O Sr. Gustavo Santiago é o exótico poeta do Cavaleiro do Luar e dos Pássaros brancos, a hipertrofia do nefelibatismo.

Um cavaleiro a quem pergunto onde mora artista tão complicado, previne-me:

— É um homem com a mania de dar na vista. Ultimamente ofereceu um almoço aos amigos. O primeiro prato foi uma salada de violetas, temperadas — como as alfaces — com azeite e vinagre!

Não recuei espantado. A mim sempre me estava parecendo que o Sr. Gustavo Santiago era o mais simples e o mais encantador dos homens. E com efeito. Cavaleiro do Luar atravessando oceanos de erisipelas, pássaros bizarros, idéias exóticas, complicações de versos livres, quebrados, harmônicos, inarmônicos, intencionistas — tudo isso é a aparência, o broquel para fazer pasmar o burguês.

Na intimidade o Sr. Gustavo Santiago, com um pince-nez de míope a encobrir dois lindos olhos doces e femininos, é o próprio bom senso.

Recebe-me afetuosamente e começa tratando-me de ilustre jornalista.

— Há de permitir o ilustre jornalista qualifique a pergunta de obscura. Acho-a vaga demais, não abrangendo precisamente o fim colimado, ou indo além dele, para merecer resposta perfeita. Entendâmo-nos. Se o que o amigo pretende é saber onde colhi as idéias gerais, sobre que se baseiam as minhas opiniões, sobre que assenta a minha orientação estética, sobre que se desenvolvem os meus escritos em prosa e em verso, dir-lhe-ei que em todos os livros lidos, em todos os recantos do globo visitados, em todos os gestos e olhares surpreendidos, em todas as amarguras e satisfações experimentadas, enfim em tudo que constitui a Vida. Se, porém, o que deseja é que lhe nomeie poetas, romancistas, conteurs, filósofos, críticos, com os quais houvesse aprendido a tornear a frase, a arredondar o período, a polir o epíteto, a relevar o verbo, consinta lhe declare com absoluta franqueza nenhum poder infelicitar-se de tamanho peso à cauda.

Decorei nos tempos de colégio as regras, até agora sem o menor valor para mim, da gramática então adotada, e creio ter vindo disso a rara desventura, que me segue, de não dispor de memória. Não nasci para copista...

— Entretanto, não me poderá apontar, entre os escritores com que tem confabulado, quais os que maiores e mais duradouras emoções lhe têm fornecido?

Da melhor vontade. Na língua portuguesa enumerar-lhe-ei Camões, Herculano, Tomás Antônio Gonzaga, Fagundes Varela; nas outras, Lamartine, H. F. Amiel, Dante, Schiller, Longfellow, Shakespeare, Taine e o assombroso Balzac.

— E das suas obras qual a que prefere?

— Houve um instante que todas as minhas simpatias se voltaram para as Saudades, publicadas em 1892, em Coimbra. Veio depois o poema O Cavaleiro do Luar, tão mal acolhido pela chamada crítica indígena e, no entanto, de resultados tão completos junto ao público. Por fim, foram os Pássaros Brancos. Hoje...

— Hoje...?

— ... é o livro em que ando a trabalhar.

— De sorte que v. não tem preferências por esta ou aquela de suas obras?

— Naturalmente. Nem eu concebo um pai com mais amores a um filho do que a outro. Não são todos filhos?

— No que importa à prosa e à poesia contemporâneas, separadamente, parece-lhe que no momento atual, no Brasil, atravessamos um período estacionário? Haverá novas escolas? Haverá luta entre escolas antigas e modernas?

— No que refere à poesia, ou, melhor, ao verso, julgo não errar, assegurando ser o momento de luta. Há, de um lado, o parnasianismo, que, agonizante, a debater-se nas vascas da morte, tenta por todas as formas resistir, apegando-se até à tabua de salvação de todas as inteligências extintas do classicismo; há de outro lado, o que, de maneira geral, se convencionou denominar no Brasil e em Portugal nefelibatismo, e que tão desastradamente tem sido interpretado e compreendido entre nós. Lembra-se da apreciação de Sílvio Romero, filiando o movimento aqui a não sei que produto poético de um vinhateiro, que há lá na península ibérica, em Portugal, chamado Guerra Junqueiro? Pois é assim que a nossa crítica se externa, e, olhe, Sílvio é dos mais competentes, se não o mais autorizado. Imagine o resto... Não estamos no verso estacionário; as duas coortes em frente provam o inverso, a atividade. Enquanto os parnasianos, unidos aos clássicos e aos românticos, que ainda os há, querem o statu quo, a conservação de fórmulas que o tempo e o uso imoderado tornaram imorais, como o adjetivo com a acepção rigorosa do dicionário, o número de sílabas muito de acordo com os compêndios, os acentos muito direitinhos nos respectivos lugares, a imagem muito terra-a-terra, a suportar a análise do burguês, a rastejar, a rima a opulentarse ridiculamente num trabalho todo de paciência e rebuscamento por alfarrábios e empoados cadernos de sacristia, — os nefelibatas, insurgindo-se, arremetem contra tudo isso, na prédica do verso livre, na afirmação alta da imagem com asas, pairando inacessível em regiões estelares, em mundos outros que não os devassáveis pelo olho filisteu. Os "velhos" pretendem a arte-habilidade; os "novos" pretendem a arte-sonho. Os primeiros, partindo do ponto de vista falso de que a paisagem nada mais é do que um quadro, de que o homem nada mais é do que um simples animal obedecendo estritamente às leis biofisiológicas, que governam todos os outros, baniram da arte a emoção, o sentimento, a jungi-la ao termo preciso, a senhoreá-la à descritiva, a nivelá-la à fotografia. Os segundos, tomando como verdade o pensamento de Amiel, de que a paisagem nada mais é senão um estado de alma e de que o homem, com ser um animal, não é menos um coração, nem menos um espírito, procuram reintegrar a emoção, recolocar no altar o sentimento.

Se o combate não está travado com o ardor e o arruído, com que o fizeram em outras épocas outras falanges, nem por isso cabe a suposição de uma invejável paz nos arraiais beletrísticos.

Acredito mesmo que nunca o Brasil intelectual andou um quarto de hora mais belicoso.

O que se deverá de registrar é que da parte dos que surgem, sabendo ao que vêm, tem havido mais delicadeza, mais respeito pelo valor pessoal dos que o possuem, mais consideração para com os méritos alheios.

Neles a compreensão do problema é mais nítida, e daí não sentirem a necessidade de ataque a quem quer que existe só pelo fato de rumo diverso. As pedras e os espinhos da estrada apenas ferem a quem por ela envereda, e não vale ir atrás do que ao bom preferiu o mau caminho.

E acresce que em matéria de estética a discussão nunca foi nem será produtiva. Cada qual faz do Belo o juízo que melhor lhe quadra e é inútil querer convencer de erro ou falha.

Sobre tanto penso com Luís Dumur que cada poeta com talento é um príncipe na sua ilha.

É verdade que existem por aí uns irrequietos discípulos de Cruz e Sousa, que, de quando em quando, borbulham a insultar, a injuriar, crendo assim honrar a memória do mestre. Convém, contudo, descontar em alguns a idade, em outros a falta de laços familiares fortes, em terceiros o desvio da sua verdadeira carreira.

Não se recorda do epíteto "mulato", atirado por um desses moços a Gonçalves Dias?...

Na poesia, pois, e em resumo, eu diviso duas orientações diferentes, em antagonismo, disputando-se valorosamente o predomínio do momento, ainda que sem fragor, nem escândalo — o parnasianismo e o nefelibatismo —, o primeiro, correspondendo, na ordem filosófica, ao materialismo; o segundo ao espiritualismo.

— Qual a que julga destinada a predominar?

— Necessariamente a última, como a melhor aparelhada para as responsabilidades do momento estético brasileiro, como a mais consentânea com a transformação, que de tempos se vem operando na alma popular nacional. Devo dizer-lhe que não estou de modo algum filiado a nenhuma delas, embora já me acoimassem pelas colunas de jornais de chefe do simbolismo. Todavia a verdade, de tal qual a vejo nos meus segundos de filósofo, é essa.

Desbastadas as arestas que o nefelibatismo ainda apresenta, cortados em seus produtos certos exageros, aliás desculpáveis, ver-se-á não contar o lirismo com substituto mais digno, nem mais sério.

Dispense-me fundamentar o conceito; levar-nos-ia longe e, como o assegura o inglês, time is money.

— Quanto à prosa?...

— No relativo à prosa, ou, melhor, ao romance, também a luta é a nota em destaque. Três tendências se desenham ao olhar do observador, caracterizadas no romance naturalista, ou de costumes, no romance social, ou de tese, e no romance psicológico.

Em tempos dominou exclusivamente o campo o naturalismo. Com o abuso, porém, a que se entregou, do esvurmar contínuo das partes cancerosas da sociedade, com o gasto desmedido que fez de descrições e cenas demasiado cruas, teve que bater em retirada, e ceder o palco ao psicologismo e ao socialismo. Hoje são estes dois os que contendem, e não se me afigura desrazoável augurar a vitória do primeiro.

— E quais os escritores contemporâneos que representam as diversas escolas, tanto na poesia como no romance?

— Do lado das fórmulas velhas, o meu amigo Alberto de Oliveira e Aluísio Azevedo, Augusto Lima, Júlia Lopes de Almeida, Machado de Assis e Olavo Bilac; do lado das novas, Alphonsus de Guimaraens, Artur Lobo, Curvelo de Mendonça, Esperidião de Medeiros, Emiliano Perneta, Fábio Luz, Mário Alves, Nestor Vítor, Pethion de Vilar, Oliveira Gomes. Talvez estranhe não lhe citar os nomes de Luís Murat e Luís Delfino... Considero-os à parte, numa categoria de luz em que são poucos os que entram.

— O desenvolvimento dos centros literários dos Estados tenderá a criar literaturas à parte?

— Não o creio. Eles, se por um lado possuem a paisagem e mesmo costumes, por outro não poderão nunca possuir usos, modos de vida perfeitamente próprios; a vida lá, pelo menos enquanto a língua for a portuguesa, nunca deixará de ser uma simples repercussão da nossa. E mesmo a posição privilegiada do Rio está a indicar que, qualquer que seja a sorte da capital política do país, enquanto os vinte Estados se mantiverem unidos na formação do Brasil, a capital de fato há de ser sempre aqui. Por isso não acredito possam os centros literários estaduais vir a criar literaturas especiais.

— O jornalismo, especialmente no Brasil, é um fator bom ou mau para a arte literária?

— Encarando-o sob o aspecto da prática, do exercício, considero-o dos piores. A facilidade com que o público aceita quanto se lhe dá; a maleabilidade de espírito necessária no jornalista para o enfrentamento das questões as mais diversas; a pressa com que se é obrigado a trabalhar na redação, a atender à urgência da hora; a banalidade e leveza de comentários, a que se é forçado — são elementos nocivos, que acabam esterilizando, matando o homem de letras.

Depois, v. está na lide e não ignora, no jornalismo a nota predominante é o bom senso, a chapa, o lugar comum, o cachet prontinho, tudo como sempre e como em toda parte, e isso é a asfixia lenta da originalidade de cada um, o assassinato frio e pausado do poder criador peculiar a cada individualidade. Eu poderia exemplificar, mas as horas adiantam-se... Não quer isso, porém, significar que o jornalismo não seja um belo fator de engrandecimento social e sobretudo um magnífico meio de reclame... para as nossas obras."

Como se vê, tudo quanto há de mais cordato e de mais calmo. O Cavaleiro do Luar afinal razoável...

Eu sou como o formoso Cavaleiro

Que a branda luz adormeceu do Luar

E nunca mais, formoso Cavaleiro,

E nunca mais tornou adespertar.