JUNHO. Manhã de neblina. Vegetação entanguida de frio. Em todas as folhas o recamo de diamantes com que as adereça o orvalho.
Passam colonos para a roça, retransidos, deitando fumaça pela bocca.
Frio. Frio de geada. desses que matam passarinhos e nos põem sorvete dentro dos ossos.
Sahiaramos cedo, a ver cafesaes, e alli pararamos, no viso do espigão, ponto mais alto da fazenda. O major, dobrando o joelho sobre a cabeça do socado, voltou o corpo para o mar de café, aberto ante os nossos olhos, e disse, num gesto largo:
— Tudo obra minha, veja !
Vi. Vi e comprehendi-lhe o orgulho, sentindo-me orgulhoso tambem de tal patricio. Aquelle desbravador de sertões era uma força creadora, dessas que ennobrecem a especie humana.
— Quando adquiri esta gleba, era tudo matta virgem, de ponta a ponta. Rocei, derrubei, queimei, abri caminhos, rasguei vallos, estiquei arame, construi pontes, ergui casas, arrumei pastos, plantei café — fiz tudo. Trabalhei como negro captivo durante quatro annos a fio. Mas venci. A fazenda está formada, veja !
Vi. Vi o mar de café ondulando pelos seios da terra, disciplinado em fileiras de absoluta regularidade. Nem uma falha ! Era um exercito em pé de guerra, mas bisonho ainda. Só no anno vindouro entraria em campanha. Até alli, os primeiros fructos não passavam de escaramuças de colheita. E o major, chefe supremo do exercito verde, por elle creado, disciplinado, preparado para a batalha decisiva da primeira safra grande, a que liberta o fazendeiro dos onus da formação, tinha um olhar orgulhoso de pae deante de filhos que não mentem á estirpe.
O fazendeiro paulista é alguma cousa séria no mundo. Sua energia crea. Cada fazenda é uma victoria sobre a fereza retractil dos elementos brutos, colligados na defesa da virgindade aggredida. Seu esforço de gigante paciente nunca foi cantado pelos poetas, mas muita epopéa por ahi ha que não vale a destes heroes do trabalho silencioso. Tirar uma fazenda do nada é proeza formidavel. Alterar a ordem da natureza, vencel-a, impor-lhe uma vontade, canalisar-lhe as forças de accôrdo com um plano preestabelecido, dominar a replica eterna do mato damninho, disciplinar os homens da lide,quebrar a força das pragas... — batalha sem tréguas, sem fim, sem momento de repouso, e, o que é peior, sem a certeza plena da victoria. Colhe-a, muitas vezes, o credor, um onzeneiro que adeantou uns patacos carissimos, e ficou, a seu salvo, na cidade, mãos encruzadas na barriga, de cocoras num titulo de hypotheca, espiando o momento opportuno de cair sobre a presa como um gavião. — Realmente, major, isto é de enfunar o peito ! E' deante de espectaculos destes que vejo a mesquinharia dos que lá fóra, commodamente. parasitam o trabalho do agricultor.
— Diz bem. Fiz tudo, mas o lucro maior não é meu. Tenho um socio voraz que me lambe, elle só, um quarto da producção: o governo. Sangram-na, depois, as estradas de ferro—mas destas não me queixo, que dão alguma coisa em troca. Já não digo o mesmo dos tubarões do commercio, esse cardume de intermediarios que começa alli em Santos, no zangão, e vae, numa cadeia. até o torrador americano. Mas não importa ! O café dá para todos, até para a besta do productor... concluiu pilheriando.
Tocamos os animaes a passo, com os olhos sempre presos no cafesal intermino, Sem um defeito de formação. as parallelas de verdura ondeavam, acompanhando o relevo do solo, até se confundirem, ao longe. em massa uniforme. Verdadeira obra d'arte em que o homem, sobrepondo-se á natureza, impunha-lhe o rythmo da symetria.
— No emtanto, continuou o major, a batalha não está ganha ainda. Contrahi dividas; a fazenda está hypothecada a judeus francezes. Não venham as colheitas que espero e serei mais um vencido pela fatalidade das coisas. A natureza. depois de subjugada, é mãe : mas o credor é sempre carrasco...
A espaços, perdidas na onda verde, perobeiras sobreviventes erguiam fustes contorcidos como galvanizados pelo fogo numa convulsão de dôr. Pobres arvores ! Que destino triste. verem-se um dia arrancadas á vida em commum e insuladas na verdura rastejante do café, como rainhas escravas á cola de um carro de triumpho ! Orphãs da matta nativa, como não hão de chorar o conchego de outr'ora ! Vêde-as. Não têm o desgarre, o frondoso de copa das que nascem em campo aberto. Seu engalhamento. feito para a vida apertada da floresta, parece agora grotesco ; sua altura desmesurada, em desproporção com a fronde, provoca o riso. São mulheres despidas em publico. hirtas de vergonha, não sabendo que parte do corpo esconder. O excesso de ar as atordôa, o excesso de luz as martyrisa — affeitas que estavam ao espaço exiguo e á penumbra somnolenta dum habitat millenario.
Fazendeiros desalmados — não deixeis nunca arvores núas pelo cafesal... Cortae-as todas, que nada mais pungente do que forçar uma arvore a ser grotesca.
— Aquella perobeira alli, disse o major, deixei-a para assignalar o ponto de partida deste talhão. Chama-se a peroba do Ludgero, um bahiano valente que morreu ao pé della, estrepado numa jissara...
Tive a visão do livro aberto que seriam para o fazendeiro aquellas paragens, e disse:
— Como tudo aqui lhe ha de falar á memoria !
— E' isso mesmo. Tudo me fala á recordação. Cada tôco de pau, cada pedreira, cada volta do caminho tem uma historia que sei, tragica ás vezes, como essa da peroba, ás vezes comica—pittoresca sempre. Alli...— está vendo aquelle tôco de jerivá ? Foi por uma tempestade de fevereiro. Eu abrigára-me num rancho coberto de sapé, e lá, em silencio, esperavamos, eu e a turma, o fim do diluvio, quando estalou um raio, em cima quasi das nossas cabeças.
— Fim de mundo, patrão ! — lembro-me — disse, numa careta de pavor, o defunto Zé Coivara... Parecia !... Mas foi apenas o fim dum velho coqueiro do qual resta hoje — sic transit... esse pobre tôco... Cessada a chuva, encontramol-o desfeito em ripas.
Mais adeante abria-se a terra em bossoróca vermelha, esbarrondada em colleios até morrer no corrego. O major apontou-a, dizendo :
— Scenario do primeiro crime commettido na fazenda. Rabo de saia, já se sabe. Nas cidades e na roça saia e pinga são o movel de todos os crimes. Esfaquearam-se aqui dois cearenses. Um acabou no lugar; outro cumpre pena na correcção. E a saia, muito contente da vida, mora com o tertius... A historia de sempre.
E assim, de evocação em evocação, ás suggestões que pelo caminho iam surgindo, chegamos á casa de moradia onde nos esperava o almoço. Almoçamos, e não sei si por boa disposição creada pelo passeio matutino ou por merito excepcional da cozinheira, o almoço desse dia ficou-me na memoria gravado para sempre. Não sou poeta, mas si Apollo algum dia me der na cabeça o estalo do padre Vieira. juro que antes de cantar Lauras e Natercias hei de fazer uma belleza de ode a esse almoço sem par, unica saudade gustativa com que descerei ao tumulo. Em seguida, emquanto o major attendia á correspondencia, sahi a espairecer pelo terreiro, onde me puz de conversa com o administrador. Soube por elle da hypotheca que onerava a fazenda e da possibilidade de outro, não o autor, vir a colher o fructo do penoso trabalho.
— Mas isso, esclareceu o homem, só no caso de muito azar — chuva de pedra ou geada, daquellas que não vêm mais.
— Que não vêm mais, porque ?
— Porque a ultima geada grande foi em 95. D'ahi para cá as coisas endireitaram. O mundo. com a idade, muda, como a gente. As geadas. por exemplo, vão-se acabando. Antigamente ninguem plantava café onde o plantamos hoje. Era só meio morro acima. Agora, não. Viu aquelle cafezal do meio ? Terra bem baixa. no emtanto, se bate geada alli. é sempre coisinha—um tostado leve. De modo que o patrão, com uma ou duas colheitas, paga a divida e fica o fazendeiro mais "prepotente" do municipio.
— Assim seja, que grandemente o merece.
Deixei-o. Dei umas voltas, fui ao pomar, estive no chiqueiro vendo brincar os leitõesinhos. e depois subi. Estava um preto dando nas venezianas da casa a ultima demão de tinta. Porque as pintam sempre de verde ? Interpellei-o. Mas o preto não se embaraçou. Respondeu, sorrindo :
—Pois veneziana é verde como o céo é azul. E' da natureza della...
Acceitei a theoria e entrei.
A' mesa a conversa gyrou em torno da geada.
— E' o mez perigoso, este, disse o major. O mez da afflicção. Por maior firmeza que tenha um homem, treme nesta época. A geada é um eterno pesadello. Felizmente a geada não é mais o que era. Já nos permitte aproveitar muita terra baixa em que os antigos nem por sombras plantavam um só pé de café. Mas apezar disso, um que facilitou, como eu, está sempre com a pulga atraz da orelha. Virá ? Não virá ? Deus sabe !...
Seu olhar mergulhou pela janella, numa sondagem profunda ao céo limpido.
— Hoje, por exemplo, está com geito. Este frio fino, este ar parado...
Ficou a scismar uns momentos. Depois, espantando a nuvem, murmurou :
— Não vale a pena pensar nisto. O que tem de ser lá está escripto no livro do destino.
— Livra-te dos ares !... objectei.
— Christo não entendia de lavoura, replicou, sorrindo.
E a geada veio. Não geadinha mansa, de todos os annos, mas calamitosa, geada cyclica, trazidas em ondas, da Argentina.
O sol da tarde, mortiço, dera uma luz sem luminosidade, e raios sem calor nenhum. Sol boreal , tiritante. E a noite caira rapida, sem preambulos. Deitei-me cedo, batendo o queixo e na cama, apesar de enleado em dois cobertores, permaneci entanguido uma boa hora antes que me viesse ferrar o somno. Acordou-me o sino da fazenda, pela madrugada e, sentindo-me enregelado, com os pés a doer, ergui-me para um exercicio violento, unico remedio efficaz em casos desses. Sahi para o terreiro. O relento estava de cortar as carnes — mas que maravilhoso espectaculo ! Brancuras por toda a parte. Chão, arvores, gramados e pastos eram, de ponta a ponta, um só atoalhado branco. As arvores, immoveis, inteiriçadas de frio, pareciam emersas dum banho de cal. Rebrilhos de gelo pelo chão. Aguas envidradas. As roupas dos varaes, têsas, como endurecidas em gomma forte. As palhas dos terreiros, os sabugos de ao pé do côcho, a telha dos muros, o topo dos moirões, a vara das cercas, o rebordo das taboas — tudo polvilhado de brancuras, lactescente, como chovido por um sacco de farinha. Maravilhoso quadro ! Invariavel que é a nossa paizagem, sempre nos mesmos tons o anno inteiro, encantava sobremodo vel-a de subito mudar, e vestir-se dum esplensoroso véo de noiva — noiva da morte, ai !...
Por algum tempo caminhei a esmo, arrastado pelo esplendor da scena. O maravilhoso quadro de sonho breve morreria, apagado da tela pela esponja de ouro do sol. Já pelos topes, e faces de batedeira, andavam os raios na faina de restaurar a verdura. Abriam manchas verdes no branco da geada, dilatavam-nas, entremostrando nesgas do verde submerso.
Só nas baixadas, encostas noruegas ou sitios sombreados pelas arvores, a brancura persistia ainda, contrastando sua nitida frialdade com os tons quentes resurrectos. Vencera a vida, guiada pelo sol. Mas a intervenção do fogoso Phebo, apressada de mais, transformára em desastre horroroso a nevada daquelle anno — a maior de quantas deixaram marca nas embaúbeiras de São Paulo. A resurreição do verde fôra apparente. Estava morta a vegetação. Dias depois, por toda a parte, a vestimenta do solo era um burel immenso, onde a sepia exhibia a gramma inteira dos seus tons reseccos. Pontilhava-o apenas, cá e lá, o verde sujo dos eucalyptos, o invencivel verde-negro das laranjeiras e o esmeraldino sem vergonha da vassourinha.
Quando regressei, sol já alto, estava a casa retransida no pavor das grandes catastrophes. Só então me acudiu que o bello espectaculo que eu até alli só encarára pelo prisma esthetico. tinha um reverso tragico: a ruina do heroico fazendeiro. E procurei-o, ancioso. Tinha sumido. Passara a noite em claro, disse-me a mulher; de manhã, mal clareara, fôra para a janella, e lá permanecera immovel, observando o céo atravez dos vidros. Depois, sahira, sem ao menos pedir café, como era seu costume. Andava a examinar a lavoura, provavelmente.
Devia ser isso. Mas como tardasse a voltar — onze horas, e nada — a familia entrou-se de apprehensões. Meio dia. Uma hora. duas, tres — e nada. O administrador. que a mandado da mulher, sahira a procural-o, voltou á tarde, mas sem noticias.
— Bati tudo. e nem rasto. Estou com medo d'alguma coisa... Vou espalhar gente por ahi, á cata.
D. Anna, afflicta. de mãos enclavinhadas. só dizia uma cousa:
— Que será de nós, santo Deus! Quincas é capaz duma loucura...
Puz-me em campo também, em companhia do capataz. Corremos todos os caminhos, varejamos grotas em todas as direcções — inutilmente. Caiu a tarde. Caiu a noite—a noite mais lugubre da minha vida — noite de desgraça e afficção. Não dormi. Impossivel conciliar o somno naquelle ambiente de dôr, sacudido de chôro e soluços. Certa hora os cães latiram no terreiro, mas silenciaram logo. Rompeu a manhã, glacial como a da vespera. Tudo appareceu geado, novamente. Veiu o sol. Repetiu-se a mutação de scena. Esvaiu-se a alvura e o verde torrado da vegetação envolveu a paizagem num sudario de desalento. Em casa repetiu-se o corre-corre do dia anterior — o mesmo vae-vem. os mesmo "quem sabe ?", as mesmas pesquizas inuteis.
A' tarde, porém, — tres horas — um camarada appareceu esbaforido, gritando de longe. no terreiro:
— Encontrei ! Está perto da bossoroca !...
— Vivo ? perguntou o capataz.
— Vivo, sim, mas...
D. Anna surgira á porta da casa e ao ouvir a boa nova exclamou, chorando e sorrindo:
— Bemdito sejas, meu Deus !...
Minutos depois partiamos todos de rumo á bossoróca e a cem passos della avistavamos um vulto ás voltas com os caféeiros requeimados. Approximamo-nos. Era o major. Mas em que estado ! Roupa em frangalhos, cabellos sujos de terra, olhos vitreos, desvairados, tinha nas mãos uma lata de tinta e um pincel. Não deu fé da nossa chegada. Não interrompeu o serviço. Continuou — continuou a pintar, uma a uma. do risonho verde esmeraldino das venezianas, as folhas requeimadas do cafezal morto...
D. Anna, estarrecida, entreparou attonita. Depois, comprehendendo a tragedia. rompeu em chôro convulsivo?
— Louco... louco, meu Deus !
Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.
Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.