menos, atalhou elle.

— Como? exclamei, a soffrear a minha indignação. Mr. Slang insulta-nos!...

— Cada vez menos, repito. Quanto mais um devedor se enterra em dividas, menos soberano se torna. Ha annos que não recebo os juros do dinheiro que de boa fé emprestei ao seu governo. Fui enganado e a soberania do seu paiz já não impede que eu lhe atire isto em rosto.

— Perdão! O "funding" foi um accôrdo entre duas partes.

— Accôrdo imposto pelo devedor relapso, gritou Mr. Slang.

Tive impetos de estrangular o meu inglez, mas contive-me. Estrangulal-o com argumentos, já se vê, pois eramos dois homens civilizados, liberrimos em nossas idéas e portanto incapazes de uma scena indecorosa. Faltou-me o argumento estrangulador e silenciei.

Arrefecido o assomo do credor lesado, Mr. Slang, com toda a calma, disse:

— A marinha brasileira faz a funcção das frutas de cêra da Dolly. Enfeita o paiz. Em caso de guerra para o Brasil ou de fome para a Dolly, ambos comprehenderão a inutilidade e o erro do enfeite que finge coisa util.

— Mas não convem remodelar a marinha num momento em que a aviação parece que a vae substituir. Somos prudentes. Estamos a ver onde param as modas.

Mr. Slang achou uma certa graça no meu adjectivo "prudentes".

— Noto, disse elle, que floresce nestas plagas uma logica especial. Chamam vocês prudencia não fazer uma coisa antes que essa coisa seja feita por todos os outros povos. Na Inglaterra chamamos a isso imprudencia... No dia em que Blériot traspoz de aeroplano a Mancha, a commoção da Inglaterra foi tremenda. Era o primeiro homem que penetrava em nosso territorio sem nos pedir autorização. E como onde entra um podem entrar milhões, a Inglaterra cuidou immediatamente de crear uma frota aerea que fosse a mais poderosa do mundo. A isto, sim, chamamos prudencia.

— Mas a Inglaterra conserva a sua esquadra.

— Conserval-a-á em quanto durar o periodo de transição. Mas conserva-a em perfeito estado de efficiencia, o que não se dá aqui. Lá será a marinha, ainda por alguns annos, uma arma do uso real, bem conservada e prompta para agir, mas desde já relegada para a segunda plana. Todos os cuidados hoje são para com a frota aerea — que nenhum povo possue melhor que nós. Mas aqui? Nada aereo ainda e, no mar, as frutas de cêra da Dolly...

Aquelle assumpto me era doloroso e mudei de rumo.

— Basta, Mr. Slang. Quero agora que me diga porque razão incluiu hontem o livro entre as frutas e as joias.

— Não fui eu quem fez essa inclusão, respondeu Mr. Slang, foi o seu governo.

— Como?

— Não acompanhou o debate do caso pelos jornaes? Pois o governo mantem o papel para livros taxado com imposto equivalente a 170 % sobre o custo.

— Que horror, meu Deus!

— Mais que a seda. A seda paga de 80 a 100 %.

— E' impossivel! exclamei attonito. E' um crime, isso!

— E fez mais, meu caro. Deu entrada franca de direitos aos livros impressos em Portugal. Quer dizer: creou um proteccionismo ás avessas — favores á industria de lá contra a similar de cá.

— Impossivel!...

— Essa taxa tornou o livro tão caro como a fruta, e hoje só os ricos podem ler.

— Mas como explica o facto, Mr Slang? Quem teria interesse nessa perseguição ao livro?

Mr. Slang sorriu com maliciosa displicencia.

— Que ingenuo é você, meu amigo! Todo o mundo sabe a historia da taxa sobre o papel, que surgiu em 1918. Um passe do congresso. Dizem que houve um honrado senador que não resistiu á injuncção de duas centenas de contos... e fez elevar a taxa do papel, bruscamente, de 10 a 300 réis.

— Que miseria, meu Deus! Esse homem merecia ser inimigo do dr. Bernardes e passar uns annos de villegiatura na Clevelandia. Esfaquear a cultura da sua patria pelas costas, por trinta dinheiros...

— Duzentos, aliás... E a coisa vae ficando. A cultura não consegue derrubar essa taxa. Editores ingenuos dirigem-se ao Congresso com lamurias. O meio positivamente não é esse...

— Puz a mão na boca de Mr. Slang. Meu pudor de brasileiro não podia admittir que saisse dos seus labios a solução certa. Infelizmente a solução que elle ia apontar era a unica certa...

— Mudemos de assumpto, Mr. Slang. Esse caso é tão triste que me dá vontade de chorar. Vamos ao nosso xadrez.

Mr. Slang concordou e passamo-nos para a varanda.

Emquanto arrumavamos as pedras, contou-me elle de uma conversa que dias antes tivera com um editor. Homem positivo e sem teias de aranha no cerebro, para o qual a sciencia da vida se resume em dansar conforme tocam. "Quando veio a isenção para os livros impressos em Portugal, disse elle, tratei logo de montar lá a officina graphica que pretendia montar aqui, e tenho ganho um dinheirão! Emquanto os meus collegas do Rio choram e lamuriam perante o Congresso, que é surdo quando não ganha para ouvir, vou-me enchendo de arames. Meu lucro é o imposto que os collegas de cá pagam. Tenho sobre elles uma vantagem de 1$300 em cada kilo de livro, vantagem automatica, decorrente, não do meu trabalho ou do aperfeiçoamento da minha producção, mas apenas de ter-me collocado no ponto estrategico. Pois si o governo protege a industria impressora de lá contra a de cá, o intelligente é passarmo-nos para lá, não acha? Que façam os outros o mesmo, em vez de se arrepellarem e irem fallindo um por um..."

Senti um aperto na alma deante daquellas revelações, mas fui arrumando as pedras e saí com o peão do rei. Mr. Slang fez jogo identico e depois saiu com o cavallo. Eu estava com a idéa longe dali e em dado instante, involuntariamente, pensei em voz alta:

— Que cavallos!...

Mr. Slang surprehendeu-se com a intempestiva exclamação e olhou-me a fito. Atrapalhei-me e, para remendo, disse:

— Sim, que cavallos... mal feitos, estes cavallinhos de xadrez, não acha?

Mas o raio do inglez percebeu o que me ia pelo cerebro e retrucou de modo a me fazer admirar a sua penetração.

— Não ha cavallidade nenhuma nessa desattenção aos reaes interesses do paiz. Ha má fé nuns poucos espertalhões e uma infinita incuria na massa dos congressistas. Já assisti a varias sessões da camara e assombrei-me do que nellas se chama votar.

Tambem eu conhecia o Congresso, e sabia muito bem o que alli se chama votar.

— E o remedio, Mr. Slang? perguntei ingenuamente.

— Não ha remedio, respondeu elle, sorrindo. E' a quarta vez, hoje, que você me pede remedio, como si minha funcção na vida fosse receitar para o Brasil.

Calei-me e mergulhei-me no jogo. Mas antes disso ainda houve tempo de passar pelo meu cerebro a lembrança de dois remedios. Um, o de Capistrano de Abreu: vergonha. Outro, o de um meu amigo de S. Paulo. Maneco Lopes: páo.

Mr. Slang pela segunda vez leu-me o pensamento e murmurou entre dentes.

— O remedio é um só, e sempre o mesmo: cerebro.

De facto. E' o remedio para tudo. A surra que nesse dia levei no xadrez provou-m'o sem demora.




Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.