Demorou-se a matrona. Empurrando o rapaz à frente do genro, disse-lhe:

— Aí o tem; há de ser preciso tosá-lo seu tanto, que está muito peludo.

E voltando sobre os pés, foi-se a Sra. Romana à sua obrigação.

— Peludo!... resmoneou o tabelião entre dentes; quando eu o acho delambido demais! Todavia hei de pô-lo a jeito.

Esticou-se o Sebastião no tamborete, equilibrando o gancho dos óculos em cima do beque, abriu a boceta com um estalo sonoro, e sorvida em cada venta a pitada mestra com um estrépito solene, dirigiu a palavra ao Ivo, que o estava espreitando através do acanhamento de se ver metido naquela arriosca.

— Com que então, moço, você quer ser da obrigação deste cartório?

— Se for do gosto de Vossa Mercê; que eu estou pronto a ser não só da obrigação, mas também da devoção.

— Como se entende isto?...

— Saberá Vossa Mercê que isto subentende-se.

— Fale-me raso e chão, moço; que eu não sou homem de remoques.

— Com perdão de Vossa Mercê eu queria dizer que hei de esforçar, não só pela vontade de ganhar, senão pelo gosto de o servir.

O tabelião fungou o resto da pitada, arregaçando as ventas; o que nele equivalia a interjeição de suspeita e desconfiança.

— As falas não são más, resta ver as obras.

Metendo uma costaneira de papel entre o índice e o máximo da mão esquerda, com a direita escolheu na pilha de bacamartes que tinha ao lado um volume.

— Tire-me o traslado desta escritura, disse o Sebastião Ferreira abrindo o volume no lugar onde estava marcado com uma tira de couro.

— É para copiar palavra por palavra? perguntou o Ivo, que não sabia o que era traslado.

— E sem faltar uma vírgula.

— Em que letra quer Vossa Mercê que eu copie? Em letra redonda, cursiva, grifa, itálica ou bastarda?

— Hem! hem! fez o tabelião; embasbacado com aquela nomendatura. Nada, moço; aqui não se querem dessas artes e novidades; que são boas para copistas de pergaminho. Escreva-me letra de mão e bem corrida, como está aí nas notas.

Ajoelhou-se o Ivo do outro lado da mesa, e sacando do bolso o seu tinteiro de chifre e a pena de ganso bem aparada, preparou-se a tirar o traslado do bacamarte reclinado diante dele sobre um enorme cunhete de jacarandá. Tinha o rapaz a maior confiança no seu bonito talhe de letra e esperava sair-se bem das provas; mas surgiu-lhe um embaraço com o qual não contava, e que o fez descoroçoar da, empresa.

Era a escrita do Sebastião Ferreira a mais tabelioa que se pode imaginar; dificilmente conseguiam os velhos escreventes meter-lhe o dente. Uma linha tremida estendendo-se horizontalmente, e com umas pontas que lhe saíam para cima e para baixo, tal era o aspecto desse gregotim indecifrável.

Debruçado sobre o bacamarte, o Ivo concentrava todos os esforços para destrinçar aquele texto emaranhado, e já lhe corria o suor pela testa abaixo, sem que tivesse conseguido soletrar duas palavras.

Extenuado, reconhecendo a impossibilidade de penetrar jamais o sentido daquele hieróglifo, assentou o rapaz dar de mão à empresa, e voltou-se para o tabelião na intenção de comunicar-lhe a resolução em que estava. Mas o Sebastião Pereira, de todo entregue ao desempenho do ofício, não dava fé, nem do que ia pelo cartório, nem mesmo da presença do Ivo, ali, a dois passos dele.

Ficou pois o rapaz com os olhos pregados no tabelião, acompanhando-lhe a pena que ringia sobre o papel e à espera da primeira pausa, para encartar a sua despedida. No mais atento de sua observação estremeceu de susto.

Na porta a que dava costas o tabelião, se abrira uma fresta por onde enfiou o olhar curioso de um cantinho apenas dos mais lindos olhos castanhos, que dar-se podem. Se não fosse a volta da testa de marfim que aparecia no batente da porta, o rapaz não se teria apercebido da aparição.

Esqueceu o Ivo tudo, o cartório onde estava, o tabelião e mais o seu gregotim, para espreitar aquele cantinho de olho que o espiava pela fresta da porta. Era ele capaz de jurar que a dona do olhar de maliciosa se estava rindo dos apertos em que o via.

Com receio de que o surpreendesse o Sebastião no mais doce de seu enlevo, arranjou-se de novo o Ivo em posição de escrever, puxou à frente o grosso in-fólio para lhe servir de baluarte contra os óculos do tabelião, e assentou no alto do papel, segundo as regras caligráficas, a mão pronta a lançar o rasgo da primeira letra no mais asseado bastardo.

Mas sentiu certas cócegas nas pontas dos dedos, e sem saber como, achou-se a fazer a bico de pena a cópia fiel daquela fresta da porta, onde aparecia o céu de uma testa de marfim, e um olhar que era a estrela do tal céu.

Bem percebeu Marta pelos modos, que o moço lhe estava. tirando as feições; e escondeu-se de vergonhosa, mas para voltar logo depois, descobrindo um pouquito mais do rosto. Disfarçava a sonsa, fingindo-se atenta para outro ponto da sala, e a descuido mostrava o lindo perfil; até que de repente sumia-se, como se então somente descobrisse o Ivo a observá-la.

Não obstante as negaças da menina, traçara o rapaz o seu desenho, e aproveitando uma vez em que Marta se mostrava mais, a contemplava com olhos de amante e artista, para dar os últimos toques à figura.

No mais absorto, assustou-o certo ruído cavernoso, semelhante ao ornejo de um jumento, e que não era senão o estrépito da pitada do Sebastião Ferreira, ecoando pelas cavernas ou fossas nasais. Achou-se então o rapaz em face do carão descarnado e impassível do tabelião, que lhe estava observando o pasmo.

— Que faz você aí embasbacado, moço? perguntou o tabelião.

Teve o Ivo um estremeção, que ia dando em terra com o bacamarte. Felizmente segurou-o a tempo, quando ele escorregava pela aba da mesa.

— Estava à espera do senhor tabelião, respondeu Ivo aproveitando a primeira desculpa que lhe acudiu.

— À minha espera!... Não está má!

— Pois não é Vossa Mercê que dita?

— Ditar o que, moço, se já lhe apontei aí a escritura...

— Ah! é para copiar deste livro?...

— Então, moço! E avie-se, que isso de lesmas, não servem cá para escreventes. Quer-se sujeito despachado!

Receoso de ser recambiado do cartório, arranjou-se o Ivo para dar conta da tarefa, e outra vez com a pena embutida nos três dedos, abriu o corte da primeira maiúscula. Mas aí estava a dificuldade. Que letra lançaria ele se não conseguira destrinçar ainda as rabiscas do tabelião?

Relanceou para a porta um olhar de desespero; mas já a fresta se havia cerrado, e não viu ali para consolá-lo em sua aflição nem sequer o olhar à sorrelfa, que poucos momentos antes o viera desinquietar. Com o espirro paterno, Marta fugira espavorida.

Nestas estreitas sentiu o rapaz no peito do gibão o amarrotar de um papel; e indagando da novidade, descobriu que era uma folha de almaço a sair do bacamarte, e justamente pelo verso da maldita escritura que estava condenado a copiar sem entender.

Examinando o manuscrito, pareceu-lhe pelo jeito, ser um traslado da tal abstrusa escritura, começado a tirar por algum escrevente do cartório. Sem mais e à ventura, pôs mãos à obra, e com pouco estendeu sobre o papel todo o traslado em um bastardinho bem lançado e do mais lindo talho.

Levantou-se o rapaz, e por cima da mesa apresentou a cópia ao tabelião, mas vendo que este não se distraía lá da sua tarefa, meteu-lha por diante do nariz.

— Hem!... Então já acabou, moço?

— Veja o senhor tabelião!

— Está bom; já se vai desasnando! Ora vejamos lá isso!

Fincou bem os óculos no cavalete, encrespou o sobrolho sobre a testa, enfiou a carranca, e empinando-se no tamborete, esticou a folha de papel aberta a dois palmos do nariz.

Imediatamente a cara tabelioa decompôs-se toda, e embrulhou-se numa careta displicente, como uma bexiga assoprada, quando lhe falta o ar e se enruga.

O Ivo ficou frio.

— Sempre arranha no ofício; mas olhe, moço, esta letra casquilha e delambida pode servir lá para iluminações e grifarias; cá no foro não se admitem estas desenvolturas. Está entendendo?... Quer-se um talhe de letra corrida, e que seja composta e sisuda como se requer nas cousas de justiça. Uma escrita à-toa como esta, que aí todo o gato e sapato pode ler sem titubear, não vai bem nuns autos. Isto de papel forense, nem todos lhe metem o dente; é preciso ter prática. Faça-me uma letra pelo molde tia minha, e vamos bem. É deixar correr a pena!

Ouviu o Ivo com espanto esta lição de caligrafia forense, e revoltado nele o sentimento do belo, ia protestar, quando pareceu-lhe que de novo entreabria-se a fresta da porta, e tanto bastou para dar-lhe a força de conter-se. Não eram aqueles gregotins, que o obrigavam a fazer e a decifrar, os elos que o prendiam à casa de Marta?

No dia seguinte tomou o Ivo conta da mesa de cedro em que o encontramos. Ficava-lhe a dois passos a mesa de um outro escrevente, de nome Sabino, moço como ele, e que não se conformava com a presença desse intruso, pois vinha disputar-lhe o lugar de calouro do cartório, que ele até ali ocupara sem rival.

Tinha o Sabino vinte anos, e como esses vermes que se formam no coco, e tomam-lhe a feição e o gosto, parecia o rapaz um feto concebido e criado no cartório. Borrado de tinta e poento como uns autos, a cútis era de almaço amarrotado, os beiços arregaçados como as beiras do protocolo, e a cabeça arrepiada que nem as abas de baeta preta que desciam da mesa.

Quando se dirigia a seu canto, percebeu Ivo o olhar com que o examinava o colega, e conheceu que ia ter nele um amolador. Felizmente dividia-os um pano de prateleira, que interceptaria a espionagem.