CAPITULO VIII
O Imperio e as finanças


Paiz sem capitaes, o Brazil estava forçosamente destinado a ser um paiz vivendo financeiramente de emprestimos. Durante a epocha colonial o ciumento exclusivismo da metropole não lhe permittia senão o cultivo de productos tropicaes e sub-tropicaes — o assucar, o café, o algodão; a exploração, muito severamente fiscalizada e onerada com a tributação do quinto, do ouro, e a dos diamentes, arvorada em monopolio da Corôa e sujeita a um contracto ou ruinoso ou fraudulento. Á colonia era vedada uma industria regular que pudesse fazer concurrencia á da mãe patria, assim como uma agricultura variada e livre: nem trigo, nem arroz, por exemplo, que eram artigos de trafico do reino, o vinho sobretudo, representando a mais consideravel das suas exportações. A terra vivia gastando hoje o que lucrara na vespera. O beneficio maior, o que avultava era o dos commerciantes portuguezes, que depois passou para os negociantes inglezes quando, por occasião das guerras napoleonicas e da trasladação da côrte para o Brazil, os portos foram franqueados ao intercurso mercantil universal e os navios britannicos entraram a transportar elles proprios suas mercadorias que as embarcações portuguezas anteriormente carregavam para alem-mar.

Foi esse um periodo de despertar do gosto e da energia na possessão. Ensaiaram-se novas culturas, as mais exoticas — o canhamo, o chá, a seda; imaginou-se toda especie de innovação vegetal e animal — os pinheiros protectores contra as dunas, os carneiros fornecedores de lã, os dromedarios e até os llamas destinados a facilitar os transportes. Tudo isso não ajudou a crear um saldo de capitaes, embora se houvesse, com a liberdade do commercio e a ampliação da lavoura, organizado uma riqueza nacional. A vida, já pelo clima, já pela fertilidade do solo, foi sempre relativamente facil para os pobres dispostos a trabalhar e a luctar contra os multiplos obstaculos e contra-tempos: não era edenica, mas tampouco era inhospita. Foi sempre cara e ardua, apezar da condição do trabalho servil, para os que experimentavam necessidades de luxo ou sequer de conforto, que aliás é frequentemente mais difficil do que o luxo.

Com a Independencia surgiu a nova nacionalidade que D. João VI tinha vindo modelando com sua presença, e com a sua formação soberana se deu um serio augmento de despezas, a começar pelas concernentes á defesa publica. Desde então tornou-se indispensavel recorrer á disponibilidade estrangeira. Os dois primeiros emprestimos, de £ 1.333,000 e £ 2.352,000 realizados em 1824 (13 de Agosto e 7 de Setembro) viram-se comtudo reduzidos, respectivamente, a £ 1.000,000 e £ 2.000,000, pois que a sua emissão se fez a 75 e 85, com o juro de 5 por cento. Os ultimos emprestimos do Imperio foram em Abril de 1888, e em Setembro de 1889, ao typo de 97 e 90, com juros de 4½ e de 4 por cento, na importancia de £ 6.297,000 o primeiro e £ 19.837,000 o segundo, o que, sommado com os 110.000 contos do emprestimo interno de 27 de Agosto de 1889, typo de 90, juro ouro, perfazia um total de cerca de 38 milhões esterlinos, destinados a supprir os gastos geraes da abolição da escravidão sem indemnização aos senhores e a pôr o paiz no caminho do industrialismo pelo apparelhamento do trabalho livre.

O Imperio recorreu largamente aos capitaes estrangeiros, mas sem abusar. O peor é que, mesmo assim, usando com parcimonia do seu credito de nação ordeira e progressiva, tomava emprestado sabendo que não poderia reembolsar o debito si tivesse de fazel-o n'um determinado prazo, pois, não possuindo capitaes, tampouco possuia o Brazil numerario. A moeda papel foi sempre economicamente a sua praga. Metaes nobres nunca os houve com desafogo na circulação. A prata era rara e vinha de fóra, trazida em parte pelo contrabando do Sul. O ouro era todo exportado para a Europa. O bronze só podia servir como moeda divisionaria ou para as pequenas transacções, as compras diarias. Os conselheiros d'el-rei D. João VI recorreram a um expediente da Edade Media: recunhar a prata em circulação, emprestando ás moedas um valor superior, o que assegurava ao governo um lucro de 20 por cento, e combinaram-no com o recurso por excellencia dos tempos modernos, as emissões fiduciarias. O Banco do Brazil, fundado durante a estada da côrte real no Rio de Janeiro para favorecer as operações de credito, foi levado a emittir alem das suas garantias, sacando sobre o futuro do paiz, que as novas circumstancias promettiam tornar-se brilhante. Em 1820 as notas desse Banco em circulação subiam a 8.600 contos, e o decreto real, reconhecendo como divida nacional os adiantamentos feitos ao governo pelo estabelecimento de credito de sua lavra, não era de natureza a modificar as difficuldades financeiras do momento. Estas, accrescidas pela revolução republicana de Pernambuco em 1817 e pela agitação liberal transmittida de Portugal, tinham produzido uma forte baixa do cambio, o qual, ao ser proclamada a Independencia, descera a 48 dinheiros: o par era então 67½ dinheiros.

As notas bancarias tinham curso na capital: um pouco em Minas Geraes e em São Paulo. O valor exaggerado dado ás moedas estrangeiras originava falcatrúas. Por meio das fabricas clandestinas, a moeda falsa confundia-se com a legitima, si legitima havia. O contrabando tomara a mais o caracter de interprovincial. Importava-se calculando em ouro e prata e desobrigava-se em cobre e este, adulterado como andava, não pagava realmente os preços estipulados nem ao productor, nem ao revendedor nem ao exportador. Pode-se avaliar como a falta de escrupulo, favorecida por tal situação, se espalhou e tornou commum. Com o receio escondiam-se thesouros, retirados portanto da circulação. Sob a Regencia, fixou-se um limite ao poder liberatorio do cobre e estabeleceu-se o regimen das notas do Thesouro para resgate facultativo da moeda metallica, extendendo-se a circulação fiduciaria, até ahi regional, a todo o Imperio[1]. Com esta extensão desenvolveu-se a industria das notas falsas, com séde principal no Porto, origem de varias fortunas particulares. A crise do cobre foi vencida, mas nunca o foi a do papel moeda.



Martim Francisco, dos irmãos Andrada o que era afamado pelo seu talento de financeiro, de que deu as primeiras provas por occasião da Independencia, vindo a dar outras e mais sazonadas durante a Regencia, achava-se deportado em Bordeus quando o govemo imperial encetou o systema dos emprestimos estrangeiros e rispidamente o condemnou na sua correspondencia, denunciando tal politica como «o abysmo das nações». Sua probidade combativa revoltava-se contra os agenciadores de taes negocios, intermediarios á cata de commissões, que especulavam contra o Estado em proveito dos seus proprios interesses, e n'estas palavras visava e buscava ferir Barbacena, enviado diplomatico e financeiro de D. Pedro I, dirigindo simultaneamente as negociações para o reconhecimento do Imperio e para a attracção de capitaes estrangeiros.

Soam por tal modo estranhas as palavras d'aquelle economista ideologo nos meios praticos e positivos da actualidade que é pelo menos curioso recordal-as: «Estou convencido, escrevia elle, que um emprestimo contrahido por um Estado qualquer é um symptoma da prodigalidade do seu governo, ou a morte d'esse espirito da ordem e da economia que constituem as primeiras bases de toda boa administração financeira; que os emprestimos ajudam a excitar a sordida cobiça dos cidadãos e a adormecer nos seus corações o sentimento desinteressado do amor da patria; que as despezas denominadas extraordinarias são pilulas doiradas, engulidas por povos ignorantes, porque nenhuma ha que não haja sido de antemão prevista pelos olhos perspicazes da politica e á qual se não possa dar remedio fóra do cancro dos emprestimos...»

Ajuntava Martim Francisco que recusara um emprestimo em condições bem melhores do que aquellas a que Barbacena ia compellir o paiz. Sua tarefa teria aliás sido bem difficil si elle tivesse tido que combater ou abafar todos os appellos que desde então foram feitos á bolsa dos banqueiros de Londres ou á algibeira dos poupadores nacionaes. Em 1827, trez annos depois de sua invectiva, já a divida interna subia a 31.000 contos, ao mesmo tempo que o Banco do Brazil proseguia com suas emissões sem lastro metallico. Impressionada com este estado de coisas, aggravado pela cunhagem da falsa moeda de cobre, a Assembléa Legislativa ordenava a liquidação do Banco do Brazil, apoz haver-se severamente manifestado desde sua installação em 1826 contra as commissões ousadamente embolsadas pelos diplomatas de negocios que eram convidados a restituir as sommas «indevida e criminosamente recebidas», ao mesmo tempo que o governo era instado a chamal-os á responsabilidade e punil-os.

O exercicio de 1829-30 viu-se a braços com um deficit orçamentario de 7.387:953$000 e só tendo o governo á sua disposição, por assim dizer, aquella moeda de cobre depreciada, decretou o curso forçado das notas do Banco do Brazil, que justamente nesse anno deviam ser recolhidas e destruidas. Deficit e papel moeda trouxeram por consequencias maior baixa do cambio e elevação dos preços dos generos alimenticios. A situação financeira era a seguinte: a divida externa elevava-se a 18.957:155$554, a interna a 38.105:704$370, sendo 13.584:889$370 de divida consolidada e 24.520:815$000 de divida fluctuante, em que figuravam as notas do Banco pela importancia de 19.905:128$000. O governo procurou obviar ao mal, diminuindo os gastos, tornando mais severa a percepção dos impostos, permittindo a livre entrada de ouro e prata em moedas ou em barras e entregando á Caixa de Amortização os fundos disponiveis em metaes nobres para resgate das notas bancarias. O equilibrio orçamentario não se realizou comtudo inteiramente com semelhantes providencias, mas o exercicio de 1830-31, que foi o ultimo do primeiro reinado, encerrou-se com um deficit consideravelmente menor, de 2.263:128$499, não impedindo em todo caso o cambio de descer a 20 dinheiros.

O novo regimen tinha de mostrar sua sinceridade e sua capacidade. Mediante novas medidas administrativas e de uma franca hostilidade ao papel moeda, o governo tendo mesmo resolvido arrematar a metade dos direitos da alfandega e dos consulados para applicar o excedente a restringir a circulação fiduciaria, a situação acabou por offerecer uma sensivel melhoria. O primeiro orçamento apresentou um saldo de 2.163:173$200, sendo a receita calculada em 15.000 contos e a despeza em 12.836:826$800. Houve porem que recorrer-se a uma emissão de 3.000 contos em titulos da divida publica, o que significa que a receita era em demasia modesta para as crescentes necessidades da administração. Procedeu-se a uma excellente disposição de saneamento financeiro, liquidando o primeiro Banco do Brazil. Em 1821, na occasião em que el-rei D. João VI lhe acudiu, não só declarando o compromisso official do seu governo com o estabelecimento de credito que sobretudo desempenhara o papel de uma caixa subsidiaria do Thesouro, como confiando-lhe o que restava no erario regio de brilhantes brutos e lapidados, alfaias e outros objectos em ouro, prata e pedras preciosas, pertencentes á corôa, o deficit propriamente do Banco era de 7.500 contos, pois que não possuia este mais em cofre do que 1.315:439$000 para fazer face á troca das suas notas, elevando-se as mesmas n'aquelle anno a 8.872:450$000.

A Regencia, que envidou seus melhores esforços para regular a confusão financeira, mudou o padrão monetario, de 67½ para 43⅙ dinheiros e deu ás suas notas do Thesouro, que substituiu as do Banco, curso forçado (lei de 1833). O valor da oitava de ouro de 22 quilates foi fixado em 2.500 réis e a moeda de cobre foi mandada retirar da circulação com um desconto de 5 por cento. Creou-se simultaneamente um novo Banco do Brazil, com o capital de 20.000 contos, um quinto das acções pertencendo ao governo. Seu principal fim era substituir pelas suas notas, igualmente de curso forçado, as notas do Thesouro, o que arredava o mal do papel moeda official, mas não podia evitar a depreciação progressiva do meio circulante, pela razão inversa da valorização do meio circulante na Inglaterra, onde o curso forçado das notas do Banco fôra abolido em 1819, retornando-se os pagamentos em especie metallica. A desvalorização monetaria no Brazil havia sido de 60 por cento num periodo de vinte annos, de 1812 a 1831, com uma subida proporcional no valor dos productos agricolas e generos alimenticios. A partir de 1821 as notas do Banco do Brazil só eram recebidas com um abatimento de 110 por cento com relação á moeda de prata e de 190 por cento com relação á moeda de ouro. Este aliás desapparecera quasi completamente da circulação; a prata fizera-se extremamente rara e o cobre, senhor exclusivo da circulação, banira, graças á differença de valor real entre os dois metaes, a moeda de prata em uso nas provincias aonde não chegava o papel moeda bancario.

Este problema do cobre foi dos mais serios com que o governo teve que arcar n'esta ordem de idéas, mórmente pela circumstancia de que o governo não era o unico a emittir essa especie de moeda e que particulares juntavam as suas emissões. Chegou-se a escrever que as ultimas subiram ao dobro das primeiras e é possivel que assim fosse, pois que era muito larga a margem de lucro. Para o Thesouro o negocio era tentador. Comprava as folhas de cobre a 500 ou 600 réis a libra e, uma vez cunhada a moeda, a libra de metal passava a valer 1.280 réis, e até mais: 1.920 e 2.560 réis nas provincias de S. Paulo, Goyaz e Matto Grosso. Foi na Bahia que as emissões clandestinas tomaram maior desenvolvimento, sendo essas moedas, quasi tão finas como uma folha d'alamo e grosseiramente cunhadas, conhecidas, por uma suggestão onomatopaica, pelo nome de chenchen. Durante o primeiro reinado o seu agio sobre o papel moeda era de 10 a 40 por cento e contribuiam assim para a carestia da vida[2].

O relatorio apresentado em 1832 á Camara dos Deputados pelo ministro da Fazenda procurou naturalmente tornar o Imperador e seus conselheiros culpados de todos esses erros e faltas. «Não foi a revolução, dizia o ministro, que determinou a crise; a revolução só fez pôr a descoberto os males que existiam anteriormente e que de ha muito corroiam nossa prosperidade. O desapparecimento dos metaes preciosos, o esgotamento do Banco, a alta de todos os valores, destruindo o equilibrio do commercio e de todas as relações sociaes, a taxa de juros elevada a um agio extraordinario, o cambio, quasi reduzido a zero, o luxo superior ás fortunas individuaes mas reclamado por uma côrte que com elle mascarava seu pouco merito, a iniquidade da justiça, a corrupção dos costumes, o peculato dos funccionarios, a affeição da Corôa para com certas pessoas, a guerra injusta e imprudente, a depredação de certos homens favorecidos, a emissão extraordinaria de moeda sem valor e a continuidade de certas praticas abusivas, a prodigalidade de tratados que deram um golpe mortal no nosso commercio, navegação e industria, e emfim o estado — seja-me relevada a expressão — de inchação e não de saude, o estado violento e contrafeito, eram os males existentes que excitavam os murmurios de nacionaes e de estrangeiros».



Deste estado se foi curando o paiz com o restabelecimento da ordem e a moralização da administração. Si a Regencia foi proba, não o foi menos a Maioridade. A politica utilitaria iniciada pelo marquez de Paraná em 1853, o qual pessoalmente não acreditava muito na utilidade das estradas de ferro mas buscava pacificar a politica pela industria, desviando para esta o dinheiro antes empregado no trafico de escravos, depressa offereceu no reverso da medalha a representação do jogo de bolsa que foi sua consequencia natural, n'uma anticipação reduzida do encilhamento dos primeiros mezes da Republica. N'uma terra de papel moeda, as especulações tendem todas a caracterizar-se pela inflação, quer dizer, pelas emissões exaggeradas sobrecarregando a circulação fiduciaria, fragil base da economia nacional. O proprio ministro da Fazenda de 1857 e 1858, que era Souza Franco, deixou-se arrastar nesse declive. Pela sua theoria um unico banco não bastava para as necessidades da circulação, que o movimento dos negocios exigia mais activa: era mister decretar favores identicos, não sómente a outros estabelecimentos de credito como tambem a sociedades commanditarias, garantindo suas emissões com apolices da divida publica e acções de companhias de estradas de ferro, em vez de restrictamente com moeda metallica. Foi o mesmo erro financeiro que se repetiu com a Republica.

Espiritos gozando de grande auctoridade na materia, como Salles Torres Homem e Itaborahy, combateram então a perigosa doutrina perfilhada por Souza Franco e de antemão descreveram o que ia succeder depois do que Itaborahy denominava um «carnaval financeiro», a saber, o abuso do credito, a jogatina desenfreada, e desvalorização do papel moeda do governo, a baixa do cambio, os prejuizos do commercio legitimo. A expressão de Itaborahy não era uma infeliz figura de rhetorica. Foi um entrudo. Notas promissorias sem data fixa de pagamento eram permutadas por notas do Thesouro, por via de companhias de titulos atrahentes e enganadores, varrendo diante de si com gritos de alegria selvagem as notas do Banco do Brazil garantidas por uma reserva metallica equivalente á metade do valor da sua emissão. Essa reserva foi elevada de um terço no momento da crise, quando os outros bancos emissores estavam a cabo dos seus recursos de capital.

A confiança do Imperador no gabinete ficou muito abalada com taes resultados de sua gestão financeira e Olinda foi no fim de 1858 substituido por Abaeté, antigo liberal historico, e um grupo de conservadores — Salles Torres Homem, Nabuco de Araujo, Silva Paranhos, Manoel Felizardo —, ministerio que tratou de pôr as finanças do paiz em melhor pé, concitando, porem, contra si os interesses dos especuladores e dos agentes de negocios dolosos, que repercutiram dentro do recinto parlamentar. Salles Torres Homem referiu-se n'um discurso a «esses excessos lamentaveis de que a tribuna legislativa ainda não tivera o exemplo, mesmo nos periodos mais tempestuosos de nossa historia politica». A agitação dentro e fóra do Parlamento foi tal contra as cautelosas medidas do ministro da fazenda, Torres Homem, qualificadas de bancarrota, que o Imperador recusou ao gabinete o adiamento por elle solicitado, das camaras, o que provocou sua substituição por um ministerio presidido por Angelo Ferraz. Este aliás, apoz haver defendido a inteira liberdade de credito, mudou de idéas com o serio inquerito executivo a que procedeu e esposou, com sua costumada versatilidade, as vistas de Itaborahy e Torres Homem.

O projecto Torres Homem, approvado pela Camara por 61 votos contra 50 reservava exclusivamente ao corpo legislativo a faculdade de decretar bancos emissores; obrigava os que tinham sido fundados a pagarem suas notas em ouro, si assim o exigissem os portadores, fixando, no emtanto, o prazo de trez annos para satisfazerem essa disposição; prohibia todo augmento nas emissões, forçando os bancos a retirarem da circulação n'um prazo de seis mezes toda a importancia emittida depois de Maio de 1859, data do projecto, e nomeava um fiscal para assegurar a execução da lei. Angelo Ferraz esforçou-se por fazer o Senado adoptar o projecto com ligeiras modificações e conseguiu o seu intento, mas, ao serem submettidas as emendas á Camara, levantou-se de novo a antiga opposição dirigida pelos liberaes historicos. A approvação das emendas por 70 votos contra 21 de liberaes e alguns raros conservadores, o grosso do partido, tendo effectuado sua conversão, contribuiu enormemente para a impopularidade do ministerio, cujo chefe se viu exposto ás peores calumnias por motivo da sua apostasia (conforme a apregoaram), e para o triumpho dos liberaes nas eleições de Novembro, o commercio da capital tendo tomado sob seu patrocinio as candidaturas victoriosas de Theophilo Ottoni, Saldanha Marinho e Francisco Octaviano.

Segundo a exposição do presidente do Conselho, a situação financeira era a seguinte: em 1853, havia em circulação 48.000 contos em notas do Thesouro; em 1857, 10.000 contos tinham sido resgatados pelo Banco do Brazil, que emittira 20.000 contos das suas notas, garantidas por uma reserva metallica; em 1859, havia sempre os 38.000 contos de notas do Thesouro, mais 31.000 de emissões de bancos. O cambio descera de 27 para 24½ dinheiros — o padrão agora era 27 — e o Banco do Brazil não podia mais pagar em ouro as notas das suas emissões.



A liquidação dessa pequena orgia financeira deu-se em 1864. A lei de 1860 tinha restabelecido o nivel do cambio e mantido o privilegio da emissão do Banco do Brazil contra pagamento em ouro, mas não pudera normalizar as especulações bolsistas nem saldar as dividas dos particulares. A crise sobreveio quatro annos depois, aggravada por más colheitas que determinaram um desequilibrio da producção, portanto, de riqueza, acarretando a fallencia de varias casas bancarias até então muito acreditadas e, como taes, responsaveis por avultados depositos. Entre ellas contava-se a casa Souto. O abalo foi consideravel; a corrida aos bancos tão tumultuosa que as auctoridades tiveram que os proteger; o commercio paralizou-se inteiramente e a lavoura soffreu a maior repercussão porque dependia para seus gastos de exploração dos seus correspondentes estrangeiros, sobretudo portuguezes, que lhe acudiam ás difficuldades. O governo teve que intervir independente do Parlamento, que estava fechado, e fel-o decretando medidas especiaes para as fallencias e liquidações da Bolsa, umas em favor dos banqueiros, dos quaes alguns tinham continuado a emittir notas ao portador ou titulos nominativos a prazo fixo, e outras em favor dos credores, em muitos casos as victimas. Afóra a moratoria, o curso forçado das notas do Banco do Brazil, conjugado com a triplicação das emissões deste estabelecimento de credito, provocou a baixa do cambio e a immediata carestia de todos os generos.

A guerra do Paraguay, iniciada pela expedição do Uruguay, seguindo-se a esse periodo de crise, não podia deixar de exercer uma influencia nefasta sobre as finanças brazileiras. Sob o gabinete Olinda (1865-66) a situação tornou-se ameaçadora. Um emprestimo externo foi negociado em Londres em condições vexatorias; titulos da divida interna vendiam-se a preços infimos, e notas do Thesouro a prazo eram emittidas vencendo juros extraordinarios, onerando de toda a forma a divida fluctuante. Zacharias, ao tomar conta da pasta da Fazenda em Agosto de 1866, tratou de pôr alguma ordem n'essa confusão financeira. Revogou a faculdade de emissão do Banco do Brazil, fixando prazos para a amortização das suas notas, e retirou dos seus depositos o ouro que lá se encontrava e que foi calculado em 25.000 contos. O Banco foi indemnizado pela creação de uma carteira hypothecaria, destinada a garantir as dividas da classe agricola, cujas letras descontadas não mais se pagavam, apezar dos seus endossos commerciaes. Continuou entretanto o governo a vender apolices da divida publica de juro de 6 por cento a baixo preço, inferior de 30 por cento ao seu valor nominal; a emittir notas promissorias do Thesouro de juro de 7 e 8 por cento; a augmentar consideravelmente a circulação do papel moeda e a aggravar os impostos. O cambio naturalmente descia sempre por causa da superabundancia da moeda fiduciaria e das grandes difficuldades com que luctava a administração pela falta de recursos e excesso das despezas. O governo tentou obviar ao mal mesmo por meio de grandes medidas como a liberdade da navegação de cabotagem, a qual reduziu muito os fretes maritimos costeiros, que se tinham tornado extraordinariamente onerosos, e a abertura ao trafico universal sob pavilhões amigos do Amazonas e seus principaes affluentes e do São Francisco que a grande cachoeira de Paulo Affonso intercepta como que para garantir a integridade nacionalista do sertão e que banha a região mais historica do Brazil.

Zacharias inspirou-se nos conselhos do eminente financeiro Itaborahy, chefe conservador, o qual em Julho de 1868 lhe succedeu como presidente do Conselho e ministro da Fazenda. Foi mesmo a auctoridade de que gozava em materia economica este homem d'Estado uma das razões que determinaram o Imperador a chamar ao poder o partido conservador, ao qual aliás pertenciam o commandante em chefe do exercito em operações, Caxias, e o da esquadra, Joaquim José Ignacio, visconde de Inhauma. O sitio terrestre de Humaytá, de que os nossos navios, antes dos couraçados, se não podiam, desajudados pela força militar, apoderar pela via fluvial, vedada a passagem do rio Paraguay pelas correntes de ferro e pelas baterias dispostas em differentes alturas e sommando quasi 200 canhões, tornando assim senão inexpugnavel pelo menos em extremo ardua a captura d'esse local já anteriormente fortificado, em tempo do primeiro Lopez, foi o momento mais escuro da longa campanha, depois do revez de Curupaity. O local era excellentemente situado do ponto de vista estrategico, defendido por uma guarnição de 8.000 homens acoutados por traz de paliçadas e trincheiras habilmente dispostas por europeus peritos em balistica, especialmente o hungaro Morgenstern. Não constituia, porem, uma fortaleza regular: era antes um largo campo entrincheirado, como lhe chama Burton; lembrando as linhas de Torres Vedras levantadas por Wellington e contra as quaes foi impotente o impeto de Massena[3].

Já vimos como a politica ameaçou comprometter gravemente as operações no Paraguay. Caxias resentiu-se sobretudo dos ataques da imprensa a soldo do gabinete Zacharias e foi preciso que o Conselho d'Estado usasse de toda sua habilidade para resolver o conflicto, tendo o marechal só consentido em retirar seu pedido de demissão depois de receber plena e devida satisfacção do ministro da Guerra, que lhe exprimiu toda a confiança do governo. O perigo de novos attritos entre o gabinete e o seu delegado militar no estrangeiro não cessou porem de preoccupar seriamente o Imperador durante o resto do tempo em que a liga de conservadores dissidentes e de liberaes — os liberaes de côr mais radical faziam opposição juntamente com os conservadores tradicionaes — conservou seu poder vacillante.

Uma vez mudada a situação politica, Itaborahy fez prodigios nas finanças. O deficit dos trez ultimos annos tinha sido de 245.000 contos, coberto pelos expedientes apontados: a receita não se elevava, e isto mesmo penosamente, senão a 64.000 contos. Haveria em todo caso margem de recurso para os emprestimos, si os titulos não tivessem baixado, os da divida interna a 65 e os da divida externa a 68. A divida consolidada interna era de 180.000 contos, quando a externa não attingia mais do que 15 milhões esterlinos, mas havia tambem uma divida fluctuante de 83.000 contos em notas promissorias do Thesouro, vencendo juros de 6 e 8 por cento, e o papel moeda do governo em circulação, sem fallar nas notas de banco já inconversiveis, passava de 83.000 contos. As despezas do governo subiam a algarismos enormes que deviam saldar-se em ouro, e era impossivel reduzil-as no ponto a que chegara a campanha. Burton diz que só no Paraguay travou conhecimento com as moedas de ouro brazileiras. Itaborahy começou por emittir mais 8.000 contos de papel moeda para as despezas urgentes e buscou em seguida consolidar a divida fluctuante, cujos prazos de pagamento o affligiam á vista de um erario vasio e ameaçado de bancarrota. Um emprestimo domestico que tentou, do valor de 30.000 contos — os titulos, de 6 por cento de juro, tendo direito a uma amortização de um por cento em ouro, ao cambio par de 27 dinheiros — foi emittido a 95 e coberto trez vezes. Este exito financeiro deu-lhe coragem para emittir ainda 45.000 contos em titulos da divida interna, resgataveis em papel, á taxa de 75, uma melhoria portanto de 10 por cento sobre as emissões anteriores; para diminuir o numero das notas do Thesouro e seu juro; para pagar o ouro retirado dos depositos do Banco do Brazil, e para saldar a divida do governo com o Banco, causada pela amortização anterior do papel moeda, permittindo a este estabelecimento de credito servir as necessidades do commercio. Naturalmente todas as suas medidas se basearam sobre uma percepção mais rigorosa das receitas do Estado e sobre uma economia mais severa nas despezas.

Em 1870, immediatamente depois da campanha que custara ao Brazil 600.000 contos, 24.000 homens mortos e outros tantos estropeados, feridos ou doentes (o Imperio despachou para o Paraguay um total de 83.000 homens), as receitas, segundo a exposição official feita ao Parlamento, tinham subido a 94.000 contos — 30.000 contos de differença para mais —, o cambio passara de 14 para 20, a divida fluctuante diminuira sem novos emprestimos, as apolices denotaram uma progressão constante e consideravel no seu valor, e o orçamento para o exercicio a seguir-se annunciou-se com um saldo de 5.000 contos que Itaborahy recommendava fosse destinado á amortização do papel moeda. A faculdade de emissão foi novamente retirada ao Banco do Brazil, cujos accionistas puderam desde então eleger seu presidente. O governo reservou-se entretanto o direito de examinar, caso lhe conviesse, as contas e operações d'esse estabelecimento de credito, o qual se obrigava a uma amortização gradual das suas notas em circulação e angariava maior liberdade para occupar-se de transacções mercantis. Em 1873 o gabinete Rio Branco reduziu, porem, a quota a amortizar das notas do Banco em troca ou compensação pela secção hypothecaria que fôra fundada para auxilio á lavoura.

Para liquidar as despezas da campanha, o successor de Itaborahy na Fazenda, Salles Torres Homem, que fez parte do gabinete São Vicente, contrahiu em Londres um novo emprestimo. A politica sempre popular dos progressos materiaes foi porem adoptada pelo gabinete immediato, presidido pelo visconde do Rio Branco e que durou de 1871 a 1875, quando ainda mal cicatrizadas as feridas da guerra e o erario sem repousar sobre um fundamento solido. Os saldos da administração Itaborahy e dos emprestimos que se succederam depois da sua retirada do poder foram applicados a aformoseamentos da Côrte, á expansão das estradas de ferro e das emprezas de navegação por meio de subvenções e garantias de juros, ao augmento do numero dos tribunaes, dos vencimentos dos funccionarios publicos, do subsidio dos deputados e dos soldos do exercito, e á creação de novas repartições e de novos serviços administrativos. Reappareceu o deficit e a realidade financeira dissipou a illusão economica. Accresce que no anno de 1875 surgiram difficuldades commerciaes e corriam rumores pouco tranquillizadores acerca da solvabilidade de certas casas bancarias que especulavam sobre negocios industriaes, no paiz e no estrangeiro, tornando assim problematico o pagamento necessario dos seus compromissos e a eventual entrega, quando reclamados, dos depositos pelos quaes eram responsaveis. A crise precipitou-se e abriu-se justamente no momento em que o ministro da Fazenda comprava cambiaes sobre Londres, de consideravel importancia, por intermedio da casa Mauá e C.ª. Irineo Evangelista de Souza (Mauá) era um banqueiro de grande iniciativa, muita actividade e real probidade; mas seus negocios tomaram n'um dado momento uma feição desastrosa e as letras vendidas pelo seu estabelecimento de credito não foram honradas em Londres quando alli apresentadas. Sua fallencia arrastou a de outras casas bancarias e toda a praça do Rio de Janeiro se resentiu do descalabro.

O proprio Banco do Brazil experimentou um pronunciado abalo, pois que era credor das casas que tinham suspendido pagamentos, e seus depositos soffreram naturalmente uma brusca diminuição.

O governo teve que recorrer a uma emissão de papel moeda e conceder emprestimos a prazo fixo a alguns dos bancos compromettidos. — A operação foi feita sobre a garantia de apolices da divida publica e de letras do Thesouro e com a obrigação rigorosa de amortizar-se a emissão logo depois da liquidação das dividas (lei de 29 de Maio de 1875). A situação normalizou-se, mas o cambio, que subira a 24, cahiu. Sob o gabinete immediato (Caxias-Cotegipe) facilitou-se a acção dos bancos de credito real e o ministro da Fazenda, que era Cotegipe, esforçou-se vivamente pela realização de economias mediante o adiamento das despezas menos urgentes; pelo restabelecimento do equilibrio orçamentario, compromettido pela politica dos melhoramentos materiaes, tendo para isso que recorrer fatalmente aos impostos e aos emprestimos, e pela valorização do papel moeda, depreciado pela suspensão da sua amortização, iniciada por Itaborahy.

Nos ultimos annos da monarchia dois ministros, um conservador (Francisco Belisario de Souza) e outro liberal (Affonso Celso), se distinguiram especialmente pela sua competencia financeira. Ao cahir o Imperio, o cambio estava acima do par, circulando a libra esterlina, mas dando-se a preferencia ao papel moeda nacional, que de inconversivel passava a ter ouro por lastro. A divida publica era limitada, o quinto ou sextuplo no seu total da receita do Estado que de 16.000 que sommava na maioridade, subira a 175.000 contos. A divida fluctuante achava-se quasi extincta e reduzia-se folgadamente o juro da divida externa de 5 para 4 por cento.

  1. Calogeras, O Brazil por 1840, n'O Jornal, numero comemorativo de 2 de Dezembro de 1925.
  2. Felisbello Freire, As crises financeira, commercial, economica e monetaria no Brazil, seculos XIX e XX, artigos n'O Pais, em 1913.
  3. Letters from the battle-fields of Paraguay, London, 1870.