CAPITULO VII
O Imperio e a Egreja


A Constituição brazileira de 1824 estabeleceu a existencia no Imperio de uma religião official — a catholica, apostolica, romana. Por seu lado a Santa Sé reconhecia desde 1827 á Corôa imperial, como á portugueza, da qual aquella se scindira, o padroado, isto é, o seu direito de conferir beneficios ecclesiasticos, e o beneplacito, isto é, a necessidade da sua licença para se publicarem actos da Curia Romana. Tal fôra o sentido da missão diplomatica de mensenhor Francisco Corrêa Vidigal junto ao Papa, além da separação disciplinar das ordens religiosas brazileiras das portuguezas com que se achavam até ahi irmanadas, e da exclusão de novas ordens regulares estrangeiras. O clero nacional era decididamente liberal e parte delle até maçon. Mais perto estava, em bom numero, das prerogativas do Estado que dos privilegios canonicos, do temporal que do espiritual. O sentimento religioso nas classes illustradas por sua vez nada tinha de fanatico. Mesmo um D. Romualdo de Seixas, arcebispo da Bahia e marquez de Santa Cruz, figura notavel do pulpito e das lettras na primeira metade do seculo XIX, que representava o espirito de conciliação e respeito á Egreja no terreno religioso com relação ao texto constitucional, praticava e ensinava a moderação nas relações entre Egreja e Estado. Aliás o governo imperial não pensava em oppôr-se ás disposições do Concilio Tridentino no tocante aos assumptos ecclesiasticos, de fé ou de disciplina, do dogma ou de canones.

Os clerigos, em geral, levavam uma vida, sinão dissoluta, pelo menos escandalosa, pois que a regra do celibato continuava a ser imposta pela Curia Romana aos bispos e parochos que o Estado considerava funccionarios civis segundo o Acto Addicional. O governo da Regencia, neste ponto inspirado pelo padre Feijó, achava, e o ministro dos negocios estrangeiros, Aureliano de Souza e Oliveira Coutinho, o declarava em nota do anno de 1834 ao representante da Santa Sé no Rio de Janeiro, que os soberanos, nos seus respectivos Estados, podiam alterar a seu bel-prazer, em beneficio dos seus subditos, pontos de disciplina como era o celibato clerical, «o qual o governo sabia que não existia de facto, favorecendo enormemente tal estado de coisas a immoralidade publica»[1]. De principios politicos geralmente muito adiantados, esses padres desempenhavam papel importante nos partidos, quer como eleitores, quer como parlamentares, figurando em numero de 23 na legislatura de 1834-37, mestres, portanto, em intriga eleitoral e parte avultada dos debates da Camara e do Senado.

As ordens monasticas não tinham sido abolidas no Brazil como o foram em Portugal, em 1833, pela dictadura liberal, em satisfacção ás idéas philosophicas da Revolução e em represalia do apoio prestado ao Rei absoluto. Não gozavam, porem, de inteira liberdade de acção, a qual se lhes foi restringindo pelo tempo adiante, desde a annullação em 1830 de alienações de bens por ellas realizadas sem auctorização do governo até a suspensão em 1855 do noviciado, pendente o seu restabelecimento da celebração da Concordata com a Santa Sé. A Egreja era em muitos pontos serva do Estado, estando o clero sob sua alçada em materia de doutrina e de culto, como o expõe a pastoral collectiva do episcopado brazileiro de 19 de Março de 1890, apoz a separação, pelo Governo Provisorio da Republica da Egreja e Estado. Por longo tempo entretanto o clero brazileiro parecera accomodar-se perfeitamente com o regalismo, não levando a mal que o governo relembrasse fidelidade ao Concilio Tridentino ou approvasse compendios de theologia para uso dos seminarios, velando pela organização religiosa que estipendiava. Até 1873 não houve conflicto algum serio que perturbasse a paz religiosa da Egreja. O Imperador era nisto, como em tudo mais, tolerante. Educado nos preceitos da Egreja, não era um anti-clerical, mas tampouco era beato. Foi mesmo frequentemente tratado de voltairiano; mas a comparação não pode ir alem do seu commum deismo, não compartilhando D. Pedro II da malevolencia testemunhada pelo philosopho contra l'infâme, como chamava a Egreja. Não era o soberano um catholico pessoalmente praticante ou melhor dito militante: como chefe do Estado tinha, comtudo, que participar em cerimonias officiaes do culto. Deferente e até generoso nos seus actos, era, porem, emancipado nas suas idéas ou pelo menos independente, como recorda Basilio de Magalhães, que por isso o trata de «catholico livre-pensador», como já o tratara Joaquim Nabuco de «catholico limitado». Queria, por exemplo, combinar o evolucionismo com providencialismo, como outros querem combinar achados scientificos com tradições biblicas. Para elle eram estreitos os limites da razão humana e por isso admittia as elaborações metaphysicas e não arredava o sobrenatural. Tambem na base da religião enxergava a moral, «condição de intelligencia». N'um dos seus bellos conceitos, bellos como as suas poesias, porque si não continham primores de estylo, encerravam sentimento, que é o perfume da producção litteraria, escreveu que não separava a fé da esperança, inseparavel da humildade christã, nem da caridade, incompativel com a intolerancia pagã.

Como elle, era a grande maioria do Brazil culto: catholico sem santimonia, fechado a qualquer propaganda protestante, repugnante á concepção de uma Egreja nacional, mas sem enthusiasmo pela disciplina dos claustros, mesmo que ella se houvesse tornado theorica. Pela vida de convento havia tão escassa sympathia quanto pela vida de quartel e este traço já datava dos tempos coloniaes. Conta um viajante inglez ou melhor dito um residente inglez de Pernambuco, o qual se distingue pela sua observação conscienciosa[2] que, fazendo a cavallo o percurso do Recife ao Rio Grande do Norte, se detivera em Goyanna — foi isto em 1815 — para assistir á tomada do habito por um novo monge, espectaculo raro, accrescentava, que por tal motivo attrahira muita gente das cercanias da pequena cidade. Aliás os conventos não se recommendavam pela sua piedade e outras virtudes: eram fócos intellectuaes para um paiz nas trevas do espirito, mas tambem theatros de gozos materiaes, em que a gula não era o único peccado. Alguns monges salientavam-se naturalmente pela devoção e moralidade; outros pela sua operosidade e saber, podendo citar-se oradores sagrados como Sampaio e Montalverne, botanicos como Conceição Velloso e Leandro do Sacramento, eruditos como Custodio Alves Serrão e Camillo de Monserrate.

A genialidade não se elevava entretanto a essa altura mental e foi preciso o estro de Junqueira Freire, nas Inspirações do Claustro, antes de desertar a vida monastica, para dotar os conventos brazileiros de uma reminiscencia de idealismo. A própria catechese dos indigenas, que tanto sublimou os jesuitas dos seculos XVI a XVIII, não attrahia os frades. Tambem por isso os não cercava a veneração publica: faltava-lhes a aureola da santidade, e ao governo o que sobremodo interessava era o patrimonio dos conventos, enriquecidos, sobretudo os benedictinos, pelos bemfeitores que buscavam redimir seus peccados. Da fiscalização sobre as corporações da mão morta veio a desprender-se a Republica, entregando ás ordens religiosas, mesmo povoadas de estrangeiros, a plenitude e livre disposição dos seus bens, que o Imperio quizera transformar de propriedades de raiz urbanas e ruraes em apolices da divida publica. Conventos havia donos de fazendas e plantações pessimamente administradas no geral. O senador Nabuco de Araujo quiz em 1855 e 1857, quando ministro da Justiça, ser até certo ponto o Mousinho da Silveira brazileiro com relação ao clero regular e não achou para isso opposição nem do episcopado nem da Curia Romana, porque de facto o claustro servia sobretudo para albergar ociosos e occasionalmente viciosos. Prestigiando a hierarchia, Nabuco de Araujo regulou o recurso á Corôa e tornou definitivas as suspensões ou interdicções impostas aos clerigos pelos bispos. Aliás a historia do Imperio abunda em escandalos até financeiros que exigiam correcção e que desmoralizavam os conventos e, portanto, prejudicavam a religião.

N'um ou n'outro ponto, como no da fallada fusão entre os seminarios já existentes e as projectadas faculdades de Theologia (citado por Basilio de Magalhães) pode ter surgido desaccordo entre o poder civil e o poder ecclesiastico, mas não foi cousa de monta; e a Santa Sé nunca hostilizou deliberadamente o governo imperial, herdeiro do governo fidelissimo. Escrevendo ao conselheiro Sinimbú dois annos depois da sua primeira missão a Roma, onde obteve o consentimento pontifical para os casamentos mixtos, o barão do Penedo naturalmente satisfeito de haver removido esse obstaculo, que não era para desprezar-se, á colonisação protestante, affirmava que «desejaria bem mostrar com documentos em abono que a Santa Sé fizera por nós desde a Independencia o que nunca fizera pelas republicas hespanholas, concedendo-nos tudo de quanto cumulara o Portugal d'el-rei D. João V, emquanto que desde 1826 nós tomamos progressivamente um caminho de indifferença e de provocação em materia de religião. Não me importaria de arranhar as crenças ou antes a falta de crenças dos philosophantes do seculo XVIII, que predominam mesmo actualmente onde não teriam jamais devido prevalecer»[3].



Á parte alguns excessos da plebe movida por agitadores partidarios, como em Pernambuco o ataque contra o collegio dos jesuitas, o conflicto religioso de 1873 não teve fóra do mundo politico a mesma repercussão d'outras questões, como, por exemplo, o abolicionismo, questão eminentemente social. Não chegou mesmo a tomar o aspecto de um Kulturkampf, mas teve graves consequencias para o regimen monarchico, alienando da Corôa as sympathias de um clero que a influencia das doutrinas ultramontanas havia singularmente disciplinado e moralizado e que sob a direcção de prelados esclarecidos e virtuosos tinha a peito affirmar seu novo espirito. Foi em todo caso uma lucta entre Egreja e Estado; a Egreja tendo como paladinos os bispos do Pará e Pernambuco, D. Antonio Macedo Costa e frei Vital de Oliveira, aquelle um sulpiciano de notavel intelligencia, este um fogoso capuchinho de 28 annos, educado em conventos francezes; o Estado tendo como principaes campeões Saldanha Marinho, o celebre «Ganganelli» de larga cultura juridica, e Ruy Barbosa que na introducção a sua versão do Papa e o Concilio retornou a these de Luthero, de differença entre a primitiva e a actual Egreja de Roma, agora dominada pela Companhia de Jesus e exaggerando a auctoridade pontificia.

O pomo da discordia foi a incompatibilidade subitamente accentuada entre o Papado e a maçonaria, condemnada formalmente por Pio IX n'uma encyclica de 1864, a encyclica encerrando o Syllabus, e que não obteve o beneplacito imperial. As lojas maçonicas floresciam no Brazil e sua participação tinha sido muito grande na organização do movimento que precedera e engendrara a Independencia. Membros do clero a ellas pertenciam e n'ellas desenvolviam grande actividade, e o caracter politico d'essas sociedades tinha-se distinguido um pouco do seu caracter philanthropico. De anti-religiosa sua natureza passara a irreligiosa. Membros de irmandades e de ordens terceiras figuravam entre os irmãos das lojas, sem nisto enxergarem incompatibilidade com suas crenças. D. Pedro I, iniciado com o nome mexicano de Guatimozin quando Principe Regente, chegara a grão mestre. O espirito revolucionario tinha gradualmente desapparecido, mas persistira como traço indelevel certo espirito avançado que podia ser grato ao Supremo Architecto, mas que o não era á Curia Romana. Sobre alguns espiritos, não raro, exercia appello o feitio mysterioso e theatral que as lojas tinham habilmente conservado, e a outros fallava a conveniencia de um amparo mutuo. Sentimento aterrador tinha cessado de inspirar e o governo do paiz bastante se recrutava nas suas fileiras, em que fraternizavam os defensores do throno com os democratas e os carolas de procissões com os tibios e até os irreverentes. No momento do conflicto religioso occupava a presidencia do conselho de ministros o visconde do Rio Branco, grão mestre do Grande Oriente da maçonaria brazileira, circumstancia que não pouco concorreu para a acuidade da lucta.

O primeiro incidente occorreu aliás no Rio de Janeiro em 1872 com o discurso maçonico do Padre Almeida Martins, a quem o bispo diocesano, D. Pedro de Lacerda, intimou, sob suspensão, a abjurar a maçonaria, o que determinou um levante de broqueis contra a Egreja, aconselhado em forma moderada pelo chefe do governo e da maçonaria e por ella patrocinado na forma violenta que assumiu. O bispo aliás recuou ou melhor dito parou no trilho tomado, não punindo o sacerdote que, desafiando a prohibição celebrou uma missa mandada rezar por uma loja maçonica. A luva foi, porem, levantada pelo bispo de Pernambuco, por esse tempo empossado e que, recebido com desconfiança pelos maçons, rompeu impavido as hostilidades, vedando o seu clero de officiar em cerimonias da seita. O zelo do prelado levou quasi todos os padres maçons a abjurarem — os dois recalcitrantes foram suspensos — mas não succedeu outrotanto com as irmandades que mantiveram a sua dualidade de pensar, embora tratados os seus membros de excommungados. Em resposta, frei Vital suspendeu das suas funcções religiosas as confrarias rebeldes, e pronunciou interdicção sobre capellas dellas dependentes, até a expurgação das irmandades.

Acompanhou-o na sua cruzada o bispo do Pará, adoptando identica attitude, que o governo legalmente não podia approvar, desde que as bullas contra os adeptos da maçonaria, que era uma associação mundial, não tinham sido placitadas. Appellando particularmente para frei Vital, o ministro do Imperio, conselheiro João Alfredo, fez-lhe ver que melhor seria, dadas a repulsa e agitação consequente que já lavrava, não levar ao extremo a regra canonica e considerar que não havia proveito para a religião em perseguir uma instituição «entre nós innocente e até benefica a certos respeitos» como a maçonaria. Si o ministro do Imperio achava inconstitucional o proceder dos dois bispos, estes achavam anti-canonico o recurso á Corôa, interposto pelas irmandades e perfilhado pelo parecer do Conselho d'Estado pelo facto de confrarias e prelados representarem por um lado um poder espiritual, mas dependerem por outro do poder temporal da nação de que eram cidadãos os irmãos e os bispos e do qual recebiam estes a sua congrua. Os maçons incriminados não tinham a consciencia da sua culpa porque nos seus animos se abrigavam de preferencia outros propositos do que o de aggressão á Egreja Catholica, e para o culto representava uma perda material sensivel a sua eliminação, porque a abastança e generosidade de alguns era para as confrarias uma fonte, a mais farta, de receita.

Dos dois lados faltava verdadeira disposição conciliatoria pelo facto de serem irreconciliaveis os pontos de vista. Si era intransigente o espirito regalista, não menos ou porventura mais o era o espirito canonico. O governo não queria ser desprestigiado e tinha ao seu alcance os meios legaes; os bispos queriam ser obedecidos e usavam para tanto os anathemas da Egreja — contra as irmandades, não contra a maçonaria, que nem os proprios monarchas poderiam mais exterminar, observava frei Vital em sua carta ao conselheiro João Alfredo, ajuntando com bom senso que si a maçonaria não reconhecia a auctoridade da Egreja, devia abandonal-a aos seus fieis. O Papa a condemnara expressamente, o que era bastante para um catholico, não sendo o poder temporal juiz competente na parte religiosa. O bispo de Pernambuco já como que aspirava ao martyrio pela fé e nem tinha a consolação de ser apreciado e amparado pelo representante da Santa Sé, o internuncio Sanguigni, que lhe dava o vergonhoso conselho de fugir em visita pastoral, deixando ao vigario geral a ignominia da capitulação, e lhe acenava até com dinheiro do governo a pretexto de despezas de caridade e outras[4].

Macedo Costa e frei Vital são grandes vultos do nosso episcopado, mas frei Vital é mais do que isso, uma das grandes figuras moraes da nossa historia. Em religião não é permittida a transigencia, mesmo porque a religião não é uma instituição politica; e si ella ganhou com o conflicto foi justamente porque se mostrou intolerante. Um escriptor protestante, Fronde, nota que só o scepticismo é tolerante. A Santa Sé, habituada ás praticas diplomaticas, deu prova de uma primeira contemporização levantando por um anno as excommunhões incorridas pelos maçons, a qual aliás de nada serviu. Do que se tratava não era tanto do dominio espiritual, como do dominio do direito publico, sendo essencial fixar dois pontos: si, dada a natureza mixta das confrarias, era licito á auctoridade religiosa, ampliando sua esphera de acção, impôr-lhe novas condições pela sua exclusiva iniciativa, sem concorrencia ou acquiescencia da auctoridade temporal, e si, dada a lei basica do Brazil, podia em caso algum dispensar-se a homologação imperial para os rescriptos pontificios. No caso das irmandades, estava até assente pelo governo que o compromisso, sobre o qual o bispo se arrogava poder absoluto, não podia ser alterado sem proposta dos associados, dos quaes constituiam outros tantos actos voluntarios. Pretendiam ellas que lhes cabia eliminarem, querendo, irmãos com recurso para o temporal, como juiz de capellas. N'um regimen de religião d'Estado, a supremacia não pode ser independente e sobretudo illimitada fóra do dominio restrictamente espiritual, e num regimen constitucional não pode haver uma condemnação sem processo com audiencia e conhecimento da parte, devendo os interdictos ter caracter pessoal e não pesar igualmente sobre innocentes e culpados.

A discussão juridica podia prolongar-se indefinidamente, e não faltavam certamente ao governo jurisperitos argutos e boas razões para apoiar seu ponto de vista, tanto mais quanto o prelado se excedera não só na sua jurisdição como na linguagem, qualificando o beneplacito de «doutrina heretica, falsa e perniciosa».

As coisas foram mais longe, como era de prever-se. Os dois bispos reiteraram suas instrucções aos curas e vigarios para supenderem todas as solemnidades religiosas e fecharem os templos onde nas confrarias irmanassem catholicos e maçons, dando assim por julgado que estes conspiravam contra a religião. O governo imperial, apoiado nas «antigas temporalidades portuguezas» e na Constituição brazileira, ondenou-lhes que, conformando-se com o parecer da maioria do Conselho d'Estado, levantassem os interdictos, e como ambos negassem a legitimidade do recurso á Corôa das confrarias e contestassem ao poder civil «auctoridade para dirigir funcções religiosas», e como tambem o clero preferisse por seu turno agir de accordo com a disciplina ecclesiastica e obedecer aos seus superiores diocesanos, passou a medidas mais directas. Invadindo, para fazer respeitar a auctoridade temporal, a esphera religiosa, ordenou aos magistrados civis que levantassem elles os interdictos e obrigassem aos curas e outros clerigos a procederem ás funcções do culto independentemente da vontade dos prelados. Mais do que isto, contra o voto de Nabuco de Araujo no Conselho d'Estado, que, não obstante defender a soberania brazileira ao ponto de aconselhar a deportação dos bispos como nociva a sua presença de representantes d'outra soberania á paz publica, opinava em desfavor do processo porque difficilmente «uma questão de consciencia será elevada á cathegoria de crime», promoveu o ministro do Imperio perante o Supremo Tribunal de Justiça accusação criminal contra frei Vital e D. Macedo Costa por actos infringentes da Constituição e do Codigo Criminal.

Incursos, por manifesta pressão do governo sob o poder judiciario, no artigo 96 do Codigo, conseguintemente por «terem obstado ou impedido de qualquer maneira o effeito das determinações dos Poderes moderador e executivo» — o que Viveiros de Castro, integro juiz da Côrte Suprema da Republica, contesta formalmente porque os bispos «apenas se recusaram a ser elles mesmos os executores do provimento dos recursos interpostos pelas irmandades» — foram presos e julgados em 1874. Contra os membros do clero que os tinham acompanhado tambem foram instaurados processos nos respectivos tribunaes. Como havia, porem, que satisfazer ou socegar a consciencia da maioria da população catholica, impressionada pela firmeza inabalavel dos dois prelados e lamentando o encerramento de não poucas egrejas e capellas nas duas dioceses, o governo imperial resolvera ao mesmo tempo, em Agosto de 1873, mandar a Roma, em missão especial, o barão do Penedo, afim de obter da Santa Sé conselhos de paz aos pastores e ás suas ovelhas e a reprovação dos actos de insubordinação que tinham compromettido a até então constante serenidade da atmosphera religiosa do paiz, que nem por isso entretanto tomou aspecto geralmente tormentoso e apenas se nublou e n'um ou n'outro ponto degenerou em ligeira tempestade.

Actuando sobre os sentimentos existentes no fundo da alma nacional e ahi depositados pelas tradições religiosas seculares, a resistencia dos bispos e dos seus dependentes ecclesiasticos provocaram algumas desordens no interior de provincias do Norte. O fanatismo catholico moveu um certo numero contra os adeptos conhecidos ou suspeitos da maçonaria; no Recife elementos populares açulados pelas folhas livre-pensadoras ultrajaram e maltrataram padres, especialmente os jesuitas estrangeiros; as auctoridades tiveram que recorrer á força para manter a ordem e garantir protecção aos ameaçados do ataque, já depois de haver victimas de aggressões, bem como para perseguir os arruaceiros de todo genero.

Eram estes motins o reflexo das multiplas discussões na imprensa e tambem no Parlamento, onde conservadores puros como Ferreira Vianna, Candido Mendes e Paulino de Souza e liberaes moderados, como Zacharias, se declararam campeõesdas doutrinas orthodoxas dos prelados perseguidos, pronunciando-se contra um governo que, no dizer d'aquelles oradores, praticava um verdadeiro abuso de auctoridade intentando acção criminal contra altos e dignos ministros da Egreja que em nada offendiam as leis civis com sua defesa dos direitos ecclesiasticos, os quaes se referiam exclusivamente a assumptos espirituaes e eram agitados em redor de uma questão de crenças religiosas. Ao lado do ministerio de rotulo conservador e de facto anti-clerical, tomou assento o antigo liberal convertido á fé republicana Saldanha Marinho, cujo pseudonymo litterario, o que os inglezes chamam, usando da expressão franceza nom de plume, recordava o nome do pontifice Clemente XIV que em 1773 foi levado pelos governos latinos catholicos da Europa a abolir a Ordem de Jesus. Seus artigos copiosos e vigorosos deram materia, colleccionados, para quatro volumes in-octavo.



Em seus lucidos e incisivos commentarios do estudo já citado, Viveiros de Castro diz que todos os participantes nesta questão erraram — os dois bispos por falta de tacto politico, a Santa Sé a principio por dubiedade, o internuncio por cortezanismo diplomatico, o governo imperial por vingativo capricho, o enviado brazileiro a Roma por machiavelismo, a suprema magistratura nacional por subserviencia ao executivo violador da lei penal. Para todos existem comtudo razões attenuantes. Assim, frei Vital de Oliveira, ao alçar o pendão na sua diocese de Olinda contra a maçonaria, vibrava de indignação, conforme lembra o snr. Luiz Cedro n'uma igualmente recentissima publicação[5], pelos ataques, que considerava torpes, contra o dogma, promovido pelo Papa Pio IX, da Immaculada Conceição. Pastor diligente, queria preservar o seu rebanho desses «pastos envenenados».

Quanto mais os maçons insultavam á Egreja, alguns delles conspicuos nas irmandades e cujos nomes foram acintosamente publicados, tratando-a de «cadaver putrido», e ao Papa, chamando-o «sultão da infallibilidade», mais irreductivel ella se mostrava contra qualquer composição que revivesse a antiga condição de indifferença, geradora occasional de semelhantes «heresias e blasphemias». Não se lhe afigurava mais possivel «lamentar o mal em silencio» como em silencio ocorria a estranha juxtaposição de caracteres — catholico romano e maçon — e diante do pretexto de não disporem as confrarias de poderes para afastar do seu seio os heterodoxos, recorreu á applicação das penalidades religiosas que cabia dentro da sua competencia episcopal.

A maçonaria brazileira prestara na verdade relevantes serviços á causa da Independencia nacional e não visava deliberadamente a sua organização destruir a religião catholica; mas o ultramontanismo romano, mais accentuado ainda depois da perda pelo Papa do seu poder temporal, isto é, dos Estados Pontificaes, despertara entre os maçons, livre-pensadores uma reacção que os dois prelados combateram com armas que acabaram por ferir as leis do paiz e a Constituição. Si o regimen da religião estabelecida e do padroado não é o melhor para a Egreja porque tende fatalmente a subordinal-a, era em todo caso o vigente no Imperio. Apenas o padroado, que fôra uma concessão da Santa Sé, se transformou na phrase de Candido Mendes, mestre em direito canonico, uma tutela proveniente do direito magestatico exercido pelo Imperador como «protector da Egreja do Brazil», uma expressão de sabor gallicano e uma protecção que passou a «inspecção vexatoria» e que aquelles bispos tiveram em ultima instancia a coragem temeraria de querer supprimir, não contando sequer para isto com o consciente fervor religioso do paiz ou mesmo com o concurso activo de toda a hierarchia ecclesiastica. Era mister, portanto, para o governo imperial ter que ir a Canossa.

A propria Curia Romana não guiou como devera os dois eminentes ministros do altar: nem os desviou da lucta com o poder temporal, nem lhes deu apoio incondicional. As suas primeiras instrucções foram sybillinas, as ultimas foram contradictorias. Não se chega a saber bem si a Santa Sé louvava o zelo apostolico dos prelados, ou si achava preferivel poupar as confrarias contaminadas pelo «virus maçonico». Toda a discussão suscitada pela missão Penedo e em que terçaram armas o diplomata e o bispo do Pará, gyrou afinal em volta dessa incerteza ou talvez melhor dito tergiversação do cardeal Antonelli, Secretario d'Estado.

A missão Pendedo foi por algum tempo enigmatica e hoje, apezar de esclarecida nos pontos controversos e feliz para o agente, não pode ser considerada uma negociação lisa e sincera, si é que as ha em diplomacia. Não constituiu, como alguns a taxam, um ultimatum do governo imperial á Curia Romana, embora tivesse um sabor muito parecido de rompimento o tom desabrido da nota de 1.º de Março de 1874, respondendo o ministro dos negocios estrangeiros ao macio apello do internuncio, em nome dos direitos da Egreja, para a violada immunidade ecclesiastica dos reus e para a incompetencia do tribunal civil para julgal-os. A nossa chancellaria, declarando que a competencia do Supremo Tribunal «não dependia do juizo de nenhuma auctoridade estrangeira, fosse ella qual fosse», tratou cruamente o protesto do representante da Santa Sé de «impertinente e nullo». Como dizia na Camara dos Deputados Ferreira Vianna, criticando a nota, igualmente fallecia ao governo brazileiro competencia para qualificar de nullo o protesto de um soberano, aliás o chefe da Egreja Catholica.

Não foi tanto um ultimatum porque lhe faltaria sancção bellica, mas foi uma inhabilidade. Solicitar a coadjuvação da Santa Sé quando os bispos iam ser forçados a sentar-se no banco dos reus, era simplesmente impedir moralmente o Summo Pontifice de entrar nas vistas do governo imperial, as quaes tomavam uma côr anti-clerical senão anti-religiosa. Penedo já ia prevenido pelas suas instrucções das intenções drasticas do gabinete, resolvido a empregar os mais energicos meios legaes: a sua missão não importava a suspensão da acção das leis. Queria a reprovação do procedimento dos bispos e de ante-mão recusava, repellia mesmo uma transacção. É pouco crivel que o ministerio maçon quizesse praticar a loucura de mover guerra aos catholicos do paiz, não sómente castigar os bispos.

Consummado diplomata, fez Penedo um uso discreto das instrucções. Occultou o processo dos bispos e deu á sua presença um caracter todo pacifico e cordato. Apenas habilmente salientou os males que para a religião resultariam da perturbação do culto e do desprestigio dos seus serventuarios. O governo imperial só aspirava a restabelecer a boa intelligencia entre a auctoridade civil e a auctoridade ecclesiastica. Os bispos tinham peccado por excesso de zelo; só o Santo Padre os podia efficazmente refrear n'essa senda funesta para a Egreja e para a fé. O memorandum de Penedo é de 27 de Outubro de 1873: a 20 de Dezembro annunciava elle para o Rio de Janeiro o exito de sua missão.

Por ordem de Pio IX o cardeal Antonelli escreveu uma carta official aos bispos de Olinda e do Pará desapprovando a sua attitude e mandando que levantassem os interdictos sobre as egrejas das respectivas dioceses. Da leitura que lhe foi feita da carta, redigida em latim, disse Penedo ter-lhe ficado gravada na memoria a phrase do exordio: Gesta tua non laudantur. A carta, porem, não foi publicada; foi mesmo destruida por determinação da Santa Sé aos seus destinatarios em vista do processo instaurado, e quando mais tarde viu a luz a phrase, cuja revelação tivera a maior repercussão, era ligeiramente differente na lettra ainda que absolutamente não no espirito, integralmente identico[6]. D. Macedo Costa escreveu que á maçonaria — a «perniciosa peste» de que fallava Antonelli na sua carta — couberam todas as honras do triumpho.

Accusou o bispo o barão do Penedo de ter enganado a Curia Romana, dissimulando a perseguição, o que o diplomata contesta mesmo em presença da affirmativa de Antonelli, que neste ponto deve ser acreditado, pela propria evidencia dos factos. A Santa Sé não suspenderia o effeito da sua carta de reprovação si tivesse previo conhecimento do proposito do governo imperial contra os dois membros do episcopado brazileiro. N'uma encyclica papal, mais tarde expedida, deplorava-se a guerra official iniciada na Hungria e no Brazil contra os prelados catholicos e promettia-se que o Santo Padre os sustentaria com toda a sua auctoridade moral. A chancellaria brazileira teve que se defender dizendo que a Curia Romana havia sido invocada, não para regular a conducta de um governo que assegurava como era do seu dever os direitos do Estado, mas para prevenir discordias intestinas, quem sabe si conduzindo a um schisma, em detrimento da religião catholica. O governo imperial exaggerava tendenciosa e ardilosamente o perigo, que nunca assumiu a possibilidade de um schisma. Os unicos a padecerem provações foram os dois intrepidos pastores e Viveiros de Castro tem razão em dizer que até soffreram da má vontade do cardeal Secre tario d'Estado que nunca devera ter reeditado a carta, e que si alguem merecia o Gesta tua non laudantur era Antonelli.



O julgamento dos dois bispos foi um acervo de iniquidades. Viveiros de Castro, com sua inexcedivel auctoridade, escreveu[7] que «o governo preteriu as formulas processuaes e postergou as disposições legaes reguladores da especie». Os recursos á Corôa deviam ter sido precedidos de recursos para o superior ecclesiastico; nem procurou entender-se com a Santa Sé «n'uma materia quando muito de natureza mixta». Joaquim Nabuco, pouco sympathico aos prelados, diz mesmo que «nem se comprehende que a ultima palavra da liturgia pertença ao ministro d'Estado e não ao Chefe da Egreja», si bem que os maçons brazileiros vivessem inteiramente isolados da Maçonaria revolucionaria e internacional «e a Curia Romana admittisse e tolerasse o nosso regimen constitucional. Era uma questão que não podia ou antes não devia ser tratada «a golpes de interdictos, nem a golpes de resoluções imperiaes». O funccionamento das irmandades no tocante ás cerimonias do culto era aliás assumpto de caracter religioso. Entretanto a denuncia do procurador da Corôa arrastava frei Vital ás gemonias, fazia d'elle sob o tenue veu da linguagem juridica um rebelde escandaloso, um quasi anarchista despotico dos peores tempos da tyrannia espiritual na sua modalidade ecclesiastica. O libelo de justiça requeria contra elle o gráo maximo das penas previstas no Codigo pelo seu crime inafiançavel — seis annos de prisão com trabalho forçado. O tribunal usou de parcialidade manifesta pela accusação contra a defesa, qualificada pelo promotor de intrusa por ser espontaneamente tomada e não constituida pelo reu. Essa defesa, assumida por Zacharias e Candido Mendes, mostrou, porem, que desobediencia não é rebeldia, pois o não cumprimento de uma ordem não implica acção violenta. Violento era um governo que «ameaçava os catholicos brazileiros com os poderes conferidos pela legislação do paiz si o Santo Padre não desapprovasse formalmente o procedimento dos bispos». Não havia de resto preceito algum legal que impuzesse a esses a obrigação de executar o provimento dos recursos á Corôa. Ao juiz de direito cabia na hypothese de recusas de cumprimento, a execução da resolução imperial como sentença judicial. Na opinião de Viveiros de Castro nem desobediencia se deu, visto que os bispos não foram intimados pela auctoridade judiciaria competente.

O Supremo Tribunal não demorou o processo, pela nullidade do qual e incompetencia da côrte de justiça votou apenas o membro barão de Pirapama (Cavalcanti de Albuquerque). Um bispo e depois o outro foram condemnados no gráo medio, a quatro annos, assim equiparada a crime commum a sua attitude defensavel do ponto de vista religioso.

A intransigencia dos condemnados persistiu apoz a sentença. Encarcerados, manifestaram-se pela validade e confirmação dos seus interdictos e pela escolha de curas e vigarios igualmente em desaccordo no assumpto com o poder civil afim de occuparem as parochias cujos titulares tivessem sido condemnados, bem como os governadores de dioceses, a penalidades judiciarias. O conflicto não terminou pois immediatamente, embora insignificantes tivessem sido os protestos mesmo entre o episcopado, limitando-se ao arcebispo primaz e aos bispos D. Viçoso e D. Lacerda. Frades, irmãos terceiros, membros de confrarias, sacerdotes deputados filiados nos dois grandes partidos constitucionaes, todos guardaram o mais prudente silencio, tão caracteristicamente nacional entre a gente de posição quando se trata de prepotencias do governo, com o qual é de boa politica, quer dizer, da melhor conveniencia viver na santa harmonia. N'este caso aliás o exemplo da conformidade veio de Roma, nos primeiros e nos ultimos arrancos da dureza official brazileira. Joaquim Nabuco acha mesmo que o menos inclinado á indulgencia, o mais voluntarioso na perseguição foi o proprio Imperador, em crise de magestade, como na guerra contra Solano Lopez, quando offendida aos seus olhos de soberano a dignidade nacional.

A commutação immediata da pena em prisão simples era um medida de tino politico, como tal acertada. A nossa monarchia catholica revivera integro o gosephismo, mas não tinha o que lucrar com incluir os dois bispos no martyriologio da Egreja. Ainda assim, em 1890, D. Macedo Costa, então metropolita do Brazil e indigitado cardeal, apontava para o «throno afundado de repente no abysmo que principios dissolventes, medrados á sua sombra, em poucos annos lhe cavaram emquanto o altar ficava de pé». A amnistia só foi concedida um anno depois, em 1875, quando a regencia fôra parar pela segunda vez por ausencia do Imperador nas mãos piedosas da Princeza Isabel, com o ministerio Caxias, gabinete de conciliação conservadora, no poder. O cancellamento dos processos abrangeu naturalmente os governadores dos bispados e outros ecclesiasticos envolvidos no conflicto. Logo em seguida, por disposição papal, eram os interdictos levantados, não obstante acompanhada a ordem das costumeiras condemnações da infiltração maçonica nas confrarias religiosas e no dominio espiritual privativo da Egreja. Aberto o portão da fortaleza de São João, frei Vital retirou-se do paiz, visitou Roma e falleceu trez annos depois, em 1878, aos 34 annos, no convento dos Capuchinhos de Versalhes, um dos dois mosteiros francezes em que estudara e fôra noviço. Não devia envelhecer quem tão impavido cruzado fôra: o Brazil catholico delle guardou a lembrança no verdor dos annos, erecta a figura de templario, o rosto pallido adornado por uma bella barba negra que a maledicencia maçonica dizia ser tratada com brilhantina, como as suas finas mãos eram perfumadas com sabonete de Houbigant.

Não se lhe dera a D. Pedro II alienar do throno os seus trez sustentaculos maximos — a grande propriedade, a officialidade do exercito e o alto clero. O regalismo da Constituição Imperial foi neste ultimo caso mais poderoso do que o sentimento catholico da terra da Santa Cruz.

  1. Documento reproduzido no artigo de Basilio de Magalhães — D. Pedro II e a Egreja, n'O Jornal de 2 de Dezembro de 1925.
  2. Henry Koster, Travels in Brazil, Londres, 1816.
  3. Carta de 7 de Março de 1860, no Archivo particular do barão do Penedo.
  4. Cartas publicadas pelo snr. Viveiros de Castro no volume commemorativo do Instituto Historico (1925).
  5. Um bispo de Olinda, no volume commemorativo do primeiro centenario do Diario de Pernambuco, 1925.
  6. «Sua Santidade de modo algum poude louvar os meios por vós empregados para attingirdes ao fim a que propunheis» (Traducção do bispo do Pará).
  7. Ensaio citado no volume commemorativo do Instituto Historico.