VIII
DA CAMISOLA DE FORÇA
Mr. Slang foi accender o cachimbo e verificou que estava sem phosphoros. Offereci-lhe a minha caixa, não aberta ainda. Elle rompeu o sello com a unha e, depois da primeira baforada, disse:
— O esforço que acabo de fazer para abrir esta caixa de phosphoros repete-se no Brasil 5 milhões de vezes por dia. Suppondo que um kilogrametro de força muscular dê para abrir 200 caixas, teremos um dispendio de 333 cavallos vapor para abrir os 5 milhões de caixas que se abrem diariamente, ou sejam, num anno, 121.500 cavallos. E o esforço, o dispendio inutil de energia que um simples sello, grudado ás caixinhas de phosphoros, exige do paiz.
— Está interessante o seu calculo, Mr. Slang; mas a que vem elle?
— Para exemplificar de um modo entradiço pelos olhos como o systema tributario do Brasil, não contente de tomar dinheiro, toma tambem esforço. E' pois um systema de taxação nocivo ao paiz. Cobra duas vezes, uma em moeda, outra em energia humana.
— Mas a perda de 121.500 cavallos por anno é nada para um paiz tão rico em cavallos...
— Toda perda é uma perda, e não é só na taxação dos phosphoros que se dá esse desperdicio de força. Não conheço nenhum imposto que não cobre duas vezes. Um estudo neste sentido nos levará a resultados espantosos, pois verificaremos que talvez metade da energia brasileira se esvae em pura perda, na luta contra a feição anti-economica e incommoda dos impostos.
— Isso é verdade. Já lidei com o fisco e conheço os embaraços que elle cria para receber as taxas. Para receber! Qual será a causa disso, dessa mentalidade de cuscuta, Mr. Slang?
— E' mal que vem de trás, dos tempos do Brasil colonia. Portugal, ao tomar posse da terra nova, cuidou de uma coisa só: o Fisco. A colonia existia para o Fisco. A Fazenda Real era tudo e os interesses do povo, nada. E o Fisco se organizou attendendo unicamente ás suas conveniencias. A inepcia desta concepção é que nos permittiu. a nós inglezes, tomarmos conta de todas as colonias lusas que nos convinham. Mas o Fisco organizou-se cá muito a commodo, sem respeitar coisa nenhuma além do seu interesse, pessimamente entendido, aliás. Veio depois a independencia, a monarchia, a Republica, e em todas estas mudanças se mexeu em tudo, menos no Fisco. Ficou elle com o mesmo arcabouço e a mesma psychologia colonial. Dahi a sua forma de castigo ao trabalho, de empeço aos movimentos livres, que caracterizam as taxas republicanas, culminadas agora no monstruoso e pilherico imposto sobre a renda. E o paiz que se desilluda. Não haverá progresso possivel enquanto não houver mudança de mentalidade a este respeito. Não é amarrando um homem e embaraçando-lhe todos os movimentos que esse homem ganhará corridas no "steeple-chase" internacional.
— E se fosse só isso! exclamei contristado. Ha ainda a iniquidade do imposto anti-economico, o de barreira, por exemplo, e o de exportação...
Mr. Slang poz o chapéo na cabeça para regressar ao seu "bungalow". Erguemo-nos daquella agradavel sombra e partimos. A conversa proseguiu durante o percurso.
— Esse Ruy Barbosa que o Brasil tanto admira, disse elle, mas cujas opiniões sempre desprezou, teve a respeito do imposto de exportação palavras que me ficaram. Disse-as em carta ao meu velho amigo José Custodio Alves de Lima, que tanto se bateu contra tal imposto, sem ser ouvido: O nosso empirismo tributario é um regimen de sangria expoliativa a que nenhuma nação, das mais vigorosas do mundo, resistiria. A escravidão fiscal desenvolvida com uma carniçaria cada vez mais voras, pela União, pelos Estados e pelos municipios, não faz menos pela atrophia do nosso organismo nacional do que a escravidão negra, a que succedeu com vantagem na pertinacia e na estupidez. A furia do proteccionismo e a inconstitucionalidade chronica dos impostos inter-estaduaes são tres suicidios systematizados a que o Brasil se entrega impenitente e consosolado, como os maniacos do alcool, do opio ou da cocaina. Os nossos financeiros, creaturas_da rotina, são os ministros conscientes da loucura deste outro vicio ethnicida, que mata nossa nacionalidade.
— Irra! exclamei. Não se póde fazer uma synthese mais rigorosa! O que me admira é que apezar disso o Brasil prospere.
Mr. Slang sorriu com piedade e repliplicou suavemente:
— O Brasil não prospera, meu caro. Não póde prosperar. Chamam vocês aqui prosperidade a um claro phenomeno de gigantismo. Ha deformação para o maior. apenas. Inchaço. Entre Argentina e Estados Unidos, dá-me o Brasil a idéa duma lesma ensandwichada entre duas locomotivas. E' que o Brasil se affez á sua miseria chronica, como o chim, e não vê, e não compara. O Brasil, perdoe-me a sinceridade, é um pobre gigantão hebeté. Brinca com brinquedinhos de Nuremberg — a sua "immensa riqueza", "intelligencia", etc., e já perdeu de todo a sensibilidade e o senso do real. Não é impunemente que se martyriza em camisola de força um pobre rapaz...
— Isso tambem não. A producção brasileira já sobe a cinco milhões de contos por anno, exclamei com orgulho.
Novo sorriso de dó aflorou aos labios de Mr. Slang.
— Cinco milhões de contos, para 30 milhões de habitantes, num territorio de 8 milhões de kilometros quadrados! Quer dizer, uma producção annual correspondente a 4 mezes da fabrica Ford...
Dei um pulo para trás e por um triz não me despenhei num buraco.
— Será possivel, Mr. Slang? Não está exagerando?
— Verdade purissima, meu caro. Em 4 mezes os 200.000 homens da Ford Motor Company produzem tanto como o Brasil inteiro em um anno... Creio que não é possivel tornar mais flagrante a miseria, a infima força productiva deste paiz. E nem podia deixar de ser de outro modo. Com o regimen de impostos que tem, com a moeda que tem, com os vicios burocraticos que alimenta, ainda é muito que o Brasil faça o que faz. Mas o meu amigo sabe que na concurrencia da vida os povos que não se defendem, á força de progresso e efficiencia, mais dia, menos dia, perecem. O vosso Brasil perecerá...
— Os paizes não morrem. Mr. Slang. A morte é um phenomeno individual.
— Est modus in rebus. Neste territorio já houve um Brasil amerindio. Que é delle? Remanesce no fundo dos sertões, em tribus expulsas do litoral e condemnadas ao desapparecimento. Hoje temos um Brasil luso-africo . Por que não ha de morrer, como morreu o Brasil amerindio? A terra fica, mas os povos passam. A historia está cheia de tentativas de povos, chrysalidas de nações, cascas de casulos donde não sairam borboletas.
— O seu receio parece-me infundado, Mr. Slang. Temos energias em estado latente, que explodirão no momento opportuno.
— Opportunidades só a esperam os fracos. Os povos fortes criam-nas. O Brasil vive a esperar uma vaga opportunidade emquanto seus vizinhos forjam a sua. A proposito, e como reflexo da mentalidade do paiz, occorre-me uma opinião do ex-presidente da Republica sobre as jazidas de ferro de Minas.
— Sei. Disse elle que eram uma reserva que nestes 200 annos poderiam valer muito e que deviamos deixar para os nossos netos.
— E' isso. Li essa opinião e assombrei-me. Si um homem expoente, e tanto que já presidiu á nação, pensa dessa fórma, que ha mais a esperar? Daqui a 200 annos podem dar-se, entre innumeras, estas duas hypotheses: não ter mais valor nenhum o ferro, graças á descoberta de um metal novo, ou não existirem netos herdeiros das taes jazidas de Minas. Si Cunhambebe pensasse assim em 1499 e não comesse as pacas de sua taba de Araribá, para que cincoenta annos depois as tivessem, multiplicadas, os seus netos, teria errado, evidentemente, porque no anno seguinte a apparição de Cabral viria transtornar a simplicidade desse calculo.
— Não ha duvida...
— Estenda o raciocinio a todas as reservas naturaes do paiz, á borracha, ao mate, á piassaba, ás madeiras, aos diamantes do Garça, ao manganez, ao babassú, á fertilidade da terra...
— Fertilidade da terra?
— Sim. O café de S. Paulo, por exemplo, não passa de um engenhoso meio de industrializar e commercializar a fertilidade da terra roxa, que, constitue a riqueza de S. Paulo, como o ferro constitue a riqueza de Minas. Estenda o raciocinio e verá que botocudos nús não seriam vocês todos por cá, si a politica de conservar reservas fosse a seguida. Os povos que chamamos grandes são os que mobilizam as suas reservas naturaes. Os que não o fazem permanecem de tanga, com taboinhas no beiço.
— Donde se conclue que...
— Donde concluo que são tres horas e o café deve estar na mesa.
De facto. Mal puzemos o pé na varanda, o criado de Mr. Slang veio chamar-nos para o café. Ao tomal-o, Mr. Slang disse:
— Sabe qual é a multa que paga a lavoura de café pelo crime de produzil-o e permittir que com o seu producto o Brasil vá se aguentando? Nove por cento ad valorem, mais cinco francos por sacca, mais um mil réis ouro por sacca...
Fremi de horror e lembrei-me do Brasil amerindio desapparecido.
Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.
Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.