Júlio Afrânio é o autor da Rosa Mística, poema impresso em Leipzig com as cores do íris; Júlio Afrânio é também, além de escritor de raro talento, um dos nossos mais ilustres psiquiatras.
É dele esta carta:
Querido João do Rio. — Sua indulgência, desejando resposta a um inquérito literário, obriga-me talvez a merecer a pecha de presumido. Valha-me o não poder furtar-me à sua benignidade, sem descortesia.
1º. — Sobre a minha "formação"... Não lhe parece enfático? Não sei de muitos em nossa terra que, como o Sr. Nabuco, possam falar, com interesse para outrem de sua "formação". Muito mais os amorfos.
Se posso transmudar em preferências literárias o conteúdo de sua pergunta dir-lhe-ei que Nietzsche, d'Annuzio e Maeterlinck, para os dias festivos do espírito; e Anatole France, Eça de Queirós e Machado de Assis, para a intimidade de todas as horas, são os meus autores prediletos... Os velhos, sobremodo os recuados, faço como toda a gente, respeito-os e penso que lhes não faz falta o meu trato. Prefiro os contemporâneos no momento mesmo, a guardá-los para o aplauso de meus vindouros. Sei que não é esse o uso literário. A literatura oficial, como o vinho e o café, deve ser velha, para ser louvada.
Os autores infelizes, que não tiveram louvores nem editores, que se consolem com a possibilidade de uma estátua, no futuro, ou a probabilidade de enriquecerem daí a trinta ou cinqüenta anos os que os explorarem. Eu, de mim, suponho que os literatos, como os criados, devem ser pagos em dia: com a remuneração, o louvor, a consideração que merecem. É uma determinante de minha preferência pelos presentes. A outra, de ordem psicológica, e esta egoística, é que eu sinto melhor o que observa, imagina, representa ou deduz um autor de meu tempo, de meu meio, de minha civilização, que um sujeito de uma era, um país, uma sociedade que não conheço.
O mais é prazer do exótico e do anacrônico, quando não veleidade de erudito: e aqueles são os dispépticos da literatura: estes, indivíduos que têm como profissão se aborrecerem e; às vezes, aborrecerem os outros.
Não vale isto dizer que desrespeito os velhos consagrados; não. Venero-os, e possivelmente os leio com acatamento e fastio.
2º. — Qual prefiro de minhas obras? ... Quem não aspirou ainda ser autor de uma obra ou de muitas obras? Eu, como todo o mundo. Das minhas, prefiro certamente as que não escrevi, e, se um dia isso for passado ou presente, a que não escreverei. Realizar o ideal é degradá-lo. Isso pode ser acaciano, mas explica a razão de minha preferência.
3º. — Não, não me parece que no momento atual haja estagnação literária no Brasil. Ao invés, lembro que, à parte Alencar e Castro Alves, quase todos os nossos grandes engenhos literários vivem, e fecundos ainda. Se são precisos nomes, os de Machado de Assis e Aluísio Azevedo, Olavo Bilac e Raimundo Correia, José Veríssimo e Araripe Júnior, Joaquim Nabuco e Rui Barbosa, João Ribeiro e Medeiros e Albuquerque, Coelho Neto e Júlia Lopes, Graça Aranha e Domingos Olímpio, Afonso Arinos e Euclides da Cunha... e tantíssimos outros, romancistas, poetas, críticos, panfletários, polígrafos... deporiam favoravelmente.
Respeito a luta entre novos e definitivos, nada há a dizer de novo, porque isso é já definitivo: os que chegaram e venceram estão senhores da situação; os que chegam e os agridem desejam aquela vitória e esta situação. Isto se faz as vezes com talento, mas, entretanto, com pouco espírito e muito insulto.
As coteries tem apenas o mérito de, sobre o adubo da mediocridade conglomerada, fazer nascer o destaque de um talento que por ventura aí se encontre. Para a geração seguinte este já definitivo amargará com o insulto tal consagração.
Predominará, porém, certamente, quem tiver talento e souber usa-lo: são as maquinas que impulsionam os navios, e não as cores de que são pintados ou o nome que trazem na proa. É rudimentar, mas a aplicação não parece.
4º. — Não creio que o desenvolvimento dos centros literários dos Estados possam criar literaturas a parte: a identidade de língua, a uniformidade de costumes e a mesma tendência imitadora dos defeitos franceses bastam para assegurar a unidade literária do Brasil.
5º. — Sim, o jornalismo, em toda a parte, tem sido um fator de arte literária, e isto é razoável, quando o jornal tende a substituir o livro cada vez mais. Se é apressada, as vezes, tal literatura, lucra, por outro lado com a difusão.
No Brasil... diga-me, à puridade, não é imprudente conversarmos este assunto?... Demos que influência, e muito favoravelmente.