IX
DA PROTECÇÃO Á INCOMPETENCIA
Depois do café Mr. Slang levou-me para a sua bibliotheca. Muito falava elle na sua bibliotheca e eu tinha grande curiosidade de conhecel-a, imaginando coisa ahi para 10.000 volumes. Enganei-me. A famosa bibliotheca se resumia numa edição da Encyclopedia Britannica, impressa em fino papel da India e encadernada em camurça.
— Só isto, Mr. Slang? exclamei desapontado.
— Acha só ao tudo? respondeu, rindo. Já possui numerosos livros, mas desfiz-me delles, como de trambolhos, quando me convenci de que a Encyclopedia Britannica resume toda a sabedoria humana. Livros novos chegam-me diariamente. Examino-os e devolvo-os ao meu belchior. Já li muito, meu caro. Hoje prefiro pensar. Entretanto, de vez em vez surgem livros que me seduzem. O ultimo que teve esse condão foi este, disse Mr. Slang, abrindo uma gaveta e tirando uma brochura nacional.
Reconhecia-a logo. Era a "Terra Deshumana", de Assis Chateaubriand.
— Bravos! exclamei. Tambem li esse terrivel libello e muita curiosidade tenho de ouvir a sua opinião a respeito.
— Depois. Agora só quero accentuar o facto desta pequena brochura ter-me custado 8.000 réis. E' caro. O gráo de cultura de um paiz mede-se pelo preço dos seus livros.
— A vida no Brasil é cara; tudo é caro entre nós. Paiz novo...
Desta vez Mr. Slang não sorriu como de costume, antes gargalhou, descompassado, com grande desapontamento meu. Espantou-me aquelle excesso em homem tão commedido.
— Paiz novo! repetiu Mr. Slang. Vejo esta razão apresentada muito amiude, como uma das formulas, uma das phrases feitas do brasileiro. Já meditou sobre ella? O Brasil é velho, meu caro, é um dos povos mais velhos do mundo. Idade, nas pessoas ou nos povos, não se calcula pelo numero de annos. Ha velhos de vinte annos e septuagenarios moços. No Brasil só vejo signaes de velhice. A raça que o habita é o velhissimo portuguez, misturado com o archi-velho africano, mais o veneravel pelle-vermelha que por millenios sem conta occupou este territorio. A terra tem a idade commum de qualquer outro trecho da crosta terrestre. Paiz novo, por que?
— A raça é velha, concordo, e a terra tambem; mas o paiz é novo.
— Mas que é paiz senão raça numa terra? Como velhice-raça, mais velhice-solo póde resultar em mocidade? Os povos denunciam sua mocidade nas idéas, na alegria da vida, na nietzscheana vontade de poder. E' moço o povo americano, como é moço o povo allemão. O brasileiro é velhissimo. Onde o enthusiasmo creador, o impeto para fórmas só suas, o "rush" de avalanche para um "uber alles" qualquer? Dê-me um rapazola, seu patricio, que não pense com cerebro de setenta annos, e que ao sair de uma escola superior não aspire entrar na vida “já aposentado", isto é, "collocar-se" num dos quadros do monstruoso parasitismo burocratico que aqui róe, como piolheira, o trabalho dos que ainda trabalham. Não me fale na mocidade deste paiz — e dado que existisse não vejo como poderia tornar-se causa do preço exagerado desta brochura. A causa real da vida cara no Brasil reside no proteccionismo.
— Orientação, aliás, fecunda, atalhei, pois sem elle não creariamos as nossas industrias.
Nova gargalhada de Mr. Slang. O homem estava positivamente fóra dos eixos...
— Só uma coisa, disse elle depois que serenou, crea a industria, a boa, a solida industria que presta serviços á sociedade humana — e essa coisa é incompativel com o proteccionismo.
— ?
— A concorrencia. A humanidade sómente progride dentro do respeito ás leis biologicas. A concorrencia é a lei biologica do progresso. Tudo quanto impede, embaraça ou retarda a concorrencia actúa contra o progresso. O proteccionismo impede concorrencia. Logo, é a morte da industria.
— Acho, disse eu, que Mr. Slang está hoje excessivo em suas affirmações — e paradoxal...
— Attenda-me e verá que não existe nas minhas palavras excesso nenhum. Que é industria? Fazer uma coisa. Entre duas industrias, qual a melhor? A que faz melhor, a que produz melhor. A victoria da melhor, unica proveitosa para o mundo, vem á custa da derrota, á custa da suppressão da peior. Si uma força estranha intervem e impede o melhor de matar o peior, que succede?
— Regresso, perda, mal...
— E que é o proteccionismo sinão essa força estranha que impede a victoria do melhor e protege o peior? O proteccionismo não protege a industria e sim, apenas, a incapacidade industrial. Evita que o bom vença — e toda a communidade se beneficie com essa victoria. Perpetua o máo — e leva a communidade ao consumo forçado do máo producto, do producto que, pelas leis da natureza, deve desapparecer.
— Mas de outra fórma um paiz não póde ter industria, adverti.
— Não poderá ter industria de muletas, só de lucro para o industrial, pois o proteccionismo é o meio de crear esta monstruosidade. Mas que vantagem ha para um paiz em crear no seu organismo este inchaço simulador de gordura? A expoliação nunca aproveitou a ninguem. Enriquece alguns individuos, mas empobrece a communidade. Si eu pago tres mil réis por um máo producto que poderia obter, optimo, por dois, empobreço-me de um mil réis. Ha vantagem para um individuo ou para um paiz em empobrecer-se de um mil réis que seja?
— Quer dizer que ha duas industrias. uma de serviço social e outra de...
— De pilhagem, de expoliação. A primeira enriquece os paizes e beneficia a todos os homens. A segunda só beneficia, e momentaneamente, o expoliador.
— Momentaneamente, apenas?
— Sim. Como outros perderam para que elle ganhasse, baixou o nivel da prosperidade do paiz e o industrial momentaneamente favorecido irá mais tarde, por si ou seus filhos, soffrer as consequencias dessa baixa da prosperidade geral.
— Realmente. Parece-me que Mr. Slang tem toda a razão... conclui, pensativo.
— Transporte o proteccionismo para outro campo e verá como se torna clara a demonstração. Supponha dois medicos numa pequena cidade, um bom, outro máo. O bom, visto que cura os doentes, attrahe enorme clientela. O máo vê-se ás moscas. Mas intervem o proteccionismo. Uma lei municipal põe guardas á porta do bom medico e cobra uma taxa feroz de cada cliente que o procura. Os ricos se arrumarão. Pagarão a taxa e terão a boa assistencia. Os pobres, e elles constituem os 99% da cidade, não podendo pagar a taxa, recorrem ao máo medico. Este prospera, está claro, enriquece; mas lucrou com isso a communidade? Cresceu o indice da saude geral?
— De facto, uma cidade assim pereceria. Mas que ha de fazer o máo medico? Morrer de fome?
— Está claro. Só tem direito de fazer uma coisa quem a faz melhor que os outros. E' a lei do progresso.
— De modo que para Mr. Slang as nossas industrias protegidas constituem um mal... Mas não negará que muito nos serviram durante a conflagração européa.
— Ponto a discutir. Mas dou de barato que assim tenha sido e pergunto si é argumento sério. Conservar no organismo uma ordem de coisas viciosa, que o debilita. que o mata, só porque num eventual caso de guerra possa tornar-se um momentaneo bem, será formula defensavel? Faz-me lembrar um homem que andasse leguas e leguas descalço, a ferir as solas nas pedras do caminho, só para beneficiar-se com a frescura da agua de um riacho eventual que tenha de passar a váo. A Argentina, que não tem industrias falsas, não se arrumou perfeitamente durante a conflagração? Não sahiu ganhando, não está mais prospera do que nunca, emquanto que o Brasil geme no atoleiro, enterrado até ao nariz?
Mr. Slang tinha razão e eu não quiz insistir em minhas tolas objecções. Mudei de assumpto e interpellei-o:
— Voltando atrás, que acha, Mr. Slang, de "Terra Deshumana"?
Mr. Slang não respondeu de prompto. Ficou como quem procura uma formula synthetica para definir um caso difficil. Depois disse:
— Um retrato de corpo inteiro, feito por um mestre retratista.
— Parecido?
Mr. Slang vacillou.
— Um tanto enfeitado, respondeu por fim. O pintor deu ao original um vulto que me parece fóra da realidade. Desenvolveu a Carlyle o que apenas fazia jús a estylo de relatorio clinico. Houve erro de amplitude, evidentemente.
Preparei-me para ouvir uma alta revelação. Mr. Slang, entretanto, calou-se e, ao voltar-se para metter na gaveta a "Terra Deshumana", deu com o braço numa estatueta que havia sobre sua secretaria. O bronze veio ao chão e fez em cacos. Não era bronze, era barro bronzeado, apenas.
Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.
Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.