O drama da independência, que mais rigorosamente foi o que se chama na linguagem teatral francesa uma alta comédia, porque do drama teve as paixões, mas quase não teve felizmente as violências, não poderia entrar no rol das peças clássicas. Falta-lhe, para a lei das três unidades, a unidade de lugar. A ação passa-se simultaneamente nos dois hemisférios e as fases da sua evolução só logram ser bem compreendidas e formar cadeia quando se lhes acompanha o desenrolar das peripécias nos dois cenários - o português e o brasileiro.

Tinham as Cortes razão em descobrir crescente hostilidade nos atos do governo da regência brasileira para com sua política: desde que José Bonifácio entrara para o ministério, essa hostilidade acentuara-se e externara-se mesmo. A 17 de fevereiro foi expedida pela secretaria da guerra do Rio de Janeiro uma portaria ao governo provisório de Pernambuco, mandando que no caso de ali aportar por qualquer motivo tropa de Portugal destinada a conter as províncias brasileiras, essa junta lhe intimasse ordem de regresso, fornecendo-lhe contudo amplamente os mantimentos e refrescos de que carecesse. Isto porque o povo fluminense não mais consentiria no desembarque de forças lusitanas, capazes de renovar os passados atentados contra a segurança pública e individual; também porque os gastos tinham sido muito consideráveis com a repatriação recente da Divisão Auxiliadora, e finalmente porque a presença de semelhante elemento era perigosa "a conservação da União e integridade do Reino Unido".

Uma e outra coisa descansavam sobre uma frágil base desde que na composição desta e1~travam tantas opiniões diferentes. A argumentação oferecida desde o princípio pelos partidários de um dualismo eqüitativo era que o povo brasileiro usava dos seus novos direitos, "quando fazia ver ao Soberano Congresso os inconvenientes que podiam resultar de qualquer providência por ele expedida, a qual encontrasse no local da sua execução obstáculos ao fito de prosperidade pública que o mesmo Congresso anunciara como seu e que justificava a adesão ultramarina aos princípios constitucionais".

E como o caso podia repetir-se e os protestos serem mal-acolhidos ou mal-interpretados, o decreto de 21 de fevereiro [1] , referendado por José Bonifácio, mandava prevenir o chanceler-mor do reino, desembargador do paço, que todas as leis vindas de Portugal deviam ser primeiro submetidas ao conhecimento do príncipe regente, o qual, achando-as análogas às circunstâncias do Brasil, ordenaria então sua devida execução. O cumpra-se, isto é, o beneplácito do executivo central brasileiro tornava-se assim indispensável à validade das leis, ordens e resoluções do governo de Portugal.

De certo tempo em diante cada navio só trazia do Brasil notícias desagradáveis para os regeneradores no poder. Era a criação de um conselho de procuradores para estender a autoridade da regência sobre todo o Brasil. Eram as Forças Caudinas por que tinha passado a Divisão Auxiliadora. Era o "desgraçado comportamento" da expedição de Francisco Maximiliano de Sousa, o qual, dizia nas Cortes o deputado Girão, "não sei se obrou por malícia, se por ignorância, mas que se devera ter lançado no oceano para sepultar consigo seu desar e sua vergonha". Eram as novas fardas dos soldados da guarda de honra que, exclamava o mesmo Girão, já não são portugueses; mas sim austríacos". Era o caso do general Madeira, que até provocou entre dois deputados baianos, Cipriano Barata e Pinto da França, uma rixa pessoal, sacudindo o primeiro ao segundo de escada a baixo no Convento das Necessidades, onde funcionavam as Cortes, porque opinava que se Madeira não era idôneo para o comando das armas, Manuel Pedro não o era mais e faltara à disciplina militar não querendo entregar o governo.

Madeira aparecia aos olhos dos constitucionais portugueses como um herói salvador, um Messias. A sua resistência apaixonava os espíritos, imortalizava-o entre os seus, que lhe teciam coroas de louro. Era indispensável socorrê-lo, custasse o que custasse. E assim se fez, mau grado a oposição da representação brasileira quase toda, exceção feita do Maranhão e Pará, o que provava ainda a falta além-mar de um espírito de nacionalidade completamente formado, porém com o acréscimo (maio de 1822) da deputação do Ceará, notoriamente liberal e na qual figuravam os padres Moreira e Alencar, e Castro e Silva, gente toda impregnada dos princípios de 1817.

A argumentação da representação brasileira foi a mais simples. O Brasil já tinha dado mostras inequívocas de não querer no seu solo tropas do reino europeu: as Cortes entretanto iam mandar mais para a Bahia a fim de sustentar o oficial português num conflito de competência em que a ambos tinha faltado a prudência. Não se tratava de um contenda política que afetasse a essência da união, o que justificaria que se despachassem reforços. Assim faltaram Cipriano Barata e Araújo Lima, respondendo os portugueses mais com insultos do que com razões.

Moura, por exemplo, disse que era preciso haver no Brasil, perto das forças da anarquia, um viveiro militar donde extrair a força alienígena destinada a chamar à ordem uma população de cores variadas em que "a heterogeneidade das castas põe paixões diversas em efervescência, que a força indígena não é capaz de conter. É sim antes capaz de promover porque se compõe dos mesmos elementos". Raro é o povo no mundo que não seja mestiço e, no entanto, todos se ofendem de que os tratem por tais. Justamente o tom de superioridade que os portugueses assumiam no tocante à questão de raça tinha o condão de exacerbar mais que tudo os brasileiros, que não queriam ser tratados como gente inferior.

O contato de tropas portuguesas e brasileiras trazia mais esta desvantagem, além do inconveniente político do momento: estimulava uma rivalidade latente das mais azedas. Fernandes Tomás chegou a dizer no correr dos debates que não havia oficial português que se submetesse às juntas provinciais brasileiras, assim pouco inteligentemente fomentando a arrogância desses militares e justificando a reação nativista. Borges Carneiro, constantemente a cortejar como político o favor dos seus correligionários e ao mesmo tempo espírito inclinado a deixar-se empolgar pelas considerações da justiça, da qual era cultor esclarecido, queria que simultaneamente se mandassem para além-mar tropas bastantes para manter a paz e reformas, para que os brasileiros vissem que a energia portuguesa corria parelhas com o seu liberalismo.

Foi neste discurso que o eminente constitucional fez sua célebre referência ao cão de fila ou leão que Portugal soltaria para obrigar a facção nacional brasileira à obediência às Cortes e às autoridades que no ultramar as representassem. Lino Coutinho com seu fino espírito faltou logo em atirar onças e tigres contra esses cães; Vilela Barbosa advertiu que no Brasil também se sabia açaimar cães e que o sangue português que girava nas veias dos brasileiros os impedia de receberem leis debaixo da pressão do arcabuz; Antônio Carlos tratou de fátuas as ameaças e que para os cães de fila havia por lá em abundância "pau, ferro e bala, não podendo assustar aos brasileiros os referidos cães de fila, aos quais fizeram fugir dentadas de simples cães gozos". Estes, explica Gomes de Carvalho, que reedita este incidente, eram os milicianos mal-armados que fizeram recuar a Divisão Auxiliadora.

Justamente pelo mesmo tempo - na sessão de 23 de maio, intercalada entre aquelas em que se discutiu o caso do general Madeira - chegava às Cortes a comunicação que, com suas congratulações, lhes mandava o general Jorge de Avilez, de regresso do Brasil. Queriam não poucos da maioria que a participação fosse declarada na ata ter sido recebida "com agrado", ao que se opuseram outros alegando que, perante as informações do príncipe regente, não se achava ainda comprovada a inocência ou o regular procedimento do comandante da Divisão Auxiliadora.

Os mais exaltados dentre os regeneradores, Moura, Girão, Caldeira, sustentavam a dignidade e o saber daquele "português o mais honrado e brioso", que era Jorge de Avilez; Miranda taxou até de rebelde o ministério do Rio de Janeiro; Freire achava que se Avilez merecia alguma imputação, era a de ter sido tão condescendente. Vilela Barbosa argüiu do outro lado com não se ter concedido a distinção agora solicitada ao general Luís do Rego, embora declarado benemérito. Venceu esta opinião, ainda neste ponto votando o Pará e o Maranhão contra o resto do Brasil, acompanhando os que hoje seriam chamados chauvinistas ou jingoes portugueses e que Gomes de Carvalho trata um pouco severamente de energúmenos.

O Pará-Maranhão constituía com efeito um Estado à parte, onde prevalecia decisivamente a influência do reino europeu, mesmo porque suas relações eram mais com Portugal do que com as outras províncias do Brasil. Em compensação, alguns deputados portugueses, sete ao que parece, acompanharam os brasileiros. Suprimiu-se na ocasião o "agrado" e mandou-se publicar pela Imprensa Régia a Exposição de Jorge de Avilez ou conta dos sucessos, como documento justificativo da sua conduta. A 23 de julho conseguiu contudo Girão fazer aprovar o recebimento "com agrado" das felicitações do general, cuja votação fora adiada "para se esperarem notícias do Rio para esclarecimento da sua conduta". Dizia a moção que "elas têm chegado tantas, e de tal natureza, que sobejam".

Madeira não tivera que esperar pelo favor do Congresso. Deram-lhe também, é claro, o privilégio da impressão; Pessanha intitulou-o o redentor da Bahia, e foi confirmado no posto como merecendo toda a confiança, não obstante a lei novíssima do Congresso que anulava toda ordem e carta régia não referendada pelo ministro respectivo: "o que, por si só, escreve Cairu, bastava para ser o governador das armas destituído e sentenciado em conselho de guerra".

Iam-se assim extremando os campos dentro das próprias Cortes, visto que a moção apresentada por Antônio Carlos a 15 de junho e assinada por 17 deputados do Brasil, era para que o governo "fizesse efetiva a responsabilidade do ministro da Guerra e do seu subordinado" comandante das armas da Bahia, o qual, segundo os mesmos deputados, aí praticara desacatos e tropelias que dizia o cordato Pereira do Carmo não constarem até então oficialmente, devendo-se aguardar a devassa mandada tirar desses sucessos. No entender de Moura, dos ofícios da junta provisória nem se podia concluir qual dos dois brigadeiros rompera o fogo. Manuel Pedro, que se achava preso em Lisboa, foi mandado soltar por essa ocasião e livremente regressar para a Bahia.

No Brasil os campos não só já se achavam divididos, como soara o grito de alerta, precursor do de pegar em armas, o qual encontraria, pelo que parecia, pronta correspondência do outro lado do oceano, uma vez a postos os partidos. "Já se não deve hoje tratar de raciocínios, nem de exortações, nem de planos conciliatórios, para manter a legislação da América, exclamava Moura; e só sim dar ao Grande Partido da União, que existe naquele país, um auxilio tutelar e protetor, que o vigore, e que o habilite a combater e aniquilar a Facção..." E o abade de Medrões ajuntava afogueado: "Se faltar capelão, eu já me ofereço".

Parecia tornar-se certo o que afirmava o povo fluminense na representação em que pedira a permanência do príncipe, a saber, que "os políticos da Europa disseram que o navio que trouxe ao Brasil el-rei Dom João VI alcançaria entre os antigos gregos maiores honras do que esse que levou Jasão e os Argonautas a Colchos, mas que o navio que reconduzisse Dom Pedro já apareceria no Tejo com o pavilhão independente do Brasil".

A situação, segundo alguns faziam valer, estava-se fazendo pior, do ponto de vista das regalias ultramarinas, do que a colonial, quando nas próprias capitanias se davam promoções militares até o posto de major, havia certa latitude para o preenchimento dos cargos civis e os bispos proviam as paróquias e vigararias das suas dioceses [2].



A proposta dos deputados baianos para que a expedição contra a Bahia se não realizasse sem que a representação brasileira fosse ouvida, teve 80 votos contra e 44 a favor. A obra de intenção apaziguadora da comissão luso-brasileira estava pois previamente prejudicada num dos seus artigos essenciais, que era o que vedava as remessas de tropas européias sem haver pedido a respeito das juntas governativas de além-mar. Como em tais condições e num meio de crescente irritação, que as notícias chegadas do Rio faziam cada dia piorar, lograria funcionar com tranqüilidade e com êxito outra comissão como a que o Congresso nomeou para redigir os artigos da Constituição privativos do reino americano?

A própria comissão dos negócios brasileiros, anteriormente organizada, já não sabia como dar andamento as questões pendentes e aconchegava-se num silêncio que era prudente, porque não havia boa disposição da parte dos regeneradores portugueses e a desconfiança lavrava fundo, entre os constitucionais brasileiros. Chegara-se aos começos de junho sem que o parecer-transação de 18 de março entrasse em discussão e nada mais se agitara que pudesse conduzir a medidas práticas e construtoras, nem tampouco se externava juízo definitivo sobre a harmonia ou desarmonia do sentimento do povo brasileiro com a expressão que lhe tinha dado o governo provisório paulista.

As injúrias, fossem da junta de São Paulo, tossem daquele a quem Borges Carneiro tratava desrespeitosamente de rapaz, eram todavia espinhos cravados na carne portuguesa e estavam formando abcessos. Havia que castigar os desaforados, que tinham tratado os constituintes de "profundamente ignorantes e singularmente atrevidos", antes do que receber-lhes e porventura atender as suas petições contra atos do poder legislativo que encarnava a soberania da nação.

Antônio Carlos concordou para salvar as aparências em fazer seus e de colegas seus, numa forma diferente para com a majestade das Cortes, os votos contidos na representação paulista, na mesma ocasião em que requeria que fosse chamado à responsabilidade o ministro da Guerra que deixara de legalizar a carta régia nomeando o brigadeiro Madeira comandante das armas, e responsabilizando também este que, sem escrúpulo e com desprezo das formalidades legais, avocara o cargo e tornara efetiva sua autoridade. A comissão que tinha de dar parecer sobre este requerimento negou-o, contudo, por falta de documentos que comprovassem a culpa.

Quando foram apresentados os pareceres da comissão especial dos negócios do reino americano e da comissão de constituição para o ultramar - o primeiro, de 10 de junho, especial sobre o incidente paulista - houve proposta para que fosse dado previamente para a ordem do dia o que versava sobre a responsabilidade criminal da junta de São Paulo, no intuito não só de punir os culpados, como de firmar a doutrina de que o povo brasileiro devia obediência às Cortes em vez de a dever ao regente.

A proposta caiu porém, porque pareceu mais acertado a maioria cuidar de afastar as razões de descontentamento antes do que castigar as manifestações desse descontentamento, numa modalidade que não passava afinal da aplicação do direito de petição em linguagem demasiado apaixonada. Agir diversamente seria, na frase de Gomes de Carvalho, mostrar que as Cortes eram mais solícitas em atender ao seu amor próprio do que em promover a tranqüilidade da nação.

O pior entretanto é que assim se pensou e agiu judiciosamente num dia para se desmanchar no dia imediato (27 de junho), quando Moura e Fernandes Tomás, dois dos maiores leaders da regeneração, exigiram a precedência do debate irritante. A maioria portuguesa do Congresso, que ditava a lei, isto é, a orientação, era, como o fora a da Convenção francesa, escrava da opinião facciosa de fora, a saber, dos seus clubes e das paixões irresponsáveis da populaça das ruas. Daí provêm a vacilação e a incoerência que se notam em muitos dos seus atos.

É um ponto ainda a discutir se as Cortes de Lisboa, antes de desafiadas e contrastadas na sua autoridade e valia, teriam movido a mesma intransigente oposição à separação do Brasil que moveram aquilo que chamavam a continuação da supremacia brasileira e que pretendiam obstar pelos meios constitucionais e administrativos à sua disposição, recorrendo em último caso à força. A mentalidade política da regeneração portuguesa de 1820 era despida de refolhos e ostentava o culto da vontade popular. Fernandes Tomás disse várias vezes que se a vontade do Brasil era desligar-se, que o fizesse: ele votava contra qualquer medida compulsória que fosse de encontro a esse ideal nacional (sessão de 22 de março de 1822). Continuando porém unidos os dois reinos, cumpria ao reino americano obedecer ao europeu.

A mesma razão de vontade do povo era a invocada pelos deputados brasileiros que desejavam abandonar as Cortes pelo fato de considerarem ingrata e inútil sua tarefa; mas nesse caso, além de contestar a existência de uma vontade geral no Brasil pelo fato das províncias andarem desunidas, a regeneração argumentava em última instância com o poder das maiorias, que foi o argumento com que nos Estados Unidos, 40 anos depois, o Norte se opôs à secessão do Sul e obrigou este pela guerra a ficar dentro da União.

Depois de proclamada a independência e da assembléia legislativa ordinária tomar em Lisboa o lugar do Congresso Constituinte, certo número de deputados portugueses cogitavam do despacho de "um general de confiança", com carta branca, para subjugar o reino rebelde; a maior parte porém favorecia a abstenção de luta, isto é, a conformidade com os fatos consumados, havendo mesmo quem considerasse o melhor partido a seguir entrar logo em negociações com o império, reconhecendo sua independência, para a conclusão de um tratado honroso para ambas as partes e sobretudo vantajoso para o seu comércio recíproco.

Um acordo teria sido porventura fácil entre as representações dos dois reinos se não fossem as influências extra-parlamentares, mormente da plebe portuguesa. O programa ideológico da regeneração era simpático a todos os espíritos liberais, como no geral os de além-mar se mostravam, e conforme já houve ensejo de verificar-se, foram as Cortes invariavelmente dementes em matéria de denúncias e sobretudo prontas ao indulto. Os movimentos revolucionários do Brasil, mesmo os posteriores à implantação do constitucionalismo, nelas encontraram indulgência e até a meio destes incidentes, foram perdoados e mandados regressar para o Brasil os dois tipos antipáticos do movimento pernambucano de 1817, que tinham podido escapar ao patíbulo: o capitão Pedroso e o tenente José Mariano, assassino este último do seu benfeitor, o brigadeiro português Barbosa, soldado o primeiro de índole grosseira e sanguinária. A pena de ambos fora a de degredo perpétuo na ilha de Mormugão, na Índia Portuguesa, para onde iam ser transportados em junho de 1822.

Os acontecimentos velhos e novos baralhavam-se todos e as Cortes oscilavam, consoante seus interesses ou por outra os interesses públicos, entre uma política de amenidade e uma política de repressão, entre a separação em nome dos princípios e a união em nome das conveniências.



A questão da modificação das providências relativas ao Brasil, isto é, da alteração dos decretos de 29 de setembro, que tinham causado tanta celeuma no Rio, em São Paulo e por fim em Minas, fundira-se de forma tal com a da representação paulista que não havia mais meio de reduzi-las a sua primitiva diferenciação. A demora não fizera mais do que solidificar a fusão, e tivesse, a junta de São Paulo sido intérprete do seu próprio despeito, ou do despeito popular, era ela quem carregava a culpa, se culpa havia, da intitulada rebeldia.

A 10 de junho fora pois afinal apresentado às Cortes o relatório da comissão especial, dos negócios do Brasil, na qual Vergueiro substituíra Antônio Carlos, que se dera por suspeito e, de fora, ficava mais livre para a apresentação, poucos dias depois, das suas duas propostas de oposição. O relatório dava à junta paulista a prioridade e a direção do movimento nacionalista - partindo desta premissa para tirar conclusões em inteira contradição com as que anteriormente formulara.

A versão agora era que nada havia que alterar no ultramar porque as próprias províncias brasileiras tinham feito suas revoluções locais, organizado suas juntas provisórias, proclamado o regime constitucional, aderido às Cortes e repudiado o regente. A assembléia de Lisboa homologara, como lhe cumpria o como lhe convinha, todas essas resoluções. O movimento iniciado pela junta de São Paulo era um movimento portanto subversivo contra as novas instituições; restando saber e fixar quando um movimento deixa de ser negativo para tornar-se positivo, uma aspiração passa à realidade e um regime cessa de ser anárquico para vigorar, ou mais tarde decai de florescente em caduco. Se é a vontade popular que regula essas variações faltava às Cortes senão competência, pelo menos imparcialidade para estabelecer-lhes a gradação e reconhecer-lhes a influência exata.

Na data de 1.º de julho de 1822 o Soberano Congresso adotou três providências. Mandou responder a processo os paulistas signatários da representação de 24 de dezembro de 1821, que eram os membros da junta, e a deputação civil e eclesiástica que veio ao Rio felicitar o príncipe e em nome da qual falou José Bonifácio a 26 de janeiro, "não sendo exeqüível sentença alguma condenatória sobre o referido objeto, sem prévia decisão das Cortes". Declarou "nulo, irrito, e de nenhum efeito" o decreto de convocação do conselho de procuradores, por exceder as faculdades da regência e alterar o sistema constitucional, chamando à responsabilidade o ministério do Rio de Janeiro não só por esse ato como "por quaisquer outros atos da sua administração em que a responsabilidade possa ter lugar". Determinou a permanência no Rio de Janeiro do príncipe real até a publicação iminente da constituição política da Monarquia Portuguesa, governando com sujeição a el-rei e às Cortes as províncias que lhe obedeciam e tendo secretários de Estado nomeados por el-rei [3] e assinando o ministro competente não só as decisões tomadas em conselho, mas também a correspondência oficial, quer a dirigida a el-rei, quer a dirigida às Cortes. Em toda a província em que não houvesse ainda junta provisional de governo, deveria esta ser logo eleita e instalada.

Precedeu animado debate, que começou a 27 de junho, a votação, a qual foi de 59 votos contra 58, vencendo portanto por um só voto de maioria, o que abona o modo de ver daqueles que não enxergam na política anti-brasileira das Cortes um repto de nacionalidades inimigas, mas tão somente uma tentativa malograda de sobreposição de interesses contrariados e de preocupações estreitas ao reconhecimento largo e generoso dos direitos, embora rivais, de um povo adulto que se tornara consciente do seu vigor e para o qual deixaram desde esse momento de ter valor as recriminações do outro povo, que se sentia lesado nas suas conveniências.

A mesma política egoísta, de inobservância dos privilégios doados e garantidos, que foi a da Inglaterra com relação às colônias da América do Norte, foi a de Portugal com relação ao seu grande domínio da América do Sul: faltou a ambas o toque de espiritualidade e de justiça que teria prolongado a união conforme pretenderam, num caso o Canadá e no outro o Pará-Maranhão.

Os discursos mais notáveis pronunciados no referido debate foram os de Vergueiro, do lado dos brasileiros, e de Guerreiro, do lado dos portugueses. Vergueiro na sessão de 1.º de julho argumentou sobretudo com o fato das representações paulistas não atacarem o princípio essencial da integridade da monarquia portuguesa, apenas zelarem os direitos e interesses do reino autônomo do Brasil, cujos destinos não deviam ser regulados à revelia da sua representação parlamentar. A admissão pelas Cortes de terem feito política errada e a satisfação assim dada às justas aspirações do ultramar - não se importando com a forma apaixonada e mesmo petulante que tais aspirações assumiram da parte dos paulistas - evitariam a separação e cimentariam a união. Por isso era política da melhor pôr fora da pista o partido da independência absoluta, que era o extremo oposto e por isto mesmo o correlativo ao partido da recolonização.

Se os brasileiros se mostravam impacientes, os portugueses, mesmo muitos que viviam na terra irmã porquanto outros acompanhavam os brasileiros, mostravam-se mesquinhos no seu ciúme. Ferir os responsáveis pelas expressões afrontosas dos documentos era fazer redobrar as simpatias populares que os cercavam: constituía portanto um proceder contraproducente. O programa de Vergueiro, até a constituição entrar em vigor, consistia em continuar o príncipe herdeiro como regente sem coação e continuarem as juntas locais responsáveis para com as Cortes, mas tendo sob sua dependência as autoridades militares e de fazenda, não recebendo tropas de Portugal senão a requerimento próprio e ficando os decretos das Cortes sujeitos ao beneplácito das autoridades ultramarinas.

Na sua qualidade de português, Vergueiro ainda acreditava na possibilidade de "com generosidade e prudência" prolongar-se um regime que a outros já deixara de inspirar confiança. Esta era indispensável para ser ele praticado com resultado, porque na sua essência constituía uma transação. Num bom redigido manifesto dirigido por esse tempo pelas Cortes ao povo do Brasil e no qual se justifica sua ação, encontra-se o seguinte período: "Brasileiros, o ato de adotar, ou de rejeitar um sistema de governo é um compromisso; pesamos inconvenientes; damos, e tomamos; entregamos uns direitos para melhor podermos gozar outros; e assim como sacrificamos a liberdade natural, para gozarmos na associação civil com mais segurança as suas vantagens, assim devemos sacrificar uma parte das vantagens civis à superior utilidade da união de um grande império... não é tão circunscrita a esfera dos inventos humanos, para que a sabedoria das instituições não possa reunir o que a natureza separou... As Cortes não pretendem sustentar a união de Portugal com o Brasil pelo meio das armas; a força é fraco instrumento para conter uma conexão subordinada, e proveitosa a um povo ativo, numeroso, crescente e amigo da sua liberdade. A nossa união, brasileiros, depende só das afeições e do interesse que produzem vantagens recíprocas, nomes comuns, parentes, amigos, leis iguais, igual proteção".

Infelizmente os atos não correspondiam às palavras. É verdade que Moura explicou sua mudança de opinião, de março para julho. Então as juntas pareciam obedecer todas às Cortes: não via mal em que lhes ficassem sujeitas as autoridades militares. Depois disso foi que se desenvolveu o espírito de rebelião e discórdia entre as juntas, aconselhando uma mudança de atitude.

O discurso de Moura distanciou-se do tópico principal em debate e tratou mais que tudo da aceitação necessária da constituição pelos deputados brasileiros, uma vez que o povo brasileiro aprovara as bases que eram o sumário das disposições da lei orgânica. Mesmo sendo assim, como pondera Comes de Carvalho, a legislação ordinária não estava isenta de divergência e de discussão e, no caso em questão, faltava às Cortes capacidade judicial para se ocupar dele e do seu caráter criminal. Não lhes competia, na frase de Vergueiro, "qualificar delitos e designar culpados".

Tornara-se bem patente a má fé de oradores que faziam por assim dizer irresponsável e inviolável o herdeiro presuntivo da Coroa, o qual não usufruía semelhantes regalias e era na espécie o mais culpado de desobediência e de levante, para descarregarem toda a responsabilidade sobre autoridades que exerciam o seu mero direito de petição. Segundo Guerreiro, o mais condescendente dos regeneradores portugueses para com o Brasil, a junta paulista não se limitara a fazer uso desse direito, ou antes dele usara com espírito de rebeldia; mas então, no dizer de Antônio Carlos, a deputação mineira e a junta pernambucana deveriam ser igualmente denunciadas, pois que tinham reproduzido os argumentos da junta paulista.

Guerreiro frisou o ponto de que a comissão não julgava o caso, apenas o indicava à justiça, sem indagar nem da qualificação do delito, nem do castigo correlativo, atribuição esta do poder judiciário, ao qual pertence também a pronúncia dos acusados, assunto em que as Cortes pretendiam intervir para discriminar. Sujeitando ainda por cima ao seu beneplácito ou autorização a aplicação da pena e mesmo sua qualidade, as Cortes funcionavam virtualmente como uma suprema corte de justiça com faculdade de revisão.

Sobre o príncipe, que não fora maltratado no decorrer da discussão, ficava pesando a ameaça de ser excluído da sucessão no caso de reincidência ou mesmo no caso de não tragar as humilhações que lhe eram infligidas. Tudo se punha destarte a conspirar para que Dom Pedro separasse seus interesses dos da monarquia tradicional e criasse de fato o novo império de que tanto se falava. Segundo a carta a el-rei de 26 de julho, já a disposição do príncipe regente era de não fazer cumprir "mais nenhum" dos decretos das Cortes, só os da Assembléia brasileira, e de só manter com seu pai relações "familiares porque assim é o espírito público do Brasil, sendo um impossível físico e moral Portugal governar o Brasil ou o Brasil ser governado de Portugal".

Dir-se-ia que neste debate a paixão esteve muito mais do lado português que do brasileiro; justificando o ditado que mais se irrita o que não tem razão. Antônio Carlos mesmo, combativo como era, afastou toda preocupação pessoal e apenas defendeu José Bonifácio em termos despidos de cólera e repassados de elevação moral. Tomou assim para si o conselho que dava a Portugal: de não aplicar cautério e sim bálsamo às chagas vivas. A convicção ganhara porém terreno entre os brasileiros, pelo menos os mais conspícuos, da representação nas Cortes, que qualquer acordo duradouro se tornara impraticável. O dilema pusera-se nos termos seguintes: separação definitiva ou subordinação efetiva.

Notas editar

  1. Porto Seguro dá como data deste decreto 4 de maio. Rio Branco em nota recorda a asserção de Macedo, que o faz datar de 21 de fevereiro. O conselheiro Nabuco não o menciona porém nesta data e sim na de 4 de maio na sua Coll. de Leg., nele se apoiando Basílio de Magalhães, nas notas às notas de Rio Branco. Cairu dá porém o texto do decreto com a data exata de 21 de fevereiro.
  2. Gomes de Carvalho, ob. cit.
  3. Foram por essa ocasião nomeados secretários de Estado, do reino e justiça o desembargador Sebastião Luís Tinoco da Silva, da fazenda Dr. Mariano José Pereira da Fonseca (Maricá), da guerra o tenente-general Manuel Martins do Couto Reis e da marinha o vice-almirante José Maria de Almeida. Os três primeiros, pelo menos, eram brasileiros ou residentes no Brasil. As Cortes mandaram também proceder a um inquérito sumário "contra os que tivessem contribuído a evitar que seguissem para Lisboa os deputados eleitos pela província de Minas". Os decretos foram promulgados a 23 de julho.