Dona Mariana Lima era uma senhora agradável na conversa, mas única e simplesmente na conversa. O coração era esquisito; é o menos que se pode dizer. O espírito era caprichoso, voluntarioso e ambicioso. Ambicionava um casamento mais elevado para o filho. Os amores de Henrique e o seu imediato casamento foram um desastre para os planos de futuro.

Quer isto dizer que D. Mariana desde o primeiro dia começou a odiar a nora. Escondeu-o o mais que pôde, e só pôde esconder durante os primeiros meses. Afinal o ódio fez explosão. Foi impossível no fim de certo tempo viverem juntas. Henrique foi morar em casa sua.

Não bastava à senhora D. Mariana odiar a nora e aborrecer o filho.

Era-lhe preciso mais.

Soube e viu a parte que teve o Padre Flávio no casamento do filho, e não só o Padre Flávio como de algum modo o Padre Vilela.

Naturalmente criou-lhes ódio.

Não o manifestou entretanto logo. Ela era profundamente dissimulada; tratou de disfarçar o mais que pôde. Seu fim era expeli-los de casa.

Eu disse que D. Mariana era agradável na conversa. Era-o também na fisionomia. Ninguém diria que aquele rosto amável escondia um coração de ferro. Via-se que tinha sido formosa; ela mesma falava da sua beleza passada com um resto de orgulho. A primeira vez que o Padre Flávio a ouviu falar assim, teve má impressão. Notou-lhe D. Mariana e não se conteve que lhe não dissesse:

— Reprova-me?

O Padre Flávio conciliou seu amor à verdade com a consideração que devia à esposa do amigo.

— Minha senhora, murmurou ele, eu não tenho direito para tanto...

— Tanto vale dizer que me reprova.

Flávio calou-se.

— Cuido, entretanto, continuou a esposa de João Lima, que não me gabo de nenhum crime; ter sido bonita não é coisa que ofenda a Deus.

— Não é, disse gravemente o Padre Flávio; mas a austeridade cristã pede que não façamos caso nem tenhamos orgulho das nossas graças físicas. As próprias virtudes não nos devem ensoberbecer...

Flávio estacou. Reparou que estava presente João Lima e não quis continuar a conversa por extremo desagradável. Mas o marido de D. Mariana nadava em contentamento. Interveio na conversa.

— Continue, padre, disse ele; isso não ofende e é justo. A minha santa Eva gosta de recordar o tempo da sua beleza; já lhe tenho dito que é melhor deixar o louvor aos outros; e ainda assim fechar os ouvidos.

D. Mariana não quis ouvir o resto; retirou-se da sala.

João Lima deitou a rir.

— Assim, padre! nunca as mãos lhe doam.

Flávio estava profundamente incomodado com o que se passara. Não queria de nenhum modo contribuir para um desaguisado de família. Demais, já percebera que a mãe de Henrique não gostava dele, mas não podia atinar com a causa. Fosse qual fosse, julgou prudente afastar-se da casa, e assim o disse ao padre Vilela.

— Não creio que tenhas razão, disse este.

— E eu creio que tenho, retorquiu o Padre Flávio; em todo caso nada perdemos em afastarmo-nos por algum tempo.

— Não, não me parece razoável, disse Vilela; que culpa tem João Lima nisto? Como explicar a nossa ausência?

— Mas...

— Demos tempo ao tempo, e se as coisas continuarem do mesmo modo.

Flávio aceitou o alvitre do seu velho amigo.

Costumavam eles passar quase todas as tardes em casa de João Lima, onde tomavam café e onde conversavam das coisas públicas ou praticavam de assuntos pessoais. Às vezes dava-lhe João Lima para ouvir filosofia, e nessas ocasiões era o Padre Flávio quem falava exclusivamente.

D. Mariana, desde a conversa que acima deixo referida, mostrara-se cada vez mais fria com os dois padres. Sobretudo com Flávio, as suas demonstrações eram mais positivas e solenes.

João Lima não reparava em nada. Era um bom homem que não podia supor houvesse alguém a quem desagradassem os seus dois amigos.

Um dia porém, ao saírem de lá, disse Flávio a Vilela:

— Não lhe parece que o João Lima está um pouco mudado hoje?

— Não.

— Creio que sim.

Vilela abanou a cabeça, e disse rindo:

— Andas visionário, Flávio!

— Não sou visionário; percebo as coisas.

— As coisas que ninguém percebe.

— Verá.

— Quando?

— Amanhã.

— Pois verei!

No dia seguinte houve um inconveniente que os impediu de ir à casa de João Lima. Foram em outro dia.

João Lima mostrou-se efetivamente frio com o Padre Flávio; com o Padre Vilela não alterou o seu modo. Vilela notou a diferença e deu razão ao amigo.

— Na verdade, disse ele ao saírem os dois do Valongo, onde morava João Lima, pareceu-me que o homem hoje não te tratou como de costume.

— Do mesmo modo que anteontem.

— Que haverá?

Flávio calou-se.

— Dize, insistiu Vilela.

— Que nos importa isso? disse o Padre Flávio depois de alguns instantes de silêncio. Gostou de mim algum tempo; hoje não gosta; não o censuro por isso, nem me queixo. É conveniente que nos acostumemos às variações do espírito e do coração. Pela minha parte não mudei a seu respeito; mas...

Calou-se.

— Mas? perguntou Vilela.

— Mas não devo voltar lá.

— Ah!

— Sem dúvida. Acha bonito que freqüente uma casa onde não sou bem aceito? Seria afrontar o dono da casa.

— Bem; não iremos mais lá.

— Não iremos?

— Sim, não iremos.

— Mas por que razão há de Vossa Reverendíssima...

— Porque sim, disse resolutamente o Padre Vilela. Onde tu não fores recebido com prazer, eu não posso decentemente meter os pés.

Flávio agradeceu mais esta prova de afeição que lhe dava o seu velho amigo; e procurou demovê-lo do propósito em que se achava; mas foi em vão; Vilela persistia na resolução anunciada.

— Bem, disse Flávio, irei lá como dantes.

— Mas essa agora...

— Não quero privá-los da sua pessoa, padre-mestre.

Vilela procurou convencer ao amigo de que não devia ir se tinha escrúpulo nisso. Flávio resistiu a todas as razões. O velho padre coçou a cabeça e depois de meditar algum tempo, disse.

— Pois bem, eu irei só.

— É o melhor acordo.

Vilela mentia; sua resolução era não ir mais lá, desde que o amigo não ia; mas ocultava esse plano, pois que era impossível fazê-lo aceitar por ele.