"
UNO" !
Ugarte... — "Dos"!
Adriano...
— "Cinco" !
Gaspar...
— ...
Má collocação. Tenho Villabona-Melchor-Gaspar, e já o azar. de saida, põe-me em primeiro Ugarte! Ugarte é furão. Na quiniela anterior foi quem me estragou o triangulo. Querem ver que ainda nesta...
— "Mucho", Adriano !
Qual Adriano, qual nada ! Não escorou o saque . e lá está Ugarte de ponto feito. Genúa. agora ? E' outro ponto — querem ver ?...
— "Mucho". Genúa !
Raio d'azar ! "Malou" ! Felizmente Melchor... Bravos! Uma cortada, agora !... "Buena. buena" ! Outra — outra cortadinha !... Me... Na lata !... Incrivel !...
Ao meu lado conversavam dois sujeitos velhuscos.
—"... coisa que você nem acredita, dizia um delles. Mas é verdade pura. Fui testemunha, vi! Vi a martyr, branca como morta, deante do horrendo prato...
Horrendo prato ? !... Desinteressado do jogo, interessei-me por aquella mysteriosa historia. Approximei-me um pouco mais dos velhos e puz-me de ouvidos alerta.
— "Era longe, a tal fazenda, continuou o homem. Mas lá, em Matto-Grosso, tudo é longe. Cinco léguas é "alli", com o beiço. Dez, quinze léguas, é "lá", com a ponta do dedo. Este troco miudo de kilometros que vocês usam por cá, em Matto-Grosso não tem curso. E' cada estirão !... Mas fui ver o gado. Queria arredondar uma ponta e quem me tinha os novilhos nas condições requeridas, de edade e preço, era esse coronel Theotonio, do Tremedal. Encontrei-o na mangueira, assistindo á domação dum potro — zaino, inda me lembro... E palavra d'honra ! não me recordo ter esbarrado nunca typo mais impressionante. Barbudo, olhinhos de cobra, duros e vivos, testa entiotada de rugas, ar de carrasco... Pensei commigo: dez mortes, no minimo. Porque lá é assim. Não ha soldados rasos. Todo o mundo traz galões... e aquelle, ou muito me enganava, ou tinha divisas de general, pelo menos !... Lembrou-me logo o celebre Pamphilo do Rio Verde, um de "doze galões", que "resistiu" ao tenente Galinha, e graças a esse benemerito "escumador de sertões", purga a est'hora os peccados no tacho de Pedro Botelho.
Mas, importava-me lá a féra ! — eu queria gado, pertencesse a Belzebuth ou a S. Gabriel. Expuz-lhe o negocio e partimos para o que elle chamava a invernada de fóra. Lá escolhi o lote que me convinha. Apartamol-o e ficou tudo resolvido. De volta do rodeio, cahia a tarde. e eu, almoçado ás oito da manhã, e sem um café de perincio até aquell'hora, chiava numa das boas fomes da minha vida. Assim foi que, apesar da repulsão inspirada pelo urutú. acceitei-lhe o jantar offerecido.
Era um casarão sombrio, a casa da fazenda. De poucas janellas, mal illuminado, mal arejado, desagradavel de aspecto, por isso mesmo toava na perfeição com a cara e os modos do proprietario. Traste que não se parece com o dono é roubado, diz o povo, e diz muito bem. A sala de jantar semelhava uma alcova. Além de escura, e abafada, rescendia a um cheiro esquisito, nauseante, que me nunca mais saiu do nariz — cheiro assim de carne mofada !...
Sentamo-nos á mesa, eu e elle, sem que viva alma surgisse a nos fazer companhia. E como de dentro não viesse nenhum rumor, conclui que o urutú morava só — solteiro ou viuvo. Interpellal-o? Nem por sombras. A seccura e a má cara do facinora não davam lado á minima expansão de familiaridade; e, ou fosse real ou effeito do ambiente, pareceu-me elle em casa inda mais torvo que fóra, em pleno sol.
Havia na mesa feijão, arroz e lombo, além dum mysterioso prato coberto em que se não buliu. Mas a fome é boa cozinheira. Apesar de engulhado pelo bafio a mofo, puz de lado o nariz, achei tudo bom, e entrei a comer por dois. Correram assim os minutos. Em dado momento o urutú, tomando a faca, bateu no prato tres pancadas impreriosas. Chama a cozinheira, calculei. Esperou um boccado e como não apparecesse ninguem. repetiu o appello, com certo frenezi. Attenderam-no, desta vez. Abriu-se, devagarinho, uma porta e enquadrou-se nella um vulto branco de mulher. Somnambula ? Tive essa impressão. Sem pinga de sangue no rosto, sem fulgor nos olhos vidrados, cadaverica, dir-se-ia emersa do tumulo naquelle momento. Approximou-se . lenta. com passos de automato, e sentou-se, baixando a cabeça. Confesso que esfriei. A escuridão da alcova, o ar diabolico do urutú, aquella morta-viva morre-morrendo a meu lado, tudo se conjugava para arrepiar-me as carnes num calafrio de pavor. Em campo aberto não sou medroso — ao sol, em luta franca, onde vale a faca ou o 32. Mas escureceu ? Entrou em scena o mysterio? Ah !—bambeio de pernas e tremo que nem mulher nervosa ! Foi assim naquelle dia...
Mal sentou-se a morta-viva, o marido, sorrindo, empurrou para o seu lado o prato mysterioso e destampou-o amavelmente. Dentro havia um petisco preto que não pude identificar. A mulher, ao vel-o, estremeceu, como horrorizada.
— "Sirva-se !" disse o marido.
Não sei porque, mas esse convite revia uma tal crueza que me cortou a alma como navalha de gelo. Presenti um horror de tragedia. dessas horrorosas tragedias familiares, vividas dentro de quatro paredes, sem que de fóra ninguem jámais as suspeite. Desde ahi nunca ponho os olhos em certos casarões sombrios que os não imagine logo povoados de dramas horrendos. Falam-me de hyenas... Conheço uma: o homem...
Como a morta-viva permancesse immovel, o urutú humano repetiu o convite, em voz baixa, num tom cortante de ferocidade glacial.
— "Sirva-se, faça o favor ! E fisgando, elle mesmo, a nojenta coisa, collocou-a gentilmente no prato da mulher.
Novas tremuras agitaram a martyr. Seu rosto macillento contorceu-se em esgares e repuxos nervosos, como se o tocasse a corrente electrica. Ergueu a cabeça, dilatou para mim as pupillas vitreas, e ficou assum uns instantes, como á espera dum milagre impossivel. Naquelles olhos de desvario li o mais pungente grito de soccorro que jámais a afflicção humana calou...
O milagre não veio — infame que fui! — e aquelle lampejo de esperança, o derradeiro, talvez, que lhe brilhou nos olhos, apagou-se num lancinante cerrar de palpebras. Os tiques nervosos diminuiram de frequencia, cessaram. A cabeça descaiu-lhe de novo para o seio, e a morta-viva, revivida um momento, reentrou na morte lenta do seu marasmo somnambulico. Emquanto isso, o urutú espiava-nos de esguelha, e ria-se por dentro, venenosamente...
Que jantar ! Verdadeira cerimonia funebre transcorrida num escuro carcere da Inquisição. Nem sei como digeri aquelles feijões !
A sala tinha tres portas, uma abrindo para a cozinha, outra para a sala de espera, e terceira para a dispensa. Com os olhos já affeitos á escuridade eu divisava melhor as coisas, e, emquanto aguardavamos o café, corri-os pelas paredes, pelos moveis, distrahidamente. Depois, como a porta da dispensa estivesse entreaberta, enfiei-os por ella a dentro. Vi lá umas brancuras pelo chão — saccos de mantimento — e, pendurado a um gancho, uma coisa preta que me intrigou. Manta de carne secca ? Roupa velha ? Estava de rugas na testa, a decifrar a charada, quando o urutú, percebendo-o, silvou em tom cortante:
— E' curioso? O inferno está cheio de curiosos, moço...
Vexadissimo, mas sempre em guarda, achei de bom conselho engulir o insulto e calar-me. Calei-me. Apesar disso, o homem, depois duma pausa, continuou, entre manso e ironico:
— Coisas da vida, moço. Aqui a patrôa péla-se por um naco de bugio moqueado, e alli dentro está um para abastecer este pratinho... Já comeu bugio moqueado, moço?
— Nunca ! Seria para mim o mesmo que comer gente...
— Pois não sabe o que perde !... philosophou elle diabolicamente piscando os olhinhos de cobra.
Aqui o jogo interrompeu a historia. Melchor estava collocado e Gaspar, com tres pontos, sacava para Ugarte. Houve luta, mas um "camarote" infeliz de Gaspar deu o ponto a Ugarte. "Pintou" a 13, que eu não tinha; jogo vae, jogo vem, despintou a 13 e deu a 23. Pela terceira vez Ugarte estragara-me o triangulo. Quiz insistir, mas não pude. A historia estava no apogêo e antes "perder de ganhar" a proxima quiniela do que perder um capitulo da tragedia. Fiquei no logar, attento, a ouvir o sujeito que continuava a sua historia, pachorrentamente:
— "Quando me vi na estrada, longe daquelle antro, criei alma nova. Fiz cruz na porteira : aqui, nunca mais ! Credo ! E abri de galopada pela noite a dentro...
Passaram-se annos. Um dia, em Tres Corações, tomei a serviço um preto de nome Estevão. Traquejado da vida, e serio, mezes depois virava Estevão a minha mão direita. Para um rodeio, para curar uma bicheira, para uma commissão de confiança, não havia outro. Negro, quando acerta de ser bom, vale por dois brancos. Estevão ia além — valia tres. Mas não me bastava. O movimento crescia e elle sózinho não dava conta do recado. Empenhado em descobrir um novo auxiliar que o valesse perguntei-lhe uma vez:
— Não teria você, por acaso, algum irmão da sua força ?
— Tive, respondeu o preto, tive o Leandro, mas o coitado não existe mais...
— De que morreu ?
— De morte matada. Foi morto a rabo de tatú... e comido.
— Comido ? repeti com assombro.
— E' verdade. Comido por uma mulher.
A historia complicava-se e eu, aparvalhado, esperei a decifração.
— Leandro, continuou elle, era um rapaz bem apessoado, e bom para todo o serviço. Trabalhava no Tremedal, numa fazenda em...
—... em Matto Grosso ? Do coronel Teotonio ?
— Isso ! Como sabe ? Ah ! esteve lá !... Pois dê graças de estar vivo, que entrar na casa do carrasco era facil, mas sahir ? !... Deus que me perdôe, mas aquillo foi a maior peste que o raio do diabo do barzabú do canhoto botou no mundo !...
— O urutú... murmurei, recordando-me. E' isso mesmo...
— Pois o Leandro — não sei que intrigante malvado inventou que elle... que elle, com perdão da palavra, andava com a patrôa, uma senhora muito branca, que parecia uma santa. O que houve, se houve alguma coisa, Deus sabe. Para mim, tudo foi feitiçaria da Liduina, mulata amiga do coronel. Mas, innocente ou não, o caso foi que o pobre Leandro acabou no tronco, lanhado a chicote. Uma novena de martyrio, "lepte ! lepte !" E pimenta em cima... Morreu. Depois que morreu, foi moqueado.
— ? ? ?
— Pois então ! Moqueado, sim, como um bugio. E comido, dizem. Penduraram-lhe a carne na dispensa e todos os dias vinha á mesa um pedacinho delle, para a patrôa comer... A coitada..."
Mudei-me de logar. Fui assistir o fim da quiniela a cincoenta passos de distancia. Mas não pude acompanhar o jogo. Por mais que arregalasse os olhos, olhava para a "cancha" mas não via coisa nenhuma, e até hoje não sei se deu ou não deu a 13...
Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.
Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.
Todas as obras publicadas antes de 1.º de janeiro de 1929, independentemente do país de origem, se encontram em domínio público.
A informação acima será válida apenas para usos nos Estados Unidos — o que inclui a disponibilização no Wikisource. (detalhes)
Utilize esta marcação apenas se não for possível apresentar outro raciocínio para a manutenção da obra. (mais...)