ATO PRIMEIRO

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Escritório em uma casa de alugar escravos. À esquerda, secretária; à direita, sofá sobre o qual está um número do Jornal do Commércio; cadeiras. Porta ao fundo, à esquerda. Encostadas à parede do fundo, à esquerda, uma trouxa e uma esteira suja enroladas.


CENA I

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SALAZAR, depois UM CAIXEIRO. SALAZAR escreve por algum tempo, sentado à secretária; toca o tímpano; entra o caixeiro.


O CAIXEIRO (Da esquerda alta.) - Pronto!

SALAZAR - Levou os negros à Polícia?

O CAIXEIRO - Sim, senhor; já estão de volta.

SALAZAR - Bem. Seguem para cima, amanhã, no expresso das quatro horas e meia. Às três em ponto, o senhor deverá estar de pé, a fim de poder achar-se na Estação às quatro. São quarenta e quatro cabeças, incluindo o Lourenço. Tome lá. Vá à minha casa e entregue este bilhete a minha mulher. Ela deve entregar-lhe o Lourenço, e o senhor o reunirá ao lote de escravos que vai embarcar. (Levantando-se, passa à direita.) Resolvi desfazer-me daquele tratante, haja o que houver, e nada me demoverá deste propósito. Pode ir. (O Caixeiro sai pelo fundo.)



CENA II

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SALAZAR, SEBASTIÃO


SEBASTIÃO (Da esquerda alta.) - Possuímos a melhor fazenda que existe atualmente no mercado do Rio de Janeiro; não achas, Salazar?

SALAZAR (Sentando-se no sofá.) - Gente superfina. Os nossos comitentes do Norte capricharam desta vez. Só a renque da crioulada vale vinte e cinco, alto e mau, de olhos fechados. É para fazer água na boca! Há pouco, quando o lote passava na rua, o Arruda da Prainha lançou-lhe um olhar de sete palmos e meio. É só para os moer!

SEBASTIÃO - O Arruda nunca recebeu nem receberá uma partida de negros como esta, que veio pelo Ceará.

SALAZAR - Não há um só alcaide. Gente limpa, escorreita, moça, reforçada e dócil, que faz gosto. Só do Ceará nos vieram dez crioulos retintos, que valem o seu peso em ouro. Se tu não os venderes a vinte e cinco ou trinta dias, não te chamarás Sebastião de Miranda, o famoso negreiro fluminense, sócio e amigo íntimo de Pedro Salazar, negociante de grosso trato e fazendeiro sem hipotecas.

SEBASTIÃO - Sim, espero fazer bom negócio. Por fora a gente é de primeira qualidade, não há dúvida, mas por dentro! Quem é que pode lá conhecer mazelas de negro? Negro é bicho do diabo, Salazar! As vezes estão cheios de moléstias ocultas, que só confessam quando lhes faz conta.

SALAZAR - Nem tanto! Pois hão de iludir os médicos?

SEBASTIÃO - Ora os médicos, os médicos! Por cinco mil réis de mais ou de menos, fazem a inspeção conforme queremos.

SALAZAR - Negro não tem licença para estar doente. Enquanto respira, há de poder com a enxada, quer queira, quer não.

SEBASTIÃO - De acordo, mas hoje anda aí em moda tratá-los bem... com humanidade... não sei que mais...

SALAZAR - Tolices! Humanidade para negro! Para moléstia de negro há um remédio supremo, infalível e único: o bacalhau. Deem-me um negro moribundo e um bacalhau, que eu lhes mostrarei se o não ponho lépido e lampeiro com meia dúzia de lambadas!

SEBASTIÃO - Perfeitamente de acordo. Mas, quer queiramos, quer não, temos de contemporizar com essas idéias... Os tais senhores abolicionistas...

SALAZAR (Erguendo-se e descendo ao proscênio.) - Psiu! Não me fales nessa gente, pelo amor de Deus! Só o nome dessa cáfila de bandidos que ultimamente me têm feito perder mais de oitenta contos, irrita-me de um modo incrível!

SEBASTIÃO - Também a mim. Regra geral e sem exceção: sujeito que nada tem a perder e não sabe onde cair morto declara-se abolicionista.

SALAZAR - Eu vou mais adiante: sujeito que tentou sem resultado todos os empregos, profissões e indústrias, e em nenhum conseguiu reputação ou fortuna, por ser incapaz, indolente, prevaricador ou estúpido, arvora-se por último em abolicionista, para ver se deste modo segura os pirões.

SEBASTIÃO- E com que desprezo nos chamam de escravocratas! Dizem que negociamos em carne humana, quando são eles que traficam com a boa-fé dos papalvos, e lhes vão limpando as algibeiras, por meio de discursos e conferências!

SALAZAR - Exploram o elemento servil pelo avesso, sem os percalços do ofício. Ao menos nós damos aos negros casa, cama, comida, roupa, botica e bacalhau.

SEBASTIÃO - Principalmente bacalhau. Porque o negro, sem ele, é uma utopia! (Indo examinar uns papéis à secretária.) Recebeste hoje carta do Evaristo?

SALAZAR (No proscênio.) - Sim; a safra promete ser excelente. Quatro mil arrobas de primeira. Tudo na melhor ordem.

SEBASTIÃO - Com um administrador como o Evaristo, vale a pena ser fazendeiro. É o nosso factótum!

SALAZAR - Honesto, ativo, fiel; longa prática do eito e chicote sempre na mão!

SEBASTIÃO - Basta que visitemos uma ou duas vezes por ano a nossa fazenda do Pouso Alto, para que as coisas nos corram sem novidade. (Salazar desce ao proscênio.) Mas então levo ou não levo o Lourenço?

SALAZAR - Sem dúvida; desta vez ele não escapa. Irra! que já ando aborrecidíssimo com aquela peste! Preciso descartar-me dele, oponha-se quem se opuser! Nada me enraivece mais que ver um negro emproado! Já por diversas vezes tenho querido tirar-lhe a proa com uma surra mestra; mas minha mulher, minha filha e meu filho metem-se de permeio e fazem-me uma choradeira de todos os diabos!

SEBASTIÃO - Pois ainda és desse tempo? Atendes a súplica de família, quando se trata de surrar negro?

SALAZAR - Pois se eles sempre se colocam em sua frente para defendê-lo?! Ainda anteontem, minha mulher quase apanhou uma lambada que era destinada ao Lourenço! Protege-o escandalosamente, alegando ser ele cria da família, e não sei mais o quê... E há vinte e cinco anos, desde o meu casamento, que aturo as insolências daquele patife! Leva a ousadia ao ponto de não abaixar a vista quando fala comigo! Oh! mas desta vez, vendo-o definitivamente!



CENA III

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OS MESMOS, SERAFIM


SERAFIM (Da porta do fundo.) - O Senhor Pedro Salazar?

SALAZAR - Que deseja, senhor? (Serafim entrega-lhe uma carta.)

SEBASTIÃO (À parte, examinando Serafim.) - Que tipo! Polícia secreta, flor da gente, ou poeta! (Vai sentar-se no sofá e lê o Jornal do Commércio.)

SALAZAR (Depois de ler a carta.) - Serafim Pechincha é o senhor?

SERAFIM - Em carne e osso.

SALAZAR - O compadre Ribeiro escreve-me: (Lê.) "O portador é o Senhor Serafim Pechincha, moço, filho de uma boa família provinciana, o qual se acha desempregado e reduzido à expressão mais simples. Parece ser ativo; é inteligente. Vê se o podes ocupar em algum serviço."

SERAFIM - Redação simples, mas eloqüente!

SALAZAR - A recomendação do compadre Ribeiro é muito valiosa; porém, creio, não estranhará que eu procure saber das suas habilitações e precedentes. É natural... não acha?

SERAFIM - Naturalíssimo. Julgo do meu dever falar-lhe com toda a franqueza, para que me fique conhecendo, e depois não diga que sim, mas que também... Eu cá sou despachado.

SEBASTIÃO (À parte.) - A linguagem não é de polícia secreta!

SALAZAR - Diga.

SERAFIM - Começo por declarar que sou um tipo arrebentado.

SALAZAR - Arrebentado?

SERAFIM - Arrebentadíssimo. Consta-me, por informações de terceiro, que pertenço a uma boa família provinciana, ao que, aliás, não ligo muito crédito.

SALAZAR - Como assim?

SEBASTIÃO (À parte.) - Flor da gente com certeza!

SERAFIM (À Salazar.) É verdade; não tenho a mais vaga reminiscência de pai nem mãe. Cuido mesmo que já nasci órfão. Oh! triste sina! (Procura o lenço e não o acha; limpa uma lágrima à aba do paletó.) Quando, há tempos, o príncipe Natureza dissertou sobre o choque de pai e mãe, senti que o coração se me dilacerava de saudades.

SEBASTIÃO (À parte.) - Agora parece poeta.

SALAZAR - Mas não tem parente algum?

SERAFIM - Lá chegarei... gosto de ir por partes... Aos dez anos, tenho lembrança de que um tio nos meteu, a mim e a dois irmãos, em uma espécie de colégio na Rua de São Diogo.

SALAZAR - Mas até os dez anos? De nada se recorda?

SERAFIM - É célebre!

SERAFIM - Celebérrimo! Mas todo eu sou celebérrimo! Como dizia, meteram-me no colégio, a mim, ao Chico e ao Cazuza. Aí estivemos três anos, durante os quais passamos fome de cachorro. O diretor era mais sovina que grosseiro, e mais estúpido que sovina e grosseiro. Um belo dia, nós, não podendo suportá-lo, tratamos uma conspiração, aplicamos-lhe uma coça de marmeleiro, e fugimos do colégio.

SALAZAR (À parte.) - Bom precedente!

SERAFIM - Daí em diante, a minha vida tem sido um romance... sem palavras. Quem lhe dera, senhor Salazar, possuir de contos de réis os dias que não tenho comido! (Gesto de Salazar.) Não se admire disto! não me peja dizer a verdade nua e crua... Eu sou do tipo arrebentado. Há dias em que acredito mais no balão Júlio César do que numa nota de quinhentos réis! Tenho tentado todos os empregos: fui manipulador de cigarros durante dois meses, exerci o nobre mister de testa-de-ferro, fiz-me cambista, redator do Incendiário, e até representei no teatro...

SEBASTIÃO (Vivamente.) - Ah! foi cômico?

SERAFIM - Não, senhor: fiz uma das pernas do elefante do Ali-babá, na Fênix.

SALAZAR - Mas que fim levaram seus irmãos?

SERAFIM - Ah! esses foram mais felizes que eu; arranjaram-se perfeitamente.

SALAZAR - Estão empregados?

SERAFIM - Ou coisa que o valha: o Chico meteu-se no Hospício de Pedro II.

SALAZAR - Como enfermeiro?

SERAFIM - Como doido.

SALAZAR - Enlouqueceu?

SERAFIM - Qual! teve mais juízo que eu; cama, mesa, médico, uma ducha de vez em quando para refrescar as idéias, e uma camisola para o frio. Afinal, é um meio de vida como outro qualquer!

SALAZAR (Surpreso.) E o?... Como se chama?

SERAFIM O Cazuza? (Assobia.) Um finório! Tantos empenhos meteu, que conseguiu um lugar no Asilo da Mendicidade.

SALAZAR Ah! ... como inspetor de turma?

SERAFIM Qual inspetor! qual turma! Como mendigo!

SEBASTIÃO (À parte.) - É um tipo único!

SERAFIM - Vive hoje muito tranqüilo e satisfeito a desfiar estopa. Estão ambos arranjados: eu é que ainda não criei juízo, e vivo ao deus-dará!

SALAZAR - Por que não se torna abolicionista?

SERAFIM (Recuando indignado e tomando uma atitute teatral.) - Senhor João Salazar...

SALAZAR - Pedro... Pedro, se me faz favor...

SERAFIM - Senhor Pedro Salazar! creio que todas as misérias que acabei de lhe relatar não o autorizam a cuspir-me em face tal injúria! Sou um tipo arrebentado, mas, graças a Deus, ainda não desci tão baixo!

SALAZAR Então odeia?...

SERAFIM - Os abolicionistas? Não os odeio: desprezo-os!

SEBASTIÃO (Levantando-se entusiasmado e apertando-lhe a mão.) - Toque!

SALAZAR - Toque (Serafim tem cada uma das mãos apertadas por cada um dos sócios.) De hoje em diante pode considerar-se empregado de Salazar & Miranda!

SEBASTIÃO - Entende alguma coisa de negócio?

SERAFIM - Pouco, mas - modéstia à parte - sou muito inteligente. Com qualquer coisa, me ponho em dia... Se me dessem uma explicação sumária...

SEBASTIÃO - Pois não... agora mesmo... (Tomando-lhe o braço.) Venha comigo...

SERAFIM (Saindo, à parte.) - Que dirão os meus colegas do Clube Abolicionista Pai Tomás?! (Sebastião sai com Serafim pela esquerda alta.)



CENA IV

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SALAZAR, GUSTAVO


SALAZAR (Só.) - Desta gente é que eu preciso!

GUSTAVO (Entra do fundo amarrotando um jornal que tem na mão.) - Sacripantes! Safardanas! Leia isto, meu pai, veja se o infame mofineiro que publicou este aranzel contra vosmecê e a nossa família não merece que se lhe corte a cara a vergalho! Leia isto!

SALAZAR - Não, não leio! Apesar de não ligar a mínima importância ao grasnar desses miseráveis gazetilheiros, que só andam à cata de quem os compre, as suas verrinas deixam-me numa irritação nervosa, que me tira o apetite. Ah! se eu pilhasse os tais abolicionistas todos no eito!

GUSTAVO - Quem sabe? Pode ser que um dia...



CENA V

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OS MESMOS, LOURENÇO, o CAIXEIRO


CAIXEIRO - Cá está o mulato.

SALAZAR (A Lourenço.) - Prepara a tua trouxa; tens que seguir amanhã para cima.

LOURENÇO (Fita-o e depois diz pausadamente.) - Mais nada?

SALAZAR (Furioso.) - Mais nada! Desavergonhado! Patife! Cão! Puxa já daqui!

LOURENÇO - Não lhe quis faltar ao respeito... Este é o meu modo de falar.

SALAZAR - Modo de falar! Pois negro tem modo de falar? Quando estiveres em minha presença, abaixa a vista, ladrão! (Lourenço não lhe obedece.) Abaixa a vista, cachorro! Corto-te a chicote se o não fizeres! (Lourenço conserva-se imperturbável. Salazar avança com um chicote, mas Gustavo o contém.)

GUSTAVO - Peço por ele, meu pai! Lourenço é um escravo dócil e obediente. (A Lourenço, com brandura.) Abaixa a vista, Lourenço. (Lourenço obedece.) Ajoelha-te! (Idem.) Pede humildemente perdão a meu pai de lhe não haveres obedecido incontinenti.

LOURENÇO - Peço humildemente perdão a meu senhor...

SALAZAR - Puxa daqui, burro! (Lourenço sai.)



CENA VI

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SALAZAR, GUSTAVO


GUSTAVO - Vai mandá-lo para fora?

SALAZAR - Definitivamente. Escusam de pedir-me. Cada vez tem menos vergonha! é uma peste!

GUSTAVO - Nem tanto. Apesar da ojeriza e do desprezo que tenho por tudo quanto me cheira a negro cativo, conservo alguma estima pelo Lourenço.

SALAZAR - As tais amizades do senhor moço! Viu-te nascer, trouxe-te ao colo, etc., etc... Olha, podes estar certo de que, na primeira ocasião propícia, ele te envenenará numa xícara de café ou num copo d’água! Ainda és muito moço: não sabes de quanto um negro é capaz!

GUSTAVO - Sei bastante; para esta raça amaldiçoada só há três princípios: o eito, o bacalhau e a força! Mas não posso deixar de abrir uma exceção para o Lourenço...



CENA VII

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OS MESMOS, um COMPRADOR


COMPRADOR - O senhor Pedro Salazar?

SALAZAR - Um seu criado; que deseja?

COMPRADOR - Sei que recebeu, pelo vapor Ceará, uma bela partida de raparigas: desejo comprar-lhe algumas. (Gustavo, durante o diálogo, entretêm-se a cortar com uma tesoura um artigo do Jornal, que trouxe na mão, e guarda o retalho.)

SALAZAR - Tenho o que lhe serve: fazenda nova, bonita e limpa.

COMPRADOR - Pode-se ver?

SALAZAR - Imediatamente. (Toca o tímpano, entra o caixeiro.) Traga as mulatas da Bahia. (Sai o caixeiro.) Crioulas não lhe servem? (Gesto negativo do comprador.) Sim, para o seu negócio... (Abaixando a voz.) É coisa papa-fina e barata.



CENA VIII

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SALAZAR, GUSTAVO o COMPRADOR, SEBASTIÃO, SERAFIM, o CAIXEIRO, três mulatas.


SERAFIM (Empurrando as mulatas.) - Vamos! Depressa! Negro não tem vergonha! Olha que ar de santa tem esta descarada! Tiro-te a santidade com couro cru! Formem as três para este lado!

SALAZAR - Assim! (À parte.) Tenho homem.

SERAFIM (Ao Comprador.) Foi o senhor que pediu as mulatas? Ei-las! Veja que três mucamas esplêndidas? (à parte.) Olá! o Raposo cáften!

GUSTAVO (À parte, indicando Salazar.) - Ainda não achei situação azada para lhe dar o bote... Preciso muito... muito...

SERAFIM (Indicando as mulatas.) - Esta daqui cozinha, lava e engoma perfeitamente. Aquela engoma, lava e cozinha admiravelmente. Aquela outra cozinha, engoma e lava como ninguém ainda cozinhou, lavou e engomou neste mundo.

SEBASTIÃO - Possuem ainda uns dengues baianos, mas que se tiram com o chicote!

SERAFIM - Vai bem servido. (A uma das mulatas.) Faze aí um dengue, para aqui o senhor apreciar. Vamos lá! Dize assim: Ó gentes, ioiô! Mecê tem partes! (As mulatas conservam-se cabisbaixas e silenciosas.) Fala, desavergonhada!

SEBASTIÃO (Baixo a Serafim.) - Deixe-se de patuscadas... O negócio é coisa muito séria.

SALAZAR (Ao Comprador.) - Que tal?

COMPRADOR - Bom frontispício. (A uma mulata.) Abre a boca, rapariga. Boa dentadura! (Passa-lhe grosseiramente a mão pela face e pelos cabelos, vira-a e examina-a de todos os lados.) Boa peça, sim, senhor! Tira fora este pano. (A mulata não obedece.)

SALAZAR - Tira fora este pano; não ouves? (Arranca o pano e atira-o violentamente fora. A mulata corre a apanhá-lo, mas Sebastião empurra-a. Ela volta ao lugar e desfaz-se em pranto, cobrindo os seios com as mãos.}

SEBASTIÃO - Olhem! Quer ter pudor! Onde já se viu isto? Negra com pudor!

SERAFIM - E chora! Ora não querem ver! Cachorra! Daqui a pouco é que hás de chorar deveras!

COMPRADOR (A Salazar, baixo.) - Por esta que está chorando dou vinte e cinco, negócio fechado.

SALAZAR (Baixo.) - Menos de trinta, nem um real... Tem pudor, homem! (A Serafim.) Leve-as. (Sai Serafim, empurrando na sua frente as mulatas. Sai igualmente o Caixeiro.)


CENA IX

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SALAZAR, o COMPRADOR, SEBASTIÃO, GUSTAVO

(Dois grupos. Salazar conversa com o Comprador, Sebastião com Gustavo.)


GUSTAVO (A Sebastião.) - Estou em talas.

SEBASTIÃO - Como sempre.

GUSTAVO - Mas desta vez a coisa é séria, uma dívida de honra!

SEBASTIÃO - Já conheço as suas dívidas de honra: pagar a conta de alguma cocote.

GUSTAVO - Juro-lhe que a coisa é de gravidade. Uma ninharia: quatrocentos mil réis; mas, se os não arranjo, sou bem capaz de fazer saltar os miolos!

SEBASTIÃO - Seria sua primeira ação de juízo.

GUSTAVO - Acha que meu pai me negará esse dinheiro? Vou dar-lhe o bote!

SEBASTIÃO - Se eu fosse seu pai, não lho daria, porque tenho a certeza de que você iria perdê-lo, até o último vintém, na banca francesa.

COMPRADOR (A Salazar.) - Pois então está concluído o negócio. Hoje mesmo virei buscá-las.

SEBASTIÃO (Ao Comprador.) - Mas o senhor ainda não viu toda a gente que temos! Talvez encontre alguma que lhe agrade. Venha contemplá-la. (Saem juntos.)



CENA X

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SALAZAR, GUSTAVO


GUSTAVO - Quero pedir-lhe um favor, meu pai.

SALAZAR - Dinheiro? Não há!

GUSTAVO - Mas...

SALAZAR - Não há, já disse! Não me aborreça!

GUSTAVO - É que...

SALAZAR - Não há quês, nem kás; ganhe-o com o suor de seu rosto, que eu não estou para alimentar vícios de malandros! (Sai.)



CENA XI

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GUSTAVO, depois LOURENÇO


GUSTAVO (Só.) - Estou a braços com um caiporismo medonho! Há três dias que não ganho uma parada! Não me ponho no prego, por ser difícil achar quem me queira! Joguei quatrocentos mil réis sob palavra e não tenho com que os pagar! Os amigos a quem posso recorrer ou já são meus credores, ou são tão forrecas como eu. Palavra que não sei de que expediente lançar mão. (Lourenço entra de mansinho e vem colocar-se junto de Gustavo, sem que ele o veja.)

LOURENÇO - Vossemecê está incomodado?

GUSTAVO - Ah! Lourenço, pregaste-me um susto! Estou incomodado, sim.

LOURENÇO - E Lourenço não pode saber?

GUSTAVO - Ora! Saber para quê? Que remédio podes dar-me? O que eu quero é dinheiro! É de dinheiro que eu preciso! Tu o tens para mo emprestar?

LOURENÇO (Tirando do bolso, dinheiro embrulhado num lenço sujo.) - Aqui estão minhas economias, juntadas vintém por vintém... Se vossemecê precisa, Lourenço faz muito gosto...

GUSTAVO (Abrindo o embrulho e contando avidamente o dinheiro.) - Cento e vinte mil, seiscentos e vinte réis... (À parte.) Soma esquisita! Oh! que palpite! Em meia dúzia de paradas, isto pode render um conto de réis! Lourenço, daqui a pouco te restituirei esse dinheiro e mais vinte mil réis de gratificação. (Sai correndo.)



CENA XII

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LOURENÇO, depois GABRIELA, CAROLINA


LOURENÇO (Ergue os olhos aos céus e enxuga uma lágrima.) - O jogo, sempre o jogo! Não posso, não devo, não quero sair de junto dele.

GABRIELA (Entrando com Carolina.) - Lourenço, onde está o senhor Salazar?

LOURENÇO - No escritório do guarda-livros.

GABRIELA - Carolina, vai lá dentro ter com teu pai. Vê como lhe fazes o pedido. Lembra-te de que ele é arrebatado; só com muita brandura se pode levá-lo...

CAROLINA - Não lhe dê cuidado, mamãe... (Saindo, a Lourenço.) Trata-se de vossemecê senhor Lourenço... Veja lá como lhe queremos bem! (Sai.)



CENA XIII

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LOURENÇO, GABRIELA


LOURENÇO (Baixo e em tom de ameaça.) - Não quero absolutamente afastar-me de junto dele.

GABRIELA (Muito nervosa.) - Sim, sim... Farei tudo quanto estiver ao meu alcance, mas não fales nesse tom, porque se nos ouvem...

LOURENÇO - Não tenhas susto; há vinte e dois anos que guardo este segredo, e ainda não pronunciei uma palavra que pudesse despertar desconfianças. Prometo guardá-lo até à morte, se a senhora fizer que eu me conserve sempre ao lado dele.

GABRIELA - Sim... prometo... prometo... (À parte.) Oh! Deus! mereço eu tamanho castigo? (Alto.) Sai daqui... Aproxima-se o senhor Salazar. (Lourenço sai.)



CENA XIV

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GABRIELA, SALAZAR, CAROLINA


CAROLINA (A Salazar.) - Perdoe ainda esta vez. Garanto-lhe que de hoje em diante ele abaixará a vista quando estiver, em sua presença.

SALAZAR - Tá tá tá! O Lourenço segue amanhã com o lote tocado pelo Sebastião, e vai apanhar café na fazenda, com instruções ao Evaristo para castigá-lo com todo o rigor à menor falta. É resoluço inabalável! Não cederei aos anjos do céu, que venham em comissão.

CAROLINA (Com voz trêmula pela comoção.) - Se as minhas palavras não o comovem, meu pai, ao menos as minhas lágrimas... (Desata em pranto.)

SALAZAR - Valha-me Deus! Vem cá, pequena, dize-me: que interesse têm vocês em proteger aquele tratante?

GABRIELA - Não é interesse, senhor, é amizade. O Lourenço é cria de família... viu-a nascer... e ao Gustavo. Trouxe-os ao colo. Tratou-os sempre com carinho. Além disso, é bom escravo: o senhor, só o senhor antipatiza com ele.

CAROLINA - Sem razão, sem razão. Aquilo nele é natural. Cada qual como nasceu. Vossemecê preferia que o Lourenço fosse desses escravos que na frente se derretem em humilhações e por detrás são inimigos encarniçados de seus senhores?

SALAZAR (Depois de uma pausa.) - Bem... Ainda desta vez, cedo.

AS DUAS - Ah!

SALAZAR - Mas sob uma condição...

CAROLINA - Qual?

SALAZAR - De me deixarem livre e desembaraçadamente ir-lhe ao pêlo, quando não andar muito direitinho.

CAROLINA – Pois bem.

SALAZAR - Levem-no com todos os diabos!

CAROLINA (Abraçando-o.) - Ah! obrigado, paizinho. Lourenço! (Lourenço aparece.) Vamos para casa. Vem conosco.

SALAZAR (A Lourenço.) - Vá lá, mas sem exemplo! Agradeça à sinhazinha, ladrão. (Ouve dentro pancadaria e choradeira.) Que é isto?

GABRIELA (Enquanto Salazar volta as costas.) - Vamos, vamos! (Sai com Carolina. Lourenço acompanha-as.)


CENA XV

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SALAZAR, SERAFIM


SERAFIM (Trazendo um vergalho em uma das mãos e uma grande palmatória na outra.) - Arre! Estreei-me perfeitamente!

SALAZAR - Que foi?

SERAFIM - Esta corja de moleques e negrinhas! Faziam uma algazarra de ensurdecer! Distribuí chicotadas da direita para a esquerda! Não perdi uma!

SALAZAR - Toque! O senhor é o homem que me serve! (Depois de lhe apertar a mão.) Vou vê-los! Vou vê-los! (Sai.)

SERAFIM (Só.) - Que dirão os meus colegas do Clube Abolicionista Pai Tomás?


FIM DO PRIMEIRO ATO