V
DO CARPINTEIRO DE SOUTHDOWN
Mr. Slang fez uma jogada de cavallo, que consegui travar com um movimento de bispo. Antes que elle começasse a estudar o caso, perguntei-lhe:
— E qual a sua opinião, Mr. Slang, a respeito da entrada de ouro e immigrantes, admittindo que a estabilidade dê os resultados que seus promotores esperam?
— O Brasil está inexplorado, respondeu elle. Constitue uma reserva immensa de possibilidades, que se transformarão em riquezas no dia em que houver o capital necessario para movimental-as. O capital hoje foge do Brasil. Isso explica a expansão assombrosa dos Estados Unidos e da Argentina, em contraste com o marasmo brasileiro. Capital procura negocios, não casas de jogo — e o Brasil não passa de um Monte-Carlo em ponto grande.
— Isso não, Mr. Slang, porque não é pequeno o capital estrangeiro que está applicado no Brasil.
— E' minimo, é zero deante do que podia ser e das necessidades do paiz. E o que veio, ou veio garantido por leis especiaes ou veio para emprestimos a governos, caso muito differente. O capital com emprego na industria particular não póde pensar no Brasil.
— A Light, o Gas...
— Empresas que talvez nem dividendo paguem, ou então que fazem o publico remunerar seus serviços em ouro — facto que transfere a parte jogo do negocio á besta do publico.
— No entanto, o capital encontra aqui a mais alta das remunerações.
— Em papel. Essa remuneração em papel, convertida em ouro, oscilla de tal maneira que até um simples emprestimo hypothecario se transforma em jogo de roleta. Ora, o fim do capital é obter renda, nunca jogar. Tive um amigo de Londres que num momento de cegueira applicou aqui 10.000 libras a 9 °|°, dinheiro esse que na Inglaterra nunca lhe rendera mais de 3 °|°. A perspectiva de triplicar a renda seduziu-o. Trouxe o dinheiro, reduziu-o a papel e, como o cambio estava a 12 e a libra valia 20 mil réis, achou-se com 200 contos, os quaes, a 9 °|°, passaram a render-lhe 18:000$000 por anno. Meu amigo ficou radiante, visto como na Inglaterra só tirava desse dinheiro ..... 6:000$000. Empregou-o sob hypotheca, cujo contrato se venceu ha uns quatro annos atrás, com o cambio a 5. O devedor pagou-lhe pontualmente os 200 contos, mas o meu amigo, ao convertel-os de novo em libras, só se viu com 4.200 em vez das 10.000 que trouxera. Está claro que fez cruz canhoto no Brasil e foi empregar o resto do seu dinheiro no Uruguay, onde o valor da moeda nacional é constante.
— Não ha duvida, commentei eu. Esse "bife" foi bigodeado...
— A um outro amigo succedeu o inverso, proseguiu Mr. Slang. Trouxe 10.000 libras ao cambio de 5 e retirou-as ao cambio de 7. Ganhou na conversão 4.000 libras. Tambem se foi embora. "Quero negocio e não jogo; jogo por jogo, prefiro Monte-Carlo", disse-me elle ao partir.
Eis a razão do horror que o Brasil inspira ao capital europeu e americano. Os businessmen preferem 3 % lá a 12 % aqui, porque 3 lá são 3, e os 12 de cá valem tanto como uma parada em roleta. Podem ser muito, podem ser zero.
— De facto, Mr. Slang. Isso que acaba de dizer é irrespondivel. Mas acha que com a estabilização virá capital?
— Em proporções que ninguem aqui póde siquer sonhar, meu amigo. No principio talvez não muito. A desconfiança será natural. O Brasil muda tanto de orientação que é preciso "ver primeiro". Ver si ha constancia na nova politica e si o futuro governo não destruirá a obra deste, como os successores de Affonso Penna destruiram a sua. Mas verificado que o bom senso e a honestidade se implantaram de novo no Brasil, o ouro acudirá em ondas e este colosso passará de cul de jatte a Hercules.
— Os anjos digam amem! Já é tempo de cessar o nosso eterno e vergonhoso cul-de-jattismo. E immigrantes?
— A mesma coisa. Hoje pode-se dizer que não ha corrente immigratoria para o Brasil. Vêm para cá uns poucos de illudidos e um certo refugo que não encontra guarida em parte nenhuma.
— Mas é um erro isso, exclamei, pois o immigrante encontra cá o melhor campo de expansão, si é trabalhador.
— O homem trabalhador prospera em toda a parte, porque riqueza é synonimo de trabalho accumulado. Mas como o producto do seu trabalho se reduz a moeda e esta joga, ainda quando immovel na gaveta, dá-se com elle o mesmo que com o capitalista. Na minha ultima viagem á Inglaterra tive opportunidade de conversar com um carpinteiro desempregado que queria emigrar.
— "Quanto ganha no Brasil um carpinteiro"? perguntou-me elle.
— "Dezeseis mil réis diarios", respondi.
— "E quanto valem dezeseis mil réis?"
— "Varia. Valem 2 libras...
O homem deu um pulo.
— "Maravilhoso! Vou já para o Brasil!
Mas esfriei-o:
— "... ou valem 13 de libra, apenas.
— "Como? Que absurdo é esse? exclamou o pobre homem, de olhos arregalados.
— "Cambio, meu caro. Ha lá uma coisa, chamada cambio, que espicha ou encolhe o valor da moeda nacional.
— "E a gente do Brasil vive sob um regimen desses? Não arrebentam todos?
— "A vida lá se resume em fazer gymnastica, em dar pinotes para adaptar-se ao cambio do dia. O brasileiro distrahe-se com isso e esquece-se de enriquecer.
O carpinteiro, solida cabeçorra do Southdown, riscou o Brasil do mappa das suas cogitações. Dias depois partia para a Argentina.
— Realmente! exclamei. Está ahi um aspecto da questão que nunca me occorreu. Quer dizer que no dia em que tivermos moeda estavel o affluxo de braços será enorme...
— Colossal. O Brasil inteiro se transformará num Estado de São Paulo, que, si é o que é, o deve, sobretudo, a um pouco de braço e cerebro europeu que para lá se encaminhou.
— Mas o paulista não diz isso. Attribue tudo a si.
— Engano. Os paulistas de verdade reconhecem que o extrangeiro foi "magna pars" no progresso local, como tambem admittem que muito cooperou para esse progresso o senso das realidades que caracteriza a mentalidade paulista. Os brasileiros do norte, por exemplo, possuem o senso da irrealidade.
— Não só os do norte. O nosso ultimo presidente, sahido do centro, tambem possuia esse espirito.
— De accordo. Mas por excepção. E tanto que já está á margem, repudiado pelos seus proprios partidarios, que o querem asylar no Senado. O crime que elle commetteu contra a expansão economica de São Paulo é das maiores monstruosidades que se observaram no mundo. Fez que a arvore doente, o Brasil, se podasse do seu galho mais vigoroso.
— E preparou o terreno bombardeando a cidade... A historia metterá o bombardeio de S. Paulo entre os sadismos que não teem perdão...
— Meu caro, os thronos e as curues supremas teem abrigado as mais monstruosas cerebrações. E' uma contingencia humana que com a vontade de aço raro se allie a luz da intelligencia, e vice-versa. Incalculavel o que teem soffrido os povos com a loucura dos governantes! Nas autocracias, com a loucura dos autocratas. Nas democracias, com a loucura dos congressos servis. E temos que nos conformar com isso — com o periodico advento da loucura ao poder, chame-se ella Luiz 14, ex-presidente ou Convenção Franceza.
— Luiz 14? Põe então um rei tamanho entre os loucos?
— Do ponto de vista sociologico foi um monstro como outro qualquer. O edito de Nantes... O incendio Palatinado...
— Vejo que só não são monstros estes nossos reis de xadrez, disse eu movendo uma torre.
— E' que teem os movimentos muito restrictos e só defensivos. Dessemos-lhes o movimento do cavallo e os veriamos fazerem no xadrez tantas loucuras como os reis de carne e osso, concluiu Mr. Slang, movendo tambem uma torre.
Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.
Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.