VI
DO PERIODO CYCLONICO
Perto do "bungalow" de Mr. Slang ha um morro donde se avista toda a cidade. Fomos até lá.
— Veja que maravilhoso panorama! disse o meu inglez. Nem Napoles! Nem Constantinopla!...
O dia estava lindo, de céo translucido e ar varrido de brisas frescas. Olhei para o mar, para as montanhas longinquas, para o casario da cidade e enchi-me de orgulho. Calei-o, porém. O meu amigo era acerado nas ironias e tive medo de uma picada.
Sentamo-nos sob as arvores e retomamos o fio da nossa conversa.
— Que acha do sr. Washington Luis, Mr. Slang?
— Não acho coisa nenhuma. Foi escolhido para syndico de uma grande massa fallida e, como nunca funccionou de syndico, temos que aguardar seus actos antes de julgal-o.
— Massa fallida? Pois Mr. Slang já dá ao Brasil o nome de massa fallida?
— E então? Não ha offensa nenhuma em admittir uma situação de facto. Innumeros paizes, hoje prosperos, já falliram. Fallir é tão commum entre nações como entre particulares. E só vejo possibilidades favoraveis no governo do sr. Washington Luis si considerar-se elle como syndico de massa fallida e agir como tal, despido de quaesquer illusões. E parece-me que se convenceu desse papel. O acto numero um do seu governo qual foi? Uma concordata. Estabilizar a 6 é acto honestissimo, pois reconhece a bancarrota e sem ambages faz proposta aos credores — e boa, pois é de 40 °|°. A Allemanha não pagou coisa nenhuma.
— Acho a sua linguagem muito crúa hoje, Mr. Slang.
— E' o ar, o céo azul, o lindo panorama. Dentro da natureza o homem se varre da aura de mentira com que dentro de casa anda envolvido. O Brasil está em fallencia desde o dia 13 de junho de 1909, quando morreu Affonso Penna. Nunca um chefe de estado morreu tão fóra de proposito. Havia um cyclone incubado no velho tumor militar do Brasil, tumor que nasceu lá pelos fins da guerra do Paraguay e vem dando febres no paiz até hoje. A habilidade dos velhos estadistas monarchicos, que adheriram á Republica, conseguiu manter o cyclone em estado de tumor. Esperavam que com o tempo o organismo o reabsorvesse. E assim seria, si a morte de Affonso Penna não viesse arrancar o governo das mãos desses experimentados e prudentes varões para entregal-o á mashorca. "Basta de conselheiros!" foi o grito de guerra. Queria dizer, basta de experiencia e de prudencia. Quando o marechal Hermes, instigado por Pinheiro Machado, lançou o repto ao ultimo conselheiro, nesse dia o Brasil attingiu o ponto mais melindroso da sua vida. Ou salvava-se ou despenhava-se no buraco, indo até á fallencia. Affonso Penna aparou o golpe, demittindo-o e nomeando outro ministro. Estaria salvo o Brasil, si a morte não viesse inverter a situação. Mas morre o ultimo conselheiro, vence o Pinheirão e começa a bacchanal. A partir do momento em que Nilo Peçanha sobe ao Cattete, o tumor abre-se e o cyclone explode. Um facto diz tudo e traça o programma que foi seguido á risca até o ultimo 15 de novembro. Nilo telephonou a Nuno de Andrade, em Petropolis (isto ouvi eu da boca deste grande medico, muito meu amigo), participando-lhe que o escolhera para prefeito. Meia hora depois Nilo assignava o decreto nomeando para prefeito o Serzedello Corrêa...
Desapparecera o escrupulo moral. Entronizara-se no governo o amoralismo, a "injuncção politica", e eu, um inglez não preciso dizer a um brasileiro o que teem sido esses longos annos de furacão amoralista. Hoje me dá o Brasil, visto em conjuncto, a sensação de uma terra devastada. De pé, coisa nenhuma. O que está de pé, não resiste a um empurrão; vacilla. O ultimo governo culminou, e systematicamente inverteu todos os valores moraes ainda a prumo. O ruim ficou sendo o bom e vice-versa. Já leu o marquez de Sade?
— Nunca.
— Pois leia. E' um grande escriptor, cujos romances revelam a mais monstruosa inversão moral ainda observada no mundo. Os personagens bons vêem-se horrivelmente castigados e os máos récebem todos os premios. Pois a obra do ultimo governo me lembra a "Histoire de Juliette ou Les Prospérités du Vice" reescripta por um boticario.
Valeu pelo remate do periodo cyclonico. visto que o instincto de conservação dos povos não permitte que taes periodos se eternizem. Assim é que o proprio ex-presidente escolheu como substituto (e foi o unico acto illogico que praticou) um verdadeiro valor moral. Parece a mais absurda das contradicções a escolha do sr. Washington, que é positivamente honesto, ter sido feita por um homem do qual não se póde dizer o mesmo. Porque, essa escolha? E' que o instincto da conservação nacional agiu e fez seu instrumento o proprio presidente que levou ás ultimas consequencias a crise de moral, começada com a morte de Affonso Penna. Não ha outra explicação.
— E acha Mr. Slang que o novo presidente, sendo um valor moral, conseguirá restabelecer a moralidade do Brasil?
— Não acho. Poderá inicial-a apenas. O trabalho reconstructivo é lento e não cabe nas forças de um homem. Emquanto perdurar no organismo administrativo a acção dos elementos amoraes, systematicamente embutidos nelle durante o periodo cyclonico, o Brasil não recuperará a saude moral. E isto é demorado. Pedro II tinha o maior escrupulo na nomeação, de um simples juiz que fosse. Sabia que um máo juiz é calamidade vitalicia. Ora, a Republica, até Affonso Penna, ainda muito se beneficiou com a projecção no tempo do celebre lapis azul do imperador. Mas o amoralismo que dahi para cá presidiu á escolha dos substitutos desses homens, até quando operará elle os seus tristes resultados? Contra um máo ministro do Supremo Tribunal, com dez ou vinte annos de vida, que poderá o sr. Washington Luis, que dentro de tres e pouco não será mais governo?
— Quer dizer que o crime maximo do ultimo governo consistiu nesse enxertar amoralidade no corpo administrativo, sobretudo na justiça — na suprema justiça...
— Sem duvida. O criterio unico da escolha era a subserviencia. Quem demonstrasse alguma rigidez de caracter ia para a lista negra. Ora, a subserviencia tem isto comsigo: é malefica ou inoffensiva, conforme a feição do homem que preside á nação. Emquanto tivermos no alto homens honestos, o paiz não se resentirá grandemente do amoralismo desses enxertos. Mas no dia em que os azares do acaso levarem ao Cattete um homem dubio, sceptico, fraco ou francamente deshonesto, esses sopitados vicios de caracter resurtirão espontaneamente. O subserviente sub-serve. Serve sob. Reflecte. Transforma-se em monstro sob Calligula, ou em passivo homem de bem sob Marco Aurelio.
— A vida do paiz fica instavel, em pura dependencia do padrão que está na cuspide...
— Perfeitamente. Ao passo que o elemento moral, o juiz honesto, o é sempre, tanto sob Calligula, como sob Marco Aurelio.
— Comprehendo. O Brasil está envenenado. Com maleitas...
— Bôa imagem. Está com o germen da maleita no organismo. Conforme fôr o governo que tenha, honesto ou deshonesto, assim se comportará a sua maleita incubada.
— E o remedio?
— Curar-se. Eliminar do organismo os germens da maleita. Quinino. O quinino da honestidade, não durante quatro annos, mas durante tantos quatriennios quantos necessarios á total eliminação dos elementos amoraes que o periodo cyclonico lhe metteu dentro.
— E acha isso possivel?
Mr. Slang fingiu não ouvir a minha pergunta.
— Olhe, disse elle apontando para uma certa ilha. Veja que lindo quadro forma aquelle veleiro, a estampar a brancura das suas lonas de encontro aos verdes do morro!
Respeitei-lhe a discreção e desconversei.
Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.
Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.