CAPITULO VI
O Imperio e o exercito


O exercito brazileiro, altamente dotado de bravura e de patriotismo, nunca foi um modelo de disciplina; denunciou nos começos e nos fins do Imperio estar atacado do virus politico de que tanto teem soffrido as instituições militares da America Latina. Gerado no meio de pronunciamentos constitucionaes, crescido atravez de motins e de revoltas, só depois da pacificação do Rio Grande do Sul em 1845 entrou n’uma phase mais calma e regular. As duas campanhas estrangeiras, contra Rosas, em 1852, e contra Lopez, de 1865 a 1870, augmentaram n’elle o conceito e a vaidade de sua importancia sem lhe inculcar todavia a convicção da disciplina. Sir Richard Burton, que fez justiça ás qualidades pessoaes e profissionaes do soldado brazileiro, elogiando seu denodo e resignação[1], porque elle proprio era um valente e um estoico, escreveu de Caxias que, declarando finda a guerra ao entrar em Assumpção e recusando, por não querer ser «capitão do matto», continuar na perseguição de Lopez, que o conde d'Eu levou a termo, proceder contra a disciplina (in on unofficer-like way). Não se furta entretanto o grande viajante inglez em dizer de Caxias que, si lhe faltava porventura o genio da iniciativa, possuia o talento de saber escolher admiravelmente o melhor ponto de ataque e era um excellente organizador; e de Osorio que ninguem o excedia em bravura temeraria e em cordialidade fidalga.

A guerra do Paraguay, longa e attribulada, com revezes a entremear-lhe as victorias, estimulou muito o espirito de caserna e creou no Brazil tanto o typo do grognard da comedia, isto é, do veterano resmungão, como o do miles gloriosus da comedia classica. Ao regressarem do Prata os regimentos triumphantes, parece que o governo do Rio de Janeiro receava da sua parte qualquer accesso de febre militarista ao contagio das acclamações populares. Preoccupava-o especialmente a volta dos voluntarios e imaginou despil-a de toda pompa, fragmentando as unidades, dissimulando os estandartes, abafando as musicas. Foi o commandante em chefe, conde d'Eu, quem protestou e ameaçou resignar seu cargo si se insistisse no que elle denominava n'uma carta particular ao visconde de Lage[2] «uma traição para com seus companheiros d'armas». O conde d'Eu reconhecia que a situação politica do paiz exigia algumas precauções e que era prudente evitar uma grande agglomeração desses militares sahidos da lucta armada, devendo proceder-se a um rapido desarmamento e licenciamento, que aliás não se lhe afigurava difficil. Ajuntava que não enxergava «entre elles espirito algum politico, mesmo porque não tinham quasi chefes». Os officiaes pareciam-lhe, com raras excepções, incapazes de designios subversivos, nutridos, no seu dizer, «por alguns homens perdidos que primeiro endossaram a farda por especulação, e que agora a arrastam, maldizendo-a e consolando-se das suas obrigações pelo jogo e outros vicios».

O governo, porem, não deixava de ter certa razão, e tanto assim que aquelles que prégavam a Republica, reorganizando o velho partido, dirigiram-se em primeiro lugar aos militares, que eram os unicos a dispôr de força para deitar abaixo o regimen. O Imperador, apezar de ter accudido a Uruguayana de espada e poncho, estava muito longe de ser um chefe marcial e não tinha interesse pelos assumptos bellicos. Exaggerava-se, porem, este paizanismo e até contava-se, para intrigal-o com o exercito, que, ao assistir a um desfilar de tropas, elle dissera aos que estavam perto, apontando para os soldados — assassinos legaes!

O snr. Salvador de Mendonça, signatario do manifesto republicano de 3 de Dezembro de 1870 e membro do directorio do partido, conta[3] que, no grande movimento de curiosidade e de sympathia pela obra annunciada de realização democratica na forma e na essencia, se deu um verdadeiro alistamento de forças civis e tambem militares. O official Pompilio de Albuquerque, que foi quem alistou secretamente seus camaradas, apresentou ao directorio um plano de captura do Rio de Janeiro antes da partida de D. Pedro II para a Europa em 1871. A familia imperial e as principaes auctoridades seriam detidas n'um dia de gala, quando se achassem todas reunidas, e transportadas para a fortaleza de Villegaignon, ao mesmo tempo que duas baterias convenientemente collocadas nos morros lançariam o panico na cidade.

Notou-se com acerto[4] que a permanencia durante cinco annos e mais, contando com a intervenção na Banda Oriental, do exercito regular e dos corpos de voluntarios nos paizes republicanos do Prata, quando estes paizes eram uma escola de despotismo e de indisciplina, governados por caudilhos — a Argentina começa a livrar-se da praga — foi deveras prejudicial á ordem civil do Brazil. A idéa da dictadura militar, cujas raizes são distantes, dahi derivou não pouco da seiva necessaria á sua florescencia. O auctor lembra a este proposito os officiaes dos ultimos dias do Imperio, muitos d'elles typos de fanfarrões de quartel com as calças balão, os rebenques presos ao pulso por uma corrente de prata, a cabelleira cacheada e oleosa, o kepi de lado. O movimento abolicionista, que facilmente podia degenerar em revolucionario e que acabou mesmo sendo legalmente revolucionario, permittiu n'um dado momento que muitos dos seus adeptos se recrutassem nas fileiras das forças armadas. Forneciam á agitação o prestigio das suas fardas, ao mesmo tempo que a tornavam genuina e perigosamente politica antes do que social. O exercito volvia por essa estrada humanitaria ao que se tem chamado a sua funcção civica ou educadora em detrimento da sua funcção technica ou combatente. Esta já passara o periodo expansivo.

Desde que o Imperio consolidou sua unidade que os partidos politicos brazileiros se aventuraram ao «imperialismo continental». Assim observa o snr. Vicente Licinio Cardoso, um dos espiritos mais argutos da nova geração[5], ajuntando que aquelles partidos «claudicavam em casa e se mostravam arrogantes, exigentes intimoratos com os vizinhos»... A hegemonia sul-americana entrou a ser um objecto definido; a reconstrucção do vice-reinado platino, o fito supremo a evitar na costa do Atlantico; as «missões civilizadoras» com que a Europa e os Estados Unidos disfarçavam suas ambições, um processo a imitar. O Paraguay foi auxiliado, animado pelo Brazil, para servir de contrapeso á Argentina de Rosas, o qual ameaçava fortalecer a federação sob a sua direcção superior, e, por uma ironia historica, a Argentina de Mitre aproveitou-se do Brazil para destruir o obstaculo do Paraguay que procurava unir-se com Corrientes e Entre Rios para se franquear o desafogado accesso ao mar, desafiando a tutela de Buenos Ayres. Urquiza declarou abertamente na conversa que teve com snr. Richard Burton, relatada no livro citado[6], que si Lopez não tivesse invadido Corrientes, a quem aquelle ultimo dos senhores feudaes platinos considerava parte de sua Mesopotamia, elle o teria ajudado com 15.000 homens contra os macacos (sic).

E de pouco faltou que o não fizesse: porque receou a alliança de Lopez mais do que a sua inimizade, este já o tendo desapontado uma vez n'uma promettida investida contra Buenos Ayres, o duende da Confederação, e não conhecendo limites á sua ambição, dissimulada com a formula do «equilibrio do Prata», como tampouco os conhecia a ambição de Urquiza, a qual ia igualmente até o devaneio imperial. A expedição paraguaya, fracassada em Uruguayana, esteve para ser-lhes commum, effectuada de parceria, e o Brazil só não fez do Rio Grande do Sul sua base de operações, adoptando a tactica defensiva, e penetrou nas republicas vizinhas em vez de retirar-se da Banda Oriental porque, em caso de felicidade para as armas paraguayas, Urquiza ter-se-hia posto ao lado de Lopez para derrotar e fragmentar o Imperio, revivendo o plano do Rio Grande do Sul republicano, em vez de augmentar prodigiosamente sua fortuna com o fornecimento de gado vaccum e cavallar aos alliados.

D. Pedro II tomou tanto a peito a campanha, não pelos louros em perspectiva, porque os mancharia muito sangue dos seus subditos, mas pelo perigo que corria o Brazil e tambem pelo seu profundo sentimento pessoal de magestade, apezar de a outros respeitos, ser um sincero democrata. Não ha antinomia nestes traços do seu caracter. Educado n'uma côrte sem pompas e mesmo sem grandeza, era naturalmente amigo do seu povo e estava-lhe igualmente perto do coração, ao qual fallava, embora se não rebaixasse com familiaridades e conservasse graças á sua elevação moral a respeitabilidade e com ella a dignidade da sua funcção soberana. Si não foi um genio politico, foi D. Pedro II superior ao seu meio pelo equilibrio raro das suas qualidades, mantido n'um alto nivel. Entendia e propunha-se pairar acima dos partidos nacionaes, como acima das republicas e pseudo-republicas de que o Brazil estava rodeado e de que não formava lisonjeiro conceito. Reconhecia no Novo Mundo a valia dos Estados Unidos porque no seu tempo representavam exclusivamente a tradição de organização constitucional e de austeridade republicana, não se havendo ainda materializado tanto o seu progresso á custa do seu idealismo.

Não querendo conceder quartel a Lopez, o Imperador não repudiou expressamente o seu feitio fundamentalmente magnanimo, antes procedeu como defensor perpetuo do Brazil, cuja cohesão timbrava em fortificar, com tanto mais afan quanto era ella a obra politica da monarchia, favorecida até certo ponto, que convem não exaggerar, pelas condições naturaes. Euclydes da Cunha, com seu faro de sociologo e historiador, combinando analyse e synthese, aventou a suggestão do «tablado geographico», apontando que por traz das differenças na fachada existia, previamente á Independencia e ao particularismo colonial, uma singular homogeneidade, uma base physica de que o São Francisco, todo brazileiro, é o eixo hydrographico. Nem a toda a gente era comtudo intellectualmente accessivel aquelle juizo do governo imperial e a lucta do colosso brazileiro contra o diminuto Paraguay parecia, á primeira vista, um repto odioso. O proprio Burton, que proclamava estarem suas sympathias com o Brazil porque a missão do «Imperio democratico», como elle o chamava, era franquear e conservar aberto á civilização o «Mississippi do Sul», o systema hydrographico do Paraguay-Paraná-Prata, acabando com as barreiras que pretendiam convertel-o n'um monopolio quando devia pertencer ao mundo, accrescentava que «não podia senão admirar a maravilhosa energia e a vontade indomavel do Presidente Lopez e do seu pequeno paiz, tão dotado de fibra, um espectaculo que não será esquecido, nem deixará de suscitar enthusiasmo emquanto perdurar a historia. Os paraguayos combateram e morreram pelos seus lares, pelos campos dos seus maiores, pela sua patria e pelo seu Deus, pela honra, pela vida, pelos seus direitos conspurcados».



Existia uma condição que favorecia singularmente a interferencia dos militares na politica: era a sua elegibilidade, mesmo em serviço activo. Dando-lhes accesso ao Parlamento, quer dizer, á mais notoria das tribunas, permittia-lhes, protegidos por suas immunidades, criticarem e atacarem impunemente a administração dos seus chefes hierarchicos. O incidente durante a guerra do Paraguay, entre Caxias e Zacharias, quando o politico conservador se achou na dependencia do politico liberal, deixara o fermento de uma desintelligencia entre o poder militar e o poder civil. Emittindo o parecer que o ministro devia continuar á frente dos negocios publicos, o conselho d'Estado salvaguardara os interesses da ordem civil, ao passo que o Imperador, preoccupado com o andamento da campanha de que dependia muito o futuro do Brazil, tomava partido pelos melindres da espada.

Em 1875 houve um novo gabinete presidido pelo marechal-duque, chefe dos chefes conservadores, Osorio (marquez do Herval) foi ministro da guerra em 1878, bem como Camara (visconde de Pelotas) em 1880 e escolhido senador; varios generaes, conservadores uns, liberaes outros, foram agraciados com titulos, por propostas dos seus correligionarios no poder e, por fim, rompendo-se a tradição dos ministros civis nas pastas militares, a de Guerra e a da Marinha foram confiadas, no gabinete liberal Ouro Preto, o ultimo da monarchia, a officiaes superiores, o marechal visconde de Maracajú e o almirante barão de Ladario. A influencia das forças armadas contava, portanto, como um elemento assaz importante nos destinos politicos de uma nação da qual escrevera um diplomata allemão, durante a Regencia, nos seus relatorios officiaes[7] que «considerava a auctoridade legal como um freio imposto á sua vontade e a disciplina como uma tyrannia», reivindicando a classe militar o seu direito de negar obediencia passiva ao governo emquanto attentasse contra a sua consciencia ou as suas convicções.

O assassinato, em Outubro de 1883, de Apulchro de Castro, redactor d'O Corsario, pasquim insultador das reputações, crime commetido por officiaes não disfarçados, nas barbas da auctoridade, em plena rua do Lavradio, perto da repartição de policia, onde o jornalista amedrontado fôra pedir protecção, denunciara até que gráo lavrava a insubordinação no exercito. A officialidade andava em bom numero transviada da sua educação profissional pela cultura de uma doutrina philosophica franceza que nem todos digeriam satisfactoriamente, mau grado o bem ordenado da sua systematização. O positivismo era Evangelho na Escola Militar que, oriunda da antiga Escola Central, depois do seu desdobramento, de que sahiu a Escola Polytechnica, se tornara um viveiro de agitadores — abolicionistas e democraticos. Tenentes e capitães mostravam saber de cór Augusto Comte e Laffite em vez de Jomini e von der Goltz. Frequentavam seus clubs, discutiam politica e litteratura, em vez de concorrerem aos campos de exercicios. Faltava-lhes uma verdadeira tradição militar, mal substituida pelas reminiscencias das luctas intestinas, primeiro contra o elemento portuguez, preponderante no exercito formado por D. João VI, em seguida contra os proprios nacionaes. A campanha do Paraguay foi na verdade a unica guerra estrangeira do Imperio digna do nome.

O modo de recrutamento do exercito constituia um defeito basico e é o responsavel pela sua organização defeituosa. Não existindo o serviço obrigatorio, que depois nobilitou o exercito argentino, procedia-se por meio de alistamento, que só se effectuava entre as classes inferiores da sociedade. Nas fileiras do exercito como nas tripulações da esquadra só se viam negros e mestiços de varios tons, alem de brancos dos sertões, que todos sabiam bem morrer com as armas nas mãos, inexcediveis na coragem e na indifferença ao soffrimento physico, mas offerecendo uma materia prima de crassa e brutal ignorancia para o manejo politico. Os officiaes eram para elles meros feitores agaloados, que podiam mandar açoital-os, que os commandavam no assalto das posições inimigas e a quem com igual desplante obedeceriam si lhes apontassem o assalto das posições civis. Os liberaes educados pelo Imperio repelliam tal processo de promoção do partido, declarando por esse tempo pela bocca do visconde de Ouro Preto que nunca escalariam o poder por meio de pronunciamentos militares e preferiam o ostracismo perpetuo a aventurarem-se na estrada aberta pelas espadas e bayonetas do exercito. Os republicanos não alimentavam, porem, escrupulos identicos. Formando uma especie hybrida de bachareis de farda, militares pelo officio, paizanos pela ambição de classe, seduzida pelo mando, os officiaes de estado maior e das armas scientificas entregavam-se muito mais aos debates academicos sobre formas de governo do que ás mathematicas, á estrategia e á balistica e os outros liam pela mesma cartilha.

A Escola Militar redobrou de indisciplina apoz a organização do gabinete Cotegipe em 1885. Declarou-se francamente hostil á reacção conservadora dominante no Parlamento. O menor incidente podia fazer saltar o paiol de polvora accumulada, e foi o que aconteceu a proposito da questão, muitas vezes discutida, da liberdade ou prohibição aos officiaes de tratarem, pela imprensa, assumptos militares sem auctorização, no ultimo caso, dos seus superiores. Um inquerito reclamado por um coronel sobre suppostas malversações commetidas no seu regimento por um dos seus subordinados, da patente de capitão, no tocante a fornecimentos militares, levantou em 1886 um debate na Camara que provocou alguns artigos assignados por aquelle coronel contra o ministro da guerra, o qual era um paizano, conselheiro Alfredo Chaves. Este ordenou que o official fosse detido por 48 horas, depois de censurado n'uma ordem do dia. Toda a tradição administrativa, representada por successivos avisos dos annos de 1859, 1878, 1882 e 1885, justificava o acto do ministro, o que não impediu o marechal visconde de Pelotas de defender no Senado a attitude do seu camarada, julgando a leve punição infligida uma offensa ao exercito e açulando o espirito de classe, tão facilmente melindadro com o appelo feito á honra militar, por elle collocada acima de tudo, mesmo das leis do paiz. O mesmo marechal, cujo renome provinha da perseguição e morte de Lopez no Aquidaban, observara, mezes antes, em discurso, que o Brazil não possuia exercito e no que havia com esse nome era nulla a disciplina. Para corroborar a sua affirmação até citava o facto de que houvera em 1884 nas fileiras 7.526 prisões, das quaes 54 de officiaes, quando o effectivo do exercito não passava de 13.000 homens. N'estas condições facil teria sido ao Imperador, si não fosse tão honesto, angariar com favores dedicações interesseiras entre os chefes militares e indispol-os, uns contra outros, pela inveja d'aquelles favores[8].

Outro incidente do mesmo genero surgiu logo depois. O commandante da escola de tiro de Rio Pardo (Rio Grande do Sul), official de idéas republicanas, animoso e talentoso, mas de temperamento irascivel e bulhento, como o comprovavam varios episodios, tenente-coronel Senna Madureira, occupou-se n'um jornal republicano de Porto Alegre — A Federação, de coisas militares, a proposito d'um discurso no Senado em que fôra mencionado seu nome, como envolto no caso em discussão. Censurado pelo ministro, respondeu publicamente á reprehensão, solicitando um conselho de guerra para provar a injustiça da mesma, o que o governo recusou por se tratar de uma decisão administrativa e de uma pena disciplinar por motivo independente de um tribunal militar, aliás incompetente para julgar o acto do ministro que se achava á frente do exercito.

Os camaradas do tenente-coronel Senna Madureira, aquartelados em Porto Alegre — no Rio Grande do Sul, onde por causa da vizinhança da fronteira, estaciona sempre o grosso das forças armadas do Brazil — reuniram-se para protestar contra as resoluções do governo central, sob os olhares indulgentes do marechal Deodoro da Fonseca, commandante das armas da provincia, isto é, á testa da sua divisão militar e exercendo interinamente a sua administração civil, pela ausencia do respectivo presidente. Veterano da guerra do Paraguay, membro de uma illustre familia de militares, esforçado, querido dos companheiros, Deodoro, que politicamente estava filiado ao partido conservador, parecia professar sobre as contribuições dos militares para os jornaes opiniões mais severas ainda do que as evidenciadas pelo gabinete Cotegipe porquanto não vacillara em instaurar processos contra um dos seus subordinados que na imprensa se occupara dos seus negocios privados. A protecção, porem, dispensada a este official pelo chefe liberal da provincia, o fogoso senador Silveira Martins, e que se manifestara pela chamada do accusado á Côrte, vexara muito o marechal, em quem a paciencia estava longe de ser uma das virtudes principaes. N'esse estado de espirito, susceptibilizado e irritado, foi contra os seus correligionarios, recusando levar ao conhecimento do tenente-coronel Madureira a advertencia do ministro e declarando-se até solidario com os officiaes signatarios do protesto. Esta attitude de manifesta benevolencia, ou antes de sympathia activa, foi immediatamente conhecida de todo o paiz, tendo a maior repercussão e vibrando um golpe terrivel na já tão precaria disciplina do exercito. Como Cotegipe escrevia a Deodoro, em termos repassados de bonhomia sob uma leve camada de emoção, via-se inopinadamente surgir «um exercito deliberante» com o qual havia que contar.

O orgulho, mesclado de vaidade, como sóe frequentemente ser, formava o fundo do caracter de Deodoro, que respondeu de um modo brusco ao presidente do Conselho, insistindo na sua maneira de ver o incidente. Cotegipe desta vez deu-lhe substituto local, ao mesmo tempo que lhe confiava uma comissão militar importante, a de quartel-mestre general do exercito, apezar da vehemente opposição do senador Silveira Martins, que procurou ao contrario tornar o marechal responsavel perante o Supremo Tribunal de Justiça pelos abusos de poder praticados no Rio Grande do Sul. Uma vez no Rio de Janeiro, Deodoro, cada dia mais agastado e adulado por todos os descontentes, encabeçou o movimento de opposição ao governo e levou a audacia até o ponto de convocar, para um theatro, uma reunião publica de militares, á qual compareceram cerca de duzentos officiaes de terra e mar e onde serviu de secretario o tenente-coronel Senna Madureira. Sem discussão a assembléa declarou que o conflicto aberto entre as classes armadas e o ministerio não se liquidara de forma airosa para a honra do exercito desde o momento em que subsistiam os avisos inconstitucionaes e os officiaes culpados de solidariedade com o seu collega continuavam sob a ameaça de pronuncia. A assembléa appelara para o chefe do Estado para acalmar a agitação e reparar o erro, delegando plenos poderes ao marechal presidente do comicio para obter a devida justiça.

O gabinete usara a tolerancia e até a exaggerou, submettendo a constitucionalidade dos avisos ministeriaes ao parecer do Conselho Supremo Militar, o qual pronunciou uma decisão esdruxula, estatuindo que os militares, como todos os outros cidadãos, tinham a liberdade de discussão pela imprensa, exceptuadas as questões de serviço, entre militares, as quaes seriam consideradas como injuriosas á disciplina si publicamente aventadas e debatidas. A doutrina subversiva que confinava tal disciplina ao interior dos quarteis, doutrina abraçada pelos agitadores politicos, que della entraram a fazer cabedal, os republicanos sobretudo, achou-se subitamente legalisada, e a vida publica, com todas as suas vicissitudes e imprevistos, tornou-se carreira aberta aos «cidadãos de farda».

Valendo-se d'aquella sentença, que os enchia de razão, os officiaes admoestados exigiram que o governo espontaneamente annullasse as notas que manchavam suas fés de officio, pela razão obvia de terem sido declarados inconstitucionaes os avisos sobre que ellas se fundavam e que as justificavam. O governo, por seu lado, confessava-se prompto a fazel-o, respeitando e obedecendo ao voto de justiça, si os officiaes assim o requeressem.

Outra questão, correlativa com a primeira e tão acre e venenosa quanto ella, enxertou-se assim na perigosa situação de que a reunião no theatro Recreio, posterior a um novo incidente, havia sido a expressão viva. Os inimigos da monarchia, que entravam a avolumar, encontraram nesses acontecimentos fertil mina a explorar: atraz do exercito e dos seus movimentos quasi sempre se pode descobrir no Brazil a especulação dos politicos. Diz bem o snr. Oliveira Vianna que nunca houve no nosso paiz politica militar ou militarismo no sentido de separação consciente e intencional da missão politica do exercito da das classes civis[9]. O pundonor e o espirito de corpo das classes armadas facilitaram apenas o jogo das paixões e interesses dos «casacas», sendo o exercito, convencido aliás da superioridade dos seus predicados, instrumento ás mais da vezes e não força propulsora. Desde 1887 entretanto que Floriano Peixoto, a esphinge da Republica, muito mais politico do que Deodoro, fallava na necessidade da «dictadura militar» para expurgar a «podridão nacional».

O ministro da guerra ficara, entretanto, moralmente enxovalhado, sem a auctoridade precisa para reagir. Não tendo as medidas que propoz sido acceitas pelo gabinete e menos ainda pela Corôa, apresentou sua demissão. O marechal Deodoro da Fonseca fez outro tanto, como que para ficar mais livre nos seus movimentos. A sedição propagava-se a todo o exercito; as transferencias de officiaes só faziam espalhar o mal. A honra do soldado está acima de tudo, — declarou do alto da tribuna do Senado o marechal Pelotas, que era um temperamento de caudilho gabarola, — e tem que ser desaggravada com a lei ou contra a lei. Aquella honra é differente da do paizano, a qual pode ser vilipendiada sem a mesma gravidade. Semelhante criterio, transportada para o campo da politica, explica o que se chamou a dynamica d'esse movimento que derrubou o Imperio, sem o Imperio e os seus partidarios quasi darem por isso e sem o pretender de antemão fazer aquelle que fôra posto á frente da revolta.

O ministerio Cotegipe continuou a não querer peccar por excesso de energia e a applicar á questão militar os methodos diplomaticos em que seu chefe era eximio. Emquanto o governo contemporizava e poupava a indisciplina, Pelotas voltava do Rio Grande do Sul para prestar o apoio da sua palavra no Senado e do seu prestigio no paiz ás reclamações da sua classe, toda ella vibrando de indignação pela supposta offensa collectiva. Começava-se a conspirar ás escancaras contra o throno e a fallar no advento da Republica purificadora e reparadora. O estado de saude do Imperador, minado pela diabetes, contribuia para deixar o campo livre a todas as ambições pessoaes dentro das classes e dos partidos. O exercito continuava, nas suas expressões, «desgostoso e irritado». Pelotas era nesse momento o mais combativo dos seus chefes: o snr. Oliveira Vianna chama-o o mais arrogante. Deodoro pronunciava-se sempre no ultimo instante em favor da ultima proposição que o impressionara. Sentia-se bem que a Republica não lhe era uma solução sympathica — ainda não contava que se fizesse com ella — e o que desejava era affirmar seu prestigio e dar uma licção ao governo. Uma saldanhada, não mais. Mesmo a 15 de Novembro de 1889 pela manhã, arrependido de compromisso anterior, o seu intento era sobretudo depôr o gabinete Ouro Preto, vingar-se desses ministros que o tinham querido em seu conceito rebaixar; e formar outro ministerio, de seu assentimento e talvez com elle na presidencia do Conselho. Si o Imperador não tivesse descido de Petropolis para o Paço da cidade, onde o detiveram, e o gabinete se não tivesse posto no quartel general á mercê da enigmatica posto que falsamente assegurada fidelidade de Floriano, a reacção ter-se-hia com todas as probabilidades dado em favor do regimen monarchico e nem haveria precisão de consultar-se o paiz a respeito, como se fallara.

A falta de resistencia idonea foi que deu afoiteza ao elemento republicano que habilmente tramara o seu fim sob a inspiração de Benjamin Constant Botelho de Magalhães.

Si lhe fosse familiar a historia do Japão, Deodoro sonharia talvez em ser o Xogun do Mikado enfermo, o chefe militar do Imperio. As circumstancias fizeram-no mais do que isso, eliminando o Mikado e guindando-o a chefe da dictadura militar. Não foi comtudo sem vacillações porque seu desconhecimento, de que no fôro intimo era conscio, das materias da administração civil o teria afastado deliberadamente do pinaculo do poder si a firmeza da vontade fosse n'elle superior aos subitos impulsos do temperamento. Pelotas pelo tempo adiante, quando viu os resultados da mudança, negou ter querido attentar contra a monarchia antes de fallecido o Imperador e chegou a escrever que a Republica tinha tido contra si a circumstancia de haver sido a obra de um pronunciamento militar, representado pela quinta parte do exercito e ao qual fôra alheia a nação, que nada mais fizera do que acceitar o facto consummado com mal justificada indifferença. Do que Pelotas experimentava sobretudo o pesar era de lhe não ter cabido o primeiro papel e de ter sómente ficado a meio caminho do cume, como haver perdido toda influencia local em beneficio dos republicanos positivistas do Rio Grande do Sul, que formavam, com Julio de Castilhos á frente, um clan buliçoso e temerario. Em 1887 elle se collocara sem reticencias nem disfarces na vanguarda do movimento militar já claramente sedicioso, alliado aos politicos descontentes do regimen. Seu nome figurava antes do de Deodoro entre as assignaturas que cobriram o manifesto ao Parlamento e á nação, insistindo pelo reconhecimento do direito que assistia á classe militar. Competiu-lhe o duello parlamentar com o presidente do Conselho, assim como pertenceu ao outro marechal a tarefa de recolher as adhesões das guarnições. As palavras que então procunciou no Senado continham uma ameaça franca: «Peço encarecidamente ao snr. presidente do Conselho que reconsidere o seu acto, por amor a este paiz, não em guisa de uma satisfacção pessoal, pois minha valia é mesquinha. Que este negocio seja por elle resolvido de uma maneira honrosa e digna. Si o não fizer, não sabemos absolutamente o que poderá vir a succeder amanhã, ainda que o snr. presidente do Conselho tenha confiança na força armada á sua disposição. As circumstancias podem resultar taes que seja bem possivel que lhe venha a faltar semelhante apoio. Que o nobre presidente do Conselho reconsidere o seu acto, por amor a este paiz e quem sabe si por amor ás instituições».

Cotegipe respondeu com presença d'espirito que o governo, exigindo o requerimento para o cancellamento das notas de censura, «não mais fazia do que exigir o cumprimento de uma formalidade legal para fazer justiça a quem de direito».

O ministerio sentiu-se entretanto preso n'um becco sem sahida e deveu sua salvação á intervenção dos chefes liberaes do Senado que propuzeram uma transacção, com tanto mais sinceridade quanto nenhum aspirava n'aquelle aperto a assumir as responsabilidades do poder. Abrira-se um abysmo que tudo podia tragar. Pelotas, aliás, pertencia ao partido liberal e não escutara impassivel o commovido appello, a quasi supplica do presidente do Conselho para não renegar seu passado glorioso tomando a direcção de uma revolta militar. Uma moção, redigida de commum accordo, foi apresentada pela opposição, convidando o governo a cancellar espontaneamente as famosas notas de censura envolvendo penas disciplinares impostas antes da resolução imperial, tomada por effeito da consulta ao Conselho Supremo Militar.

Os militares triumphavam. Seu desejo tinha sido derrubar o ministerio e então teriam acceitado requerer a annullação ao novo gabinete que se organizasse. Esta suprema humilhação foi, porem, poupada a Cotegipe porque as fileiras monarchistas se apertaram por essa occasião, diante da imminencia do perigo, igual para todos quantos estimavam o regimen. O instinto de conservação fallou mais alto do que os ciumes partidarios. As instituições não tiveram comtudo sinão dois annos que esperar para que as engulisse o sorvedouro da indisciplina e rebeldia que, a pretexto da não exclusão dos fardados das regalias communs do cidadão, tão pittoresca e profundamente caracterizou a desorganização militar da America Hespanhola no seculo XIX até que novos elementos a fossem reformando. No Brazil esbanjaram-se a 15 de Novembro de 1889 os ultimos dinheiros da somma de desinteresse nacional que, segundo Joaquim Nabuco, sustentava a monarchia no Brazil.

Com o novo ministerio João Alfredo a questão militar apparentemente arrefeceu porque o presidente do Conselho inventou a necessidade de uma expedição militar de observação á fronteira do Matto Grosso por motivo de questões bolivianas de limites com o Paraguay e confiou o commando das forças despachadas ao marechal Deodoro. Segundo o visconde de Ouro Preto foi um meio de «proporcionar commodidades e commissões rendosas aos mais irrequietos e turbulentos» d'entre os officiaes. A expedição era aliás incruenta e quando o não fosse, saberiam todos cumprir o seu dever, embora não seja a coragem exclusivo apanagio dos militares. O visconde de Ouro Preto respondeu ao official que o informava de seu proximo fuzilamento: «O senhor verá que para saber morrer não é preciso vestir uma farda». E saberia, de sobrecasaca, cahir como um bravo que era.

  1. Letters from the battle-fields of Paraguay, London, 1870.
  2. Carta de 12 de Janeiro de 1870, que me foi mostrada pelo Dr. Sebastião de Carvalho, filho do visconde de Lage.
  3. Coisas do meu tempo, n'O Imparcial, do Rio de Janeiro, de 8 de Junho de 1913.
  4. Tobias Monteiro, Pesquizas e depoimentos.
  5. Á margem do segundo reinado, n'O Estado de S. Paulo de 2 e 3 de Dezembro de 1925.
  6. Letters from the battle-fields of Paraguay.
  7. F. Tietz, Brasilianische Zustände. Nach gesandtschaftlichen Berichten bis zum Jahre 1837. Berlim, 1839.
  8. Braz do Amaral, O Imperador e a proclamação da Republica, n'O Jornal de 2 de Dezembro de 1925.
  9. A queda do Imperio no Tomo Especial dedicado pelo Instituto Historico á memoria de D. Pedro II, 1925.