O Sr. Frota Pessoa escreve-me a seguinte carta, onde se vê o seu pouco desejo de entrar para a Academia:

"Meu caro João do Rio. — Respondo aos três últimos quesitos do seu inquérito. Por julgá-los de pouco interesse, deixo de atender aos que se referem à minha formação literária e à preferência que dou aos meus trabalhos literários.



— Lembrando separadamente a prosa e a poesia contemporâneas, parece-lhe que no momento atual, no Brasil, atravessamos um período estacionário, há novas escolas (romance social, poesia de ação, etc.), ou há a luta entre antigas e modernas?

Neste último caso, quais são elas? Quais os escritores contemporâneos que as representam? Qual a que julga destinada a predominar?

O meu amigo há de me permitir umas linhas de estilo demagógico. Bem sei o horror que tem às informações definitivas e violentas; mas de outra forma não lhe poderei dar inteiro o meu pensamento.

Salvo melhor juízo, cuido que o Brasil contemporâneo não admite o largo embate de idéias desinteressadas, no domínio da arte, porque todo ele está chafurdado em um vastíssimo pântano. Todos os sonhos e ideais jazem sepultados nos espíritos dos mais fecundos estetas. Não se nota um signo de renovação na atmosfera do sentimento.

Pareceu nas almas a fé, e com a fé o entusiasmo.

Compare a estagnação deste decênio com a febre do decênio anterior.

As causas? É que as instituições sociais que regulam a nossa existência entraram em decomposição.

As consciências melhores andam afogadas nas misérias que as assoberbam. Isto é um naufrágio.

Os caracteres oscilam: vacila o conceito da moral dominante.

Acentua-se um desequilíbrio formidável entre as ambições e os processos de conquista. Nenhum pudor, nenhum respeito pelas antigas formas de virtude. Os governos prevaricam, blindados por uma inconsciência invulnerável; os congressos, impessoais, realizando, como em tempo algum, os tipos coletivos de ajuntamentos ilícitos, curvam-se ao poder executivo com o incondicionalismo de escravos; os tribunais se desvairam, atônitos, a formar jurisprudências contraditórias sobre casos concretos imprevistos. E nenhuma preocupação hipócrita de salvar aparências.

Depois, ainda há uma decisiva agravante: é a ignorância popular, fomentada e cultivada pelos poderes públicos. Com a monarquia o mal não era tão grande. Num regime em que a graça de Deus inspira governantes e governados, a ignorância é quase um bem. Mas em um regime democrático, tão fatal é ao organismo social o analfabetismo das massas como ao organismo animal a privação de alimento. Quem disse essas coisas de um modo admirável foi o meu ilustrado amigo Dr. Manuel Bomfim, em um discurso que pronunciou o ano passado perante o Sr. Presidente da República e o Sr. Prefeito do Distrito Federal.

Não cito uns trechos característicos, para não alongar demais este arrazoado; mas leia o meu amigo as páginas 10,11 e 12 do opúsculo O progresso pela instrução, que tal é o título sob que se acha publicado esse monumental documento de crítica social, obra ao mesmo tempo de artista e de filósofo.

Não! As escolas não se batem, meu caro. Nem há escolas. Há apenas poetas que vão tristemente produzindo livros tristes, pela lei do hábito.

Temos românticos, naturalistas, nefelibatas, líricos, parnasianos, simbolistas, mas quase tudo francelho, com aquelas magras exceções que, no dizer dos gramáticos, vêm confirmar a regra. O que não temos é naturalismo, parnasianismo, simbolismo, etc.

E temos a ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS — um mito evocativo da Academia dos Seletos, ao qual o Sr. Seabra acaba de insuflar um pouco de realidade, fornecendo-lhe aposento, luz e criado, à custa da nação, para que, ante os seus pares atônitos, o Sr. Lúcio de Mendonça reviva e perpetue a imortal querela com o Sr. G. Redondo sobre a nacionalidade de Gonçalves Crespo. Mas a própria Academia de Letras, considere o meu douto amigo, nunca passou — tal a melancolia destes tempos — de uma sociedade funerária, com o exclusivo escopo de prantear os defuntos imortais e de receber novos imortais candidatos à vida eterna. Nela se entra pura e simplesmente para adquirir direito a uma morte carpida entre frases retumbantes e descompassados encômios. Nunca, jamais, nenhum imortal, ali penetrando, fez, no seu caráter de imortal, outra coisa que não partir para a bem-aventurança. E como o meu arguto amigo, com a sua incomparável perspicácia, deve ter ponderado, de si para si, isto é macabro.

E nestas condições, dado este meio, como haver atividade, emulação, justas renhidas entre estéticas rivais; como — escolas modernas lutando pela supremacia; como — escritores representativos; como — predomínio de cânones literários?



— O desenvolvimento dos centros literários dos Estados tenderá a criar literaturas à parte?


A literatura dos Estados é um reflexo da literatura desta capital. Às fulgurações e aos desfalecimentos desta correspondem fogachos e delíquios naquela. As formas prediletas da arte literária, aqui, são imediatamente aceitas pelos provincianos, da mesma forma que nós aceitamos e assimilamos, sem coisa alguma inovar, tudo quanto nos vem do estrangeiro.

Mas essas agremiações não deixam de ser interessantes e até certo ponto se justificam. No meio provinciano falece de todo o estímulo a qualquer produção de arte. Os jornais que aí se publicam vivem açodados em salvar a Pátria: uns, defendendo os atos, de maravilhosa honestidade, do governador ou presidente; outros, dia a dia apontando e verberando as incontáveis infâmias e tranquibérnias que esse mesmo cidadão pratica.

Não há como se celebrizar um gênio, fulgindo nessas colunas febris, consagradas a fins mais altos que acolher lucubrações literárias. Depois, o poeta que é amanuense do governo não tem guarida no jornal da oposição e o contista que freqüenta os salões e namora a filha do chefe político em oposição nunca achará agasalho na folha oficial. A publicação de livros é um martírio: o preço da edição — exorbitante, e ninguém quer ou sabe lê-los, quanto mais comprá-los.

É assim que os rapazes que se preocupam em fazer versos, fantasias e contos — que é quase a que se reduz essa literatura provinciana — só encontram um certo desafogo nos agrupamentos neutrais.

Reúnem-se, lêem as suas produções, aplaudem e são aplaudidos; às vezes, fundam uma pequena revista... E tudo obrigado a presidente, tesoureiro e secretários. Esses centros trazem uma vantagem: desenvolvem umas vocações mais bem dotadas e as preparam para vôos mais largos.

E trazem um inconveniente: o orgulho de alguns plumitivos exacerba-se e torna-se feroz.

À força de criar em torno de si uma certa legenda de talento, um ou outro desses agremiados cresce para dentro de si de uma forma alarmante. E, então não há expressões encomiásticas que, em breve, lhe não pareçam sem sabor. Mas, em verdade, desses há raros. A maioria é modesta e pouco a pouco sucumbe asfixiada. Talentos brilhantes conheci que para sempre desapareceram. O meio provinciano é uma campânula de bronze.

Mas, apesar de tudo, o mais humilde desses centros tem uma decisiva superioridade sobre a ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS, associação aqui fundada em 1896 e que o meu amigo, que é lido e curioso, deve conhecer pelos fúnebres arruidos que produz de onde em onde. Superioridade: porque são sinceros e liberais, porque são determinados por um justo sentimento de defesa e uma ânsia ativa de progresso, e ainda porque são ingênuos, compostos, na sua maioria, de rapazelhos que têm uma visão estreita, uma compreensão provinciana e uma cultura imperfeita. Até aqui eles pouco têm influído, ou quase nada, de um modo direto, na literatura, quanto mais ao ponto de criar literaturas à parte. Mas acaso a Academia, nos seus nove anos de existência (existência é uma metáfora), acaso a Academia, viveiro de águias, nos seus nove anos de existência, tem revelado um pendor, mesmo ligeiro, para a formação de uma literatura nacional dos escombros das tentativas anteriores?

Não! Nove anos de inércia ante o aguilhão dos sarcasmos e nem um movimento para qualquer obra útil e fecunda. Ou a Academia matou esses quarenta imortais, ou esses quarenta imortais mataram a Academia.

Mas, além das causas gerais indicadas no 3º capítulo e das que aqui vão compendiadas, a literatura dos Estados sofre outros males que a sufocam. Nessas deploráveis circunscrições geográficas não há governos, há feitores quase analfabetos, que exercem o seu domínio com fúria e sanha. Uma rede de extorsões, de violências, de peculatos descarados, de concussões voracíssimas, envolve todas as atividades, colhe os frutos de todos os esforços individuais, no proveito dos usufrutuários privilegiados.

Justamente os intelectuais são os que menos se sujeitam ao vexatório regime de descabelada opressão que aí se exerce sobre todas as autonomias; e, ou ficam privados de elementos vitais para exercer a sua função, ou fogem ao meio irrespirável. Por aqui já se vê: de uma parte, a melancolia que se derrama por essas regiões é incompatível com o subjetivismo das criações de arte; de outra, os cultores da literatura se retraem, ou buscam paragens onde o sentimento se possa expandir com uma certa liberdade.

E não é tudo: a instrução popular é, pouco mais ou menos, o que é na Rússia. Setenta e cinco ou oitenta por cento dos indivíduos são analfabetos. Os cargos do magistério são privativos dos filhotes políticos dos pequenos chefes locais. Distribuem-se os lugares de professores como os de escriturários de cartório. Um professor adverso aos governantes é um inimigo público. Querem-se cabos de eleição e não mestres de ensino.

Nem se faz questão de que haja uma instrução pública, senão de que exista um quadro de empregados, para prêmio dos apaniguados.

Esta é a situação geral, se, no entanto, excetuarmos três ou quatro Estados, que escapam, aqui e ali, a umas ou outras dessas argüições.

Desconfio bem que, não obstante a numerosa dialética que venho empregando, não respondi ao esfuracante quesito sobre os centros literários. Porque o que o meu delicioso amigo quer de mim é que lhe prognostique se o desenvolvimento de tais centros tenderá a criar literaturas à parte... Os séculos são, por natureza, longos, e o meu dom divinatório curto. Eu sou um oráculo tímido e prudente. Zelo a minha reputação: que dirão os meus tetranetos remotos, se no século XXX me encontrarem em falta, tendo feito errôneas previsões? Contudo, posso arriscar-me ao seguinte: com o Brasil de hoje, não creio; com uma nova Pátria, expurgada, regenerada e redimida, é possível. Porque o meu caro inquisidor bem sabe que tudo é possível. É possível que o Sr. Padre Severiano venha a ser canonizado. É possível que o modesto rabiscador destas singelas profecias e sentenças ainda seja um dos luminares da Academia de Letras.

— O jornalismo, especialmente no Brasil, é um fator bom, ou mau, para a literatura?

E, meu doce amigo, quanto ao jornalismo... Difficilem rem postulasti...

Não faça caso do latim e atenda. Tenho para mim que, em geral, as instituições, as coletividades, têm uma moral inferior à dos indivíduos que as compõem ou representam. Considere o Estado, que é a instituição - tipo. Conhece acaso entidade mais despótica, mais absorvente, mais cruel e mais nociva? Ele paralisa a iniciativa pessoal; concentra em si, em detrimento da liberdade individual, uma formidável soma de poderes discricionários; estimula, com a arbitrária legislação que institui e com o aparelho compressor de que se cerca, os crimes e as infrações; sacrifica ao bem-estar de um pequeno grupo de seres improdutivos todo o enorme esforço das populações laboriosas.

Considere as subdivisões dessa complicada máquina de opressão: os congressos, os tribunais, os júris, os exércitos... Todos os males que desabam sobre as nações vêm dos atos soberanos dessas e outras corporações. Considere ainda as instituições que se fundam pelo livre concurso dos indivíduos: os clubes, os sindicatos. os trustes, as associações de qualquer gênero, inclusive as de intenções pias, inclusive a ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS, que nunca abrigou no seu venerando e infecundo seio intenção alguma. E verá que se refletem, dessas pessoas coletivas sobre as singulares, mais malefícios do que benefícios.

Mesmo as de intenções pias, disse: porque elas nada mais representam do que a hipocrisia com que as classes privilegiadas pretendem mascarar o seu monstruoso egoísmo e, portanto, concorrem para manter no mundo as seculares injustiças que o envergonham.

Mesmo a Academia de Letras, disse também: porque é uma mentira mumificada, uma aristocracia decadente e vadia, para embasbacar papalvos e formar esnobes. E toda mentira deve ser combatida e repudiada, porque toda mentira é uma adulteração fraudulenta da Natureza e um refalsamento indigno do espírito humano.

E essas instituições não evoluem das suas formas essenciais.

Os congressos têm o mesmo cordato servilismo que fazia o Senado Romano dar o título de cônsul ao cavalo de Calígula. Os júris são incompetentes ou venais: ou absolvem por cupidez, ou condenam por preconceito e ignorância. Os exércitos professam os mesmos princípios de glória assassina e sanguinária, e trazem aos povos os mesmos flagelos que as hordas primitivas de mercenários, apenas sem as francas atitudes e os ingênuos gestos de brutal ferocidade. Eles massacram, como outrora, os indivíduos válidos, e sacrificam, dessa arte, os milhões de frágeis seres que do seu amparo viviam; e, como conjuração aos clamores e às maldições das vítimas inocentes, fabricam-se códigos de humanitarismo e cria-se toda uma repulsiva moral patriótica, que galvaniza o coração da bruta massa de carrascos inconscientes que compõem as suas fileiras.

Ora, o jornalismo é hoje uma instituição coletiva, anônima e quase irresponsável, por quase onipotente; participa, pois, dos vícios das coletividades. Estes se atenuam quando o jornal é a tribuna ativa, de onde um determinado espírito, que traz convicções e idéias próprias, se dirige às massas para esclarecê-las, conduzi-las e educá-las.

É o caso de Ferreira de Araújo e de José do Patrocínio.

Mas, na sua feição mais comum, o jornal moderno é uma instituição que decai.

No entanto, eu não pretendo, nem desejo, aqui, vociferar contra o jornal, onde nos fizemos, que nos deu os primeiros ardores para o combate da vida, os primeiros entusiasmos e ilusões de renome e as últimas emoções, realmente sinceras, da publicidade. Sou grato ao jornal, amo o jornal, com esse amor irrefletido dos verdadeiros amantes. E nem por isso — não se sobressalte o meu preclaro amigo — nem por isso constatarei nestas linhas simples que ele é um veículo de idéias, ou uma alavanca do progresso.

O jornal é o que não pode deixar de ser: função do progresso e dele servidor.

— Mas particularmente para a arte literária, argúi-me o seu quesito derradeiro, é um fator bom, ou mau? Com as inevitáveis restrições que decorrem de quanto fica dito, cuido que o jornalismo presta à arte literária — e isto é intuitivo — todos os serviços de propaganda e difusão rápida, que ela requer para se desenvolver. E sobretudo em um meio como o nosso, em que a indústria editora é tão arisca e mofina, ele é um estimulante eficaz à atividade intelectual dos neófitos de valor. Estas são as suas inegáveis utilidades, no que se refere à literatura.

Entre as suas influências nocivas pode esta ser de pronto lembrada: facilita uma literatura de fancaria, que embota e corrompe o gosto artístico dos leitores e determina a decadência dos escritores que a executam (e temos exemplos contemporâneos memoráveis), quer instigados pela necessidade de viver, quer induzidos por uma ânsia vã de reclamos e gloriolas.

Terei correspondido aos intuitos do magnífico espírito que me honrou com a sua consulta? Estou que sim, tanto quanto isto é possível a um homem que se acostumou a dizer todas as extravagâncias que pensa — um péssimo costume... "