Decorreram três meses depois do que acabo de narrar. Nem Vilela nem Flávio voltaram à casa de João Lima; este foi uma vez à casa dos dois padres com a intenção de perguntar a Vilela porque razão deixara de o visitar. Achou-o só em casa; disse-lhe o motivo da sua visita. Vilela desculpou-se com o amigo.

— Flávio anda melancólico, disse; e eu que sou tão amigo dele, não o quero deixar só.

João Lima franziu o sobrolho.

— Anda melancólico? perguntou ele no fim de algum tempo.

— É verdade, continuou Vilela. Não sei que tem; pode ser moléstia; em todo o caso não o quero deixar só.

João Lima não insistiu e retirou-se.

Vilela ficou pensativo. Que quereria dizer o ar com que o negociante lhe falara a respeito da melancolia do amigo? Interrogou as suas reminiscências; conjecturou à larga; nada concluiu nem encontrou.

— Tolices! disse ele.

A idéia porém não lhe saiu mais do espírito. Tratava-se do homem a quem mais amava; era razão para que o preocupasse. Dias e dias gastou em espreitar o misterioso motivo; mas nada alcançou. Zangado consigo mesmo, e preferindo a tudo a franqueza, Vilela resolveu ir diretamente a João Lima.

Era de manhã. Flávio estava a estudar no seu gabinete, quando Vilela lhe disse que ia sair.

— Deixa-me só com a minha carta?

— Que carta?

— A que me deu, a misteriosa carta de minha mãe.

— Vais abri-la?

— Hoje mesmo.

Vilela saiu.

Ao chegar à casa de João Lima ia este sair.

— Preciso falar-lhe, disse-lhe o padre. Vai sair?

— Vou.

— Tanto melhor.

— Que ar sério é este? perguntou Lima rindo.

— O negócio é sério.

Saíram.

Sabe o meu amigo que eu não tenho sossegado desde que desconfiei de uma coisa...

— De uma coisa!

— Sim, desde que desconfiei que o meu amigo tem alguma coisa contra o meu Flávio.

— Eu?

— O senhor.

Vilela olhou fixamente para João Lima; este baixou os olhos. Foram andando assim silenciosamente durante algum tempo. Era evidente que João Lima queria ocultar alguma coisa ao padre-mestre. O padre é que não estava disposto a que se lhe escondesse a verdade. Ao fim de um quarto de hora Vilela rompeu o silêncio.

— Vamos lá, disse ele; diga-me tudo.

— Tudo o quê?

Vilela fez um gesto de impaciência.

— Para que procura negar que há alguma coisa entre o senhor e o Flávio. É isso que eu desejo saber. Sou amigo dele e seu pai espiritual; se ele errou desejo castigá-lo; se o erro é seu, peço licença ao senhor para castigá-lo.

— Falemos de outra coisa...

— Não; falemos disto.

— Pois bem, disse João Lima com resolução; dir-lhe-ei tudo, com uma condição.

— Qual?

— É que há de ocultar tudo a ele.

— Para quê, se merecer corrigi-lo?

— Porque é necessário. Não desejo que transpire nada desta conversa; é tão vergonhoso isto!...

— Vergonhoso!

— Desgraçadamente, é vergonhosíssimo.

— É impossível! exclamou Vilela não sem alguma indignação.

— Verá.

Seguiu-se um novo silêncio.

— Eu era amigo de Flávio e admirador das suas virtudes como dos seus talentos. Era capaz de jurar que nunca um pensamento infame lhe entraria no espírito...

— E então? perguntou Vilela trêmulo.

— E então, repetiu João Lima com placidez; esse pensamento infame entrou-lhe no espírito. Infame seria em qualquer outro; mas em quem traz vestes sacerdotais... Não respeitar nem o seu caráter, nem o estado alheio; cerrar os olhos aos laços sagrados do matrimônio...

Vilela interrompeu a João Lima exclamando:

— Está doido!

Mas João Lima não se molestou; referiu placidamente ao padre-mestre que o seu amigo ousara desrespeitar-lhe a esposa.

— É uma calúnia! exclamou Vilela.

— Perdão, disse João Lima, disse-me quem podia asseverar.

Vilela não era naturalmente manso; conteve-se a custo ao ouvir estas palavras do amigo. Não lhe foi difícil perceber a origem da calúnia: era a antipatia de D. Mariana. Admirou-se que descesse a tanto; no seu íntimo resolveu dizer tudo ao jovem sacerdote. Não deixou porém de observar a João Lima:

— Isso que me diz é impossível; houve certamente equívoco, ou... má vontade; acho que seria principalmente má vontade. Não hesito em responder por ele.

— Má vontade por quê? perguntou João Lima.

— Não sei; mas alguma havia em que eu já reparei ainda antes do que se deu ultimamente. Quer que seja inteiramente franco?

— Peço-lhe.

— Pois bem, todos temos defeitos; sua senhora, entre boas qualidades que possui, tem alguns e graves. Não se zangue se lhe falo assim; mas é preciso dizer tudo quando se trata de defender como eu a inocência de um amigo.

João Lima não dizia palavra. Ia cabisbaixo ouvindo as palavras do Padre Vilela. Ele sentia que o padre não estava longe da verdade; conhecia a mulher, sabia por onde pecava o seu espírito.

— Eu creio, disse o Padre Vilela, que o casamento de seu filho influiu na desafeição de sua esposa.

— Por quê?

— Talvez não fosse muito do agrado dela, e ao Flávio se deve o bom desfecho que teve aquele negócio. Que lhe parece?

Não respondeu o interlocutor. As palavras de Vilela trouxeram-lhe à memória algumas que ouvira à mulher em desabono do Padre Flávio. Era bom e fraco; arrependia-se facilmente. O tom decisivo com que falou Vilela profundamente o abalou. Não tardou que ele mesmo dissesse:

— Não desconheço que é possível um equívoco; o espírito suscetível de Mariana podia errar, era mais natural que ela se esquecesse de que tem um resto das suas graças para só se lembrar de que é uma matrona... Perdão, falo-lhe como amigo; releve-me estas expansões em tal assunto.

Vilela dirigiu a João Lima no caminho em que entrava. No fim de uma hora estavam quase de acordo. João Lima encaminhou-se para casa acompanhado de Vilela; iam já então calados e pensativos.