O Sr. Augusto Franco, de Minas, manda-me dizer que não pode responder aos dois primeiros quesitos, porque, além de complexos, seriam uma autobiografia quase pretensiosa. Quanto aos dois últimos, o ilustrado crítico transcreve na resposta um trecho do seu livro Fragmentos literários, sobre a idéia de estreitamento de relações literárias entre as nações, e continua:

Muitos eram os adeptos dessa e de outras idéias, quase idênticas em relação à necessidade de um estreitamento de convivência literária e mesmo científica entre as nações. Deles avultavam os nomes de Henrich Laub, Paulo Heyse, Geibel, Gneist, Werder, Czermk, Rosenthal e outros célebres literatos e doutores, também desmiolados e asneirões.

Na França, na Holanda, na Rússia, na Inglaterra , na Itália e até na Espanha, essas idéias já iam tomando corpo, por isso que nesses diferentes países já se haviam mesmo criado seções filiadas ao centro tedesco.

Pois é na persuasão de que não me saia pela frente algum carvoeiro malcriado e atrevido, que ouso divulgar a idéia de se porem em ação convergente os meios necessários à comunicação e congregação íntima dos variados elementos literários esparsos pelos diversos Estados do Brasil.

E é, indubitavelmente, a crítica literária brasileira que cabe tal mister. É a ela, com efeito, que cumpre, por meio da análise conscienciosa e justiceira dos trabalhos dos diferentes escritores nacionais, tornar destes conhecidas as obras de valor, pondo-os em contato espiritual, aguçando entre eles a curiosidade e o interesse pela procura e conhecimento dos trabalhos de mérito, afiando-lhes, por fim, a vontade de conchegar as relações literárias de mais em mais, cada vez com redobrado afinco e avidez.

Já que a nossa Academia do Letras não se interessa por essas cousas, tentemos consegui-lo por meio da análise crítica no livro e no jornal, pois impossível é quase a fundação de centros literários nos Estados, subordinados a um centro-diretor, que, na hipótese, poderia ser a própria Academia, se, acaso, cogitasse ela de semelhantes nonadas...

Entre os fins mais nobres, destinados à missão da crítica brasileira, está, pois, o de fazer conhecidos entre si os nossos escritores, acabando com essa crassa ignorância que oculta aos talentos aprimorados do norte as mais belas inteligências do sul, e vice-versa.

Sociológica, estética, psicológica, determinista, ou o que mais seja, a crítica literária deve também ser um instrumento prático e honesto de vulgarização dos bons trabalhos e um veículo justiceiro para a coesão das capacidades intelectuais.

Que todo o Brasil, de norte a sul e de leste a oeste, se conheça e se confraternize literariamente, por meio de uma crítica imparcialmente disseminadora e difusiva, que terá como resultante a criação de uma literatura interestadual, ou formação integral da literatura brasileira, forte, robusta, vigorosa, inteiriça.

Era este o meu pensamento em 1901. Hoje, não está absolutamente abalado. Hoje, como então, ponho em dúvida a existência de centros literários estaduais, e chego mesmo a negar a integração definitiva da literatura pátria.

Nos Estados há grandes talentos, brilhantes ilustrações, homens de rara e notável capacidade mental, escritores e pensadores de fina têmpera, que se não trocam por certos nulos empavesados da Rua do Ouvidor — cloróticos representantes de uma literatice mórbida, doentia, aquosa, anemizada pelo elogio de confraria ridícula e pulha.

Entretanto, por múltiplas circunstâncias, a capital da República será ainda por longo tempo o foco principal de convergência das aspirações à consagração literária.

Podem nos Estados refulgir, luminosos e rútilos, talentos vigorosamente cultivados; podem sobressair aureolados por uma fotosfera intensa, nas ciências, nas letras, nas artes, no jornalismo, no ensino; mas, se o Rio de Janeiro os não consagra (felizmente há muita gente aí que não faz coro com o empurro mútuo), jamais romperão a penumbra provinciana.

No seu escrito La Nationalité et l'Etat, o sociólogo Novicov observa que as capitais das nações são geralmente centros intelectuais mais poderosos. É nelas que se centraliza a elaboração das idéias e dos sentimentos. É aí que a literatura brilha com um fulgor mais vivo. É aí que se encontra a élite social, na expressão de Comte.

Tudo isso é verdade, não há negar. Mas como bem acrescenta o mesmo publicista noutro trabalho intitulado L'évolution de l'organisme social, há diferença entre aquela e a élite intelectual.

Se a primeira, de fato, se concentra nas capitais, a segunda "est répandue, dans une certaine mesure, sur toute la surface du territoire d'une nation".

Donde se conclui que as capacidades mentais de plano superior não constituem privilégio das sedes políticas dos países.

E é necessário ajuntar que o Rio está cheio de escritores provincianos, que lá não foram adquirir nem mais talento nem mais aptidão, mas apenas tornar-se mais conhecidos, lidos e apreciados.

Duas linhas agora acerca do último quesito.

O jornalismo, em qualquer parte do mundo, e sobretudo no Brasil, e particularmente aí no Rio, pode ser um fator ótimo ou um fator péssimo da arte literária.

É péssimo, quando os seus diretores não têm critério na escolha das produções que a colaboração irresponsável e duvidosa de rabiscadores medíocres lhes oferece; quando permitem que os próprios autores elogiem ou mandem elogiar os seus livros com fins essencialmente mercantis; quando afastam os escritores de real valor, de merecimento comprovado, e protegem as nulidades apavonadas.

É igualmente péssimo e, mais do que isso, profundamente pernicioso, quando dirigido por tipos ignóbeis como aquele finamente caracterizado por Villiers de I'Isle-Adam nos seus belíssimos Contes Cruels (págs. 34-51).

Mas quando o jornalismo conta entre os seus mentores um vulto da estatura moral do pranteado e meigo Ferreira de Araújo, então ele é bom, ele é fecundo, ele é ótimo, não simplesmente como vigoroso fator literário senão também como um nobre impulsor da civilização de um povo.

Tocando o nome augusto do grande e saudoso mestre da imprensa brasileira, não parece fora de propósito recordar um fato que deve ser aqui narrado por ter estreita conexão com o assunto deste artigo.

Um moço de mérito, mas desconhecido, um moço, que muito prometia, escreveu um dia um esplêndido conto. Onde publicá-lo?

Sem apresentação, sem proteção literária (até nas letras é preciso ter proteção no Rio!...), entendeu, contudo, de ir procurar o querido diretor da Gazeta de Notícias para que lhe publicasse o conto.

Foi por uma bela tarde, após o jantar, que Ferreira de Araújo, obeso, risonho, no jardim, a palitar os dentes, recebeu o jovem estreante. Depois de, naturalmente, lhe ter dito alguma frase corriqueira, igual àquela que Th. Gautier, no seu livro Portraits Contemporains (pág. 47), conta haver dirigido ao estupendo Balzac, quando o visitou pela primeira vez, o tímido candidato à sagração fluminense entregou ao preclaro jornalista as tiras caprichadas do seu burilado conto, implorando-lhe a publicação dele na Gazeta, Ferreira de Araújo passou ligeiramente os olhos pelo manuscrito, dobrou-o, pô-lo no bolso, dizendo languidamente ao rapaz: — "Agora, não posso ler."

Estas quatro palavras simplíssimas bastaram para afastar dali, desacoroçoado e triste, o pobre escritor de contos.

Grande, porém, foi a sua surpresa quando no dia seguinte, ao abrir a Gazeta, deparou estampado, na coluna de honra, o seu amado trabalho.

E maior foi ainda o seu espanto quando, passeando à Rua do Ouvidor e parando em frente da redação da Gazeta, Ferreira de Araújo o chamou e disse-lhe: — "Vá entender-se com o caixa; traga-me sempre contos como aquele e terá de cada um trinta mil réis."

Hoje, o medroso contista de outrora é uma das figuras mais salientes, de mais nítido e claro destaque, da literatura nacional.