A chamada bernarda paulista de 23 de maio de 1822, que foi um pronunciamento a um tempo civil e militar, deve ser considerado o primeiro ataque sério vibrado contra a autoridade e influência de José Bonifácio; mas não passou de fato de uma ocorrência de caráter local, se bem que, pela situação nacional dos Andradas e pelos antagonismos já suscitados pelo mais velho nesta esfera mais larga, pudesse ter tido conseqüências mais relevantes, desmoralizando-os na sua própria província e tornando assim real e manifesta a diminuição, senão perda do seu prestígio geral. O príncipe porém, tomando resolutamente o partido do seu ministro, manteve-lhe o crédito e sustentou-lhe a posição no país.

O pronunciamento foi direta e nomeadamente contra Martim Francisco, acusado nas atas das vereações extraordinárias da câmara de São Paulo de "querer ser absoluto na cidade e província". As representações contra ele, aliás firmadas por gente da melhor, a começar pelo bispo, são visivelmente exageradas e a injustiça ressumbra dos seus dizeres, pois que se referem não só às paixões do indiciado como "aos seus amigos, que desgraçadamente eram o refugo da sociedade, e aos seus parentes que sempre foram em todos os tempos maus cidadãos e péssimos súditos".

Relativamente a Martim Francisco em pessoa, denunciam os signatários da maior dessas representações [1] "o seu orgulho, o seu despotismo e as suas arbitrariedades", no que teriam até certo ponto razão. É verdade que Martim Francisco, homem honradíssimo, de uma probidade draconiana que não admitia desmandos nem Concedia favores, de unia natureza geralmente taciturna, era um temperamento explosivo, sem certa maleabilidade que distinguia José Bonifácio, de quem escreve Melo Moraes que era "ao mesmo tempo irascível e flexível".

José Bonifácio tinha obstinação nas idéias, mas era capaz de tolerância para com os desvios humanos: Martim Francisco, severo antes de tudo e exercendo por isso ação sobre o irmão e sogro, ia até cometer prepotências para fazer vingar e respeitar a lei. A representação aludida fala em autoridades invadidas nas suas jurisdições, em causas cíveis decididas no governo embora já prevenidas no foro contencioso, em execuções de sentenças suspensas, em presos soltos ainda que com culpa formada, em cidadãos presos discricionariamente, em clérigos criminosos restituídos à liberdade.

Tudo isto soa muito como aumentado e desvirtuado pela paixão política, sendo a desavença proveniente de ciúmes de poderio. Foi o instrumento principal da discórdia o presidente do governo local Oyenhausen, mas agente capital o comandante das milícias Francisco Inácio de Sonsa Queiroz, membro da junta, e inspirador dela, ao que parece, o ouvidor José da Costa Carvalho (futuro marquês de Montalegre). As discrepâncias tinham sido já muitas, por querer o Andrada fazer prevalecer suas idéias e projetos contra a opinião dos demais membros da junta, da qual era vice-presidente desde a ida do irmão para o Rio, quando se deu o motivo imediato da bernarda, que foi a ordem dada por José Bonifácio, em nome do príncipe regente, a 10 de maio de recolherem-se á corte presidente e ouvidor.

Ficava deste modo à frente da junta Martim Francisco, que nela só contava com o apoio decidido do brigadeiro Manuel Rodrigues Jordão, tesoureiro da fazenda pública. Os outros membros insurgiam-se contra a tutela que francamente os ameaçava, sendo Martim Francisco, no dizer de Porto Seguro, mais imprudente do que os irmãos. Queixas tinham mesmo sido dirigidas para o governo do Rio, mas José Bonifácio procedera parcial e iniquamente deixando sem resposta os ofícios da junta, ao ponto desta solicitar diretamente a atenção do príncipe regente para o fato, deplorando ser assim tratada, declarando-se pronta a ceder o lugar a outra junta que fosse eleita e convidando em todo caso Dom Pedro a ir ele próprio a São Paulo como já fora a Minas, inteirar-se do ocorrido, antes disso miudamente exposto numa representação do prelado e de moradores notáveis de São Paulo, militares, civis e eclesiásticos.

Porto Seguro insinua que José Bonifácio sonegava às vistas do príncipe os documentos comprometedores, como era esse: não dá contudo as razões precisas em que se funda para tal increpação. Do que se pode culpá-lo é de ter tomado absoluto partido pelo irmão sem mandar antes abrir uma devassa geral dos sucessos, apenas ordenando um inquérito especial sobre o motim de 23 de maio, e de só haver respondido às comunicações da junta depois da chegada de Martim Francisco ao Rio de Janeiro (18 de junho), repreendendo-a então (25 de junho) bem como o governador interino das armas marechal Toledo Rendon, tratando de "miseráveis e facciosos" os promotores do motim e lembrando a obediência de todos "às ordens do poder competente e superior", ao mesmo tempo que propalando a simpatia da mesma junta pelas Cortes de Lisboa e levando o príncipe a pronunciar uma sentença solene em favor do membro dissidente e expulso, que foi por ele chamado ao ministério.

A secretaria da justiça foi desligada da do reino, como já se fizera em Portugal; Caetano Pinto passou a titular do novo ministério e Martim Francisco assumiu a gestão do da fazenda (3 de julho). Para não descontentar muito a maçonaria foi que, segundo Porto Seguro, se procurou um pretexto para arredar Oliveira Alvares, sacrificado a Nóbrega, o qual foi chamado para a pasta da Guerra. Porto Seguro assim identifica a maçonaria com o partido nacionalista avançado de Ledo, Januário e José Clemente.

A forma adotada em São Paulo pelos amotinadores para dar vazão ao seu descontentamento foi a clássica: a exigência pelo pronunciamento da saída dos dois membros da junta, ao passo que eram conservadas pela vontade do povo e tropa as duas autoridades chamadas à corte. O juiz de fora de São Paulo, Leite Penteado, amigo dos Andradas, diz que ao chegar à casa da câmara, encontrou "a tropa formada e uma porção de povo amotinado, angariado e influído por alguns indivíduos, dominados do espírito da intriga e inimigos do sossego público". Estes díscolos tinham escolhido o levante no lugar do meio legal da representação, comentava o juiz de fora.

A representação do povo e tropa como que respondia de antemão a este tópico no dizer que "representar era o mais próprio de portugueses; porém a mais pequena reflexão foi suficientíssima para todos verem que baldado seria este meio, porque acharia invencíveis estorvos preparados pela intriga, em ótimas circunstâncias de se aproveitar, e que nunca chegariam nossas queixas e suspiros à presença de V. A. Real".

Culpavam igualmente Martim Francisco de ter tentado por meio de emissários sublevar o povo paulista e de várias câmaras municipais, como a de Itú, vieram representações contrárias ao levante, cuja responsabilidade o encarregado de negócios da Áustria não hesita em atribuir a Oyenhausen - o conselheiro João Carlos como o chamam os papéis do tempo - embora culpando em primeiro lugar ou mais remotamente do rompimento o que o diplomata qualifica de indiscrição e nepotismo do então poderoso ministro.

A segunda expressão deve evidentemente ser tomada cum grano salis. Indiscrição valia nesse caso sua acepção comum, significando falta de reserva ou melhor excesso de comunicabilidade, traduzindo-se por loquacidade. Sob este ponto de vista Dom Pedro era superior: "Le prince ne manque point de discretion quand il en sent le besoin" [2], faltando-lhe embora experiência. Nepotismo significava porém, não proteção indébita a interesses ilícitos, privados ou públicos, de família ou do Estado, mas simplesmente uma união muito grande entre os irmãos e um sentimento marcado de preferência na confiança depositada nos seus parentes próximos. Nos Andradas era tão acentuada a susceptibilidade quanto a probidade.

Foram o comandante das milícias Francisco Inácio e o ouvidor Costa Carvalho os que invadiram a casa do governo, aconselhando resistência às ordens do Rio na questão dos chamados e reclamando em nome da tropa e povo as demissões, como "perniciosos à província", de Martim Francisco e Jordão, dos empregos e funções que exerciam. À vista do pronunciamento foram essas demissões dadas voluntariamente no intuito de apaziguar a desordem: Martim Francisco era inspetor das minas e matas.

A junta respondera aos da bernarda que excedia das suas atribuições deferir a pretensão dos que reclamavam tais exclusões e destituições, mas não se recusou a anuir ao que era dela reclamado e poucos dias depois (29 de maio) até expulsava Martim Francisco, da cidade em 24 horas e da província em 8 dias, a bem da ordem pública. Por sua vez a câmara reconhecia que não procedia legalmente deferindo os desejos expressos por outra via que não a da representação: "mas era a única que o momento permitia e que a felicidade da pátria fazia indispensável". Além disso a câmara atentou, conforme declara na sua representação ao príncipe de 4 de junho, no número e qualidade dos cidadãos reunidos, na boa ordem e unanimidade com que representaram, nos motivos verdadeiros que invocaram, "notando mais que se não atentava contra o governo estabelecido e aprovado por V. A. Real isto é, que se não destruía a pessoa moral em quem residia uma porção do poder executivo, mas que unicamente se tirava desse todo uma parte infeccionada, que não constituía a sua essência, pois que se não acha determinado o número de homens que devem compor esta parte executiva; e, tirados eles, ainda restava neste governo maior número de votos do que prudente e sabiamente tem determinado o soberano congresso para os governos provinciais".

As coisas chegaram a tomar em São Paulo um aspecto sério, que se não modificou sensivelmente com a bernarda, tornada aliás conservadora e apoiada por uma força de tropa de Santos, respondendo porém os partidários dos Andradas com alvoroços que se estenderam de Porto Feliz (24 de julho) a Itú e outros pontos, visando o estabelecimento de um novo governo paulista. O capitão-mor Rocha, a quem Mareschal concede muito talento e muita atividade [3], foi despachado a ver se compunha a desavença, mas voltou para trás, não achando o meio propício à execução da sua missão, mas conseguindo em todo caso amedrontar os amotinadores com os 200 soldados que fez marchar, depois de esgotados os meios suasórios. Para restabelecer a calma seria mister, como em Minas, a presença do príncipe no auge da sua popularidade.

Com a expulsão de Martim Francisco ganhou ele um cérebro para o seu tesouro, embora anêmico. Os predicados, mesmo elevados a defeitos, do Andrada, serviram-no admiravelmente como ministro da Fazenda da regência e depois da independência, restaurando-se o crédito do governo pelo mero exercício da sua honradez individual, pois que era honestidade o que havia faltado em muitas transações do antigo regime. A confiança renasceu tanto que o empréstimo de 400 contos, contraído em agosto de 1822 para ajudar a defesa dos direitos brasileiros, foi negociado a juro de 5%. A receita cresceu pelo escrúpulo na arrecadação das rendas, sendo obrigados ao pagamento dos impostos os mais ricos e poderosos, que são de ordinário os mais remissos e negligentes, conseguindo-se fazer frente apenas com essa reforma a despesas avultadas, para as quais parecia aquela insuficiente.



A agitação nos espíritos era grande e deu-se como que um andaço de insubordinações, para o qual muito concorreu a linguagem de alguns jornais, que depressa aprenderam a licença na prática da liberdade. O governo do Rio viu-se na necessidade de adotar uma lei contra tais abusos (18 de junho de 1822), sujeitando ao julgamento por júri as acusações feitas pelo procurador da Coroa. O acusado podia recusar até 16 dos 24 homens bons escolhidos pelo corregedor do crime ou ouvidor da comarca e dos quais oito constituíam o júri, sendo a sentença sem apelação.

Na opinião de Cairu, que era um genuíno liberal, a medida deu ensejo a "intolerâncias e perseguições" por diferença de opiniões políticas, mas o governo justificava-a com a necessidade de uma defesa contra as doutrinas "incendiárias e subversivas", que não deixariam de pôr em perigo a ordem pública e até a integridade nacional por ocasião da reunião da Assembléia Constituinte, com o fim de destruir-se o sistema constitucional.

No mesmo dia desse decreto tomavam-se, segundo se lê em Pereira da Silva [4], outras medidas de rigor, como a de prisões em Minas, entre eles a do novo juiz de fora, provocadas muito provavelmente pela resolução da reunião da constituinte brasileira. Foi este pelo menos o motivo da retirada no Rio Grande do Sul do comandante das armas, brigadeiro João Carlos de Saldanha de Oliveira e Daun, que foi mais tarde o famoso duque de Saldanha e que estava exercendo por eleição a presidência da junta local. Tendo aplaudido o Fico e aderido à regência brasileira, não lhe sofreu a paciência ou antes a volubilidade que fosse o reino americano até querer legislatura própria, ao que ele chamou "mudar de sistema" no oficio com que se demitiu, com grande agravo de Cairu que lhe atira os epítetos de "transfuga e desertor".

Outra fonte de efervescência dos espíritos e cujo jato se confundia às vezes com a imprensa, era a maçonaria, desde que começou a não ser simplesmente mais a oficina onde se trabalhava pela emancipação política do país e se converteu num centro de intrigas das facções à busca de predomínio, intrigas tanto mais fáceis de tecer quanto se urdiam nas trevas e que sobretudo se emaranharam após a iniciação de Dom Pedro como Guatimozim a 13 de julho [5], data em que foi igualmente iniciado e até defendido pelo príncipe no tocante ao seu proceder em Minas o brigadeiro Pinto Peixoto.

Por sua vez a maçonaria julgava, mas já se sabe em segredo, os atentados contra a pureza das doutrinas que deviam ser defendidas pelos seus adeptos. Assim foi o padre mestre frei Sampaio chamado à responsabilidade pelo "povo maçônico", a 20 de agosto de 1822, por ter professado no Regulador, "impresso sob a proteção" da instituição, opiniões reputadas aristocráticas, que se não compadeciam com a liberdade constitucional por que o Brasil anelava e única que podia fazer sua felicidade política", liberdade que o príncipe já jurara e sustentava em contradição com "certas insinuações pérfidas das Cortes de que os áulicos do Rio de Janeiro pretendiam restabelecer o despotismo" [6].

A autoridade do publicista, que além de reputado orador sacro era orador de uma das lojas, podia fazer reviver desconfianças mal-extintas e fazer algumas das províncias hesitarem na sua marcha voluntária para a centralização. A 23 de agosto compareceu o frade perante o tribunal dos seus companheiros e retratou-se, assegurando que os arugos em questão eram estranhos à redação, mas tinham-lhe sido transmitidos por pessoas de consideração, às quais não pudera negar a publicidade. O presidente, que era quase sempre Ledo, o grão-mestre José Bonifácio raramente comparecendo, admoestou frei Sampaio por assim sair "fora dos traços da esquadria e do compasso", divulgando conceitos alheios e atentatórios dos interesses da nação, e repeliu a desculpa como justificação, recebendo-a apenas como satisfação e promessa de mudança de procedimento. A cena terminou pelo perdão do delinqüente, selado pelo ósculo fraternal dos presentes, isto é, pela reconciliação, ainda que com as reservas mentais do costume em casos tais.

Ao príncipe tentava como o fruto proibido essa sua intima associação com os carbonários, conforme os denominavam os do partido do ministério e, segundo Drummond, andava exultante com ser mação. Aliás seus companheiros fizeram-no mestre na sessão imediata (16 de julho) e grão-mestre durante sua ausência em São Paulo, na ausência também de José Bonifácio do seu lugar, ocupado por Ledo. Este presidiu igualmente a sessão memorável de 20 de agosto em que, no dizer da ata, demonstrou a urgente e imperiosa exigência de firmar a independência do Brasil e a "realeza constitucional e hereditária do príncipe defensor perpétuo", fazendo ver que o sentimento geral das províncias, ao que informavam os irmãos por elas espalhados, era esse. Convergiam para a união no seu próprio interesse, certas de que não poderiam resistir, isoladas, à pressão portuguesa.

A proposta, pelo que reza a ata, foi "posta a votos e unanimemente aprovada pela assembléia com geral aplauso e entusiasmo", ficando marcada a cerimônia para 12 de outubro, natalício de Dom Pedro. Escreve Drummond que quando o príncipe partiu para São Paulo a 14 de agosto, já se achava porém decidida a investidura imperial e que foi este um ponto no qual José Bonifácio insistiu e no qual a facção avançada, a gente especialmente da maçonaria, assentiu sem levantar oposição, porque bastava a circunstância de rei implicar de preferência uma tradição dinástica e imperador traduzir antes uma aclamação individual, embora viesse a primeira escolha a originar também uma família soberana. A emanação era todavia popular, enquanto que se entende que o fundador de uma casa real se impôs por si só, pelo seu valor. Le premier roi fut un soldat heureux... Igualmente o foi o primeiro imperador, mas a sua autoridade partiu de baixo para cima.

Em José Bonifácio influiu ainda a consideração, que ele até expressou nos seus versos e especialmente na Ode aos Baianos, da grandeza territorial, da vastidão de recursos, da uberdade e da riqueza do Brasil, ao mesmo tempo que da independência que lhe devia assistir, de fato como de direito, e da qual devia ser a primeira manifestação a livre seleção da sua forma de governo. José Bonifácio era faceto por índole e por hábito: não perdeu a ocasião de chalacear com o caso. Apresentou com uma gargalhada o argumento de que o povo brasileiro, naturalmente orgulhoso, gostava muito de títulos retumbantes, quanto mais pomposo melhor, e que já estava acostumado com imperadores por causa do "imperador do Espírito Santo". Daí quiseram alguns tirar a dedução de que o Andrada era um sans-culotte, quando era apenas um gracejador com essa instintiva falta de respeito de todo o brasileiro pelas fórmulas do poder e pelos que o ocupam. Nada prova melhor seu nacionalismo.

É claro que a votação do Grande Oriente era o resultado de um porfiado esforço coletivo, que requeria prudência ao mesmo tempo que boa direção. Precisamente por terem sido reconhecidos culpados de propalar para Portugal e províncias do Brasil o que em sessões anteriores se passara a respeito do magno assunto, no intuito de fomentar enredos e suscitar embaraços, foram na reunião de 20 de agosto eliminados seis "operários", cujos nomes a ata não menciona, ficando eles porém "notados sob a vigilância do povo maçônico e enquanto durasse a luta com Portugal" [7].

Na sessão imediata, que foi a de 23 de agosto, pelo fato mesmo de terem na anterior manifestado vários oradores o desejo de que fosse simultânea no país a aclamação real, a fim de não parecer precipitada uma medida de caráter nacional, tratou-se de despachar para as províncias delegados no intuito de facilitarem a execução do ideal da proclamação da independência e obstarem a que qualquer "corporação civil ou sociedade particular" precedesse a maçonaria na glória da empresa, na qual tinha ela sido a primeira "em dar o necessário impulso à opinião pública".

Ofereceram todos contribuições, consoante suas posses, para as despesas do movimento, e também seus serviços pessoais. Assim foram entre outros destacados para Minas o padre Januário da Cunha Barbosa, para Pernambuco João Mendes Viana, para a Bahia Gordilho de Barbuda e para Montevidéu o Dr. Lucas Obes. Tal receio de perder a precedência não era de resto infundado, pois que por sua parte outros estavam trabalhando de fora para idêntico fim.

Conta Drummond que, quando o padre Januário chegou a Minas, já encontrou por todas as vilas; desde Barbacena, lavradas as atas dos senados das câmaras, por efeito de cartas de Rocha, Drummond, e outros. De Pernambuco Filipe Neri Ferreira, que no Rio se filiara na loja Comércio e Artes, prometera muito, mas como parecia nada cumprir e o tempo urgia, um mação que era dono e capitão de um navio, encarregou-se de levar o emissário ao Recife. Logo depois chegaram comunicações tranqüilizadoras do novo governo provisório e do próprio Filipe Neri Ferreira e voltou arribado o navio que transportava João Mendes Viana, a quem José Bonifácio fez de novo seguir num espírito de cilada, com intuitos reservados de perseguição [8].

José Bonifácio não podia deixar de encarar com maus olhos uma sociedade que o tratara com tamanha falta de contemplação. Refere o autor da Exposição histórica da maçonaria no Brasil que a resolução rebaixando-o a adjunto e elevando Dom Pedro a grão-mestre, foi absolutamente irregular. Em vez de ser tomada em assembléia geral foi "disposta em sessão particular da grande loja", sem ser sequer prevenido o grão-mestre, o qual de certo se não oporia à homenagem, antes formularia ele próprio a proposta. Isto era justamente porém o que Ledo queria evitar, para que ficasse o príncipe a dever-lhe a gentileza.

Dom Pedro prestou logo juramento e recebeu o grão-malhete, pronunciando Domingos Alves Branco um discurso no qual já se enxerga verdadeira animosidade e se verifica quão afastados já estavam os Andradas dos seus inimigos políticos. "Precavei-vos, respeitável grão-mestre, de embusteiros, disse o orador da loja Comércio e Artes. Não vos abandoneis, a enredos, a vãos caprichos. Atendei que na criação de um império deveis ter em muita consideração qual é o gênio que o pode conservar ou que o pode destruir. Deus tem visivelmente mostrado que auxilia a nossa justa causa; não trabalhemos para que ele retire a sua onipotente mão, para nos deixar cair nas desgraças e na confusão, apartando-nos dos vínculos que nos unem e das condições do nosso pacto social, tendo por ele o imperador a prerrogativa de fazer todo o bem sem ser responsável pelo mal. Se mãos ímpias pela intriga pretendem apagar a sagrada tocha que nos alumia, sejam estes sacrílegos lançados para fora do nosso grêmio, e sejam detestados e os seus nomes apagados da tabela que nos honra... Apartai-vos, digno grão-mestre, de homens coléricos e furiosos; por mais cientes que eles sejam nunca acham a razão e só propendem para o crime. Vós tendes sabedoria, prudência, comedimento e moderação; portanto não vos deveis abandonar a malvados. Atalhai todo o ulterior progresso da intriga, confiando dos vossos leais mações...

No que concordavam todos era em que a dignidade do soberano fosse a imperial. O próprio Alves Branco, após seu violento discurso, deu os vivas nesse sentido. A cerimônia da aclamação devia ter lugar no palacete do campo de Sant'Anna edificado para as festas da realeza, e o imperador seguiria depois a pé, debaixo do pálio, até a capela imperial. Os mações eram convidados a comparecer todos, fardados os que fossem oficiais da 1.ª e 2.ª linha, "com armas ocultas" os paisanos, rodeando quanto possível a pessoa de Dom Pedro para resguardá-lo dos golpes de algum possível traidor [9].

O momento era de exaltação e Dom Pedro chegou a perder a compostura o que aliás não lhe era difícil quando irado - na última carta que escreveu ao pai, a 22 de setembro, respondendo às recomendações de el-rei sobre a observância e obediência devidas às ordens das Cortes, as quais tinham feito inserir na carta paterna uma leve admoestação. Esta carta tão descabelada é, que se poderia antes ter por apócrifa, não figurando de resto entre as traduzidas por Eugène de Monglave, se a não publicasse Cairu na sua Crônica autêntica da regência do Brasil. "Firme nestes inabaláveis princípios, digo (tomando a Deus por testemunha e ao mundo inteiro), a essa cáfila sanguinária, que eu, como príncipe regente do reino do Brasil e seu defensor perpétuo, hei por bem declarar todos os decretos pretéritos dessas facciosas, horrorosas, maquiavélicas, desorganizadoras, hediondas e pestíferas Cortes, que ainda não mandei executar, e todos os mais que fizerem para o Brasil, nulos, irritos, inexeqüíveis, e como tais com um veto absoluto, que é sustentado pelos brasileiros todos, que, unidos a mim, me ajudam a dizer: De Portugal nada, nada; não queremos nada.

Se esta declaração tão franca irritar mais os ânimos desses lusos-espanhóis, que mandem tropa aguerrida e ensaiada na guerra civil, que lhe faremos ver qual é o valor brasileiro. Se por descoco se atreverem a contrariar nossa santa causa, em breve verão o mar coalhado de corsários, e a miséria, a fome e tudo quanto lhes podermos dar em troco de tantos benefícios, será praticado contra esses corifeus; mas que, quando os desgraçados portugueses os conhecerem bem, eles lhes darão o justo prêmio.

Jazemos por muito tempo nas trevas; hoje já vemos a luz. Se V. M. cá estivesse, seria respeitado e amado; e então veria que o povo brasileiro, sabendo prezar sua liberdade e independência, se empenha em respeitar a autoridade real, pois não é um bando de vis carbonários e assassinos, como os que têm a V. M. no mais ignominioso cativeiro".

Notas editar

  1. Documentos publicados por Melo Moraes no Brasil-Reino e Brasil-Império e no Brasil-Histórico.
  2. Ofício de Mareschal a Metternich, de 3 de junho de 1822.
  3. Oficio de 3 de junho de 1822
  4. História da fundação do Império Brasileiro.
  5. Tal foi o nome tomado pelo príncipe, Melo Moraes dá para a proposta e iniciação a data de 2 de agosto, a mesma em que se teria realizado a sessão histórica na qual se discutiu e resolveu a independência do Brasil, segundo a Exposição Histórica. Rio Branco transporta esta data para 20 de agosto, reduzindo o calendário maçônico ao calendário gregoriano.
  6. Ata da sessão em Melo Moraes e em M. J. de Meneses.
  7. Exposição histórica da maçonaria no Brasil
  8. Melo Moraes, Brasil-Reino e Brasil-Império.
  9. Exposição histórica da maçonaria no Brasil.