Ei-los que se dilatam os amenos campos de Piratininga, onde primeiro soou o grito da independência.

Quem perlustra aquela terra sagrada da liberdade, não encontra um padrão ou marco sequer para apontar à geração presente o lugar onde iniciou-se a grande obra da redenção nacional, e o sítio que foi berço da pátria brasileira.

Os monumentos, como as estátuas, desertam do pedestal, que a história lhes assinou, para virem com a turba que as erige, fazer a corte ao dono e senhor da terra. Não são memórias, e sim homenagens de bronze e granito.

Até o legendário ribeiro em cujas margens o fundador do império proclamou a independência, vai secando, como o símbolo do quanto se estancam de dia em dia as fontes de nossa liberdade.

Afastemos o pensamento destas verdades amargas e remontemos o curso dos séculos onde ao menos o espírito distrai os presságios destes dias sombrios perscrutando os arcanos do passado, e recordando as lendas populares.

Corria o ano de 1626 pelo mês de maio que ia expirar.

Por uma linda e fresca manhã, dois cavaleiros atravessavam o regato que os indígenas chamavam Ipiranga, do barro vermelho por onde corriam suas águas turvas.

Naquele tempo o caminho de Santos a São Paulo seguia outra direção da que veio ter depois e não passava pela clássica figueira, de curvos e bastos esgalhos, a que os estudantes deram o nome de árvore das lágrimas, por ser o ponto de despedida para os que deixavam saudosos a querida Pauliceia.

Ainda existirá a árvore poética, muda testemunha de tão cortados suspiros e ardentes protestos? Talvez que algum tripeiro a tenha derrubado para fazer lenha com que aferventar o rancho, reduzindo-a a cinza e pó, que é afinal o destino de tudo neste mundo.

A estrada de ferro acabou com as saudosas despedidas. Agora chega-se à estação; guincha a locomotiva; e o passageiro parte sem tempo de abraçar o amigo a quem pela portinhola acena um adeus.

O caminho por onde seguiam os cavaleiros era apenas um estreito carreiro que serpejava pelo campo. As chuvas recentes o tinham coberto de lameirões, que retardavam a marcha dos animais e muitas vezes obrigavam os viajantes a desviarem-se do trilho para evitar os atoleiros.

O cavaleiro que ia na frente era mancebo de vinte e sete anos, de airoso parecer, o jovial semblante. Tinha olhos negros, vivos e cheios de malícia; na boca bem feita folgava o sorriso do homem que ainda não viu no mundo senão o cenário de uma comédia alegre e divertida.

O bigode e a pera que lhe ornavam o rosto meridional, ainda mais acusavam os traços de sua fisionomia espanhola. Mas a cabeleira cacheada que lhe descia aos ombros, e o corte elegante das roupas de cetim denunciavam as influências das modas francesas.

Que o mancebo era fidalgo conhecia-se não só pelo trajo, como pelas esporas douradas que ornavam o salto das botas de camurça, e que amiúde excitavam o ardor já amortecido do cavalo baio.

O outro cavaleiro, que vinha à traseira, era um lacaio, como se via logo à primeira vista pelos bocais e passamanes vermelhos do gibão de lã cor de azeitona.

Montava ele um burro, cujo pelo arrepiado já desaparecia sob a crosta de lama, proveniente dos atoleiros por onde a cada passo e como de propósito metia-se, apesar da enérgica resistência do cavaleiro, que ajudava a ação das esporas com um formidável azorrague.

A cada lambada, com que zurzia as ancas do animal, repetia ele por desabafo o anexim: “― Mais vale asno ruim, que asno ser.” Mal sabia que a sorte conspirava para tirar-lhe esse consolo.

Os viajantes tinham pernoitado na aldeia de Santo André da Borda do Campo, situada cerca do lugar onde hoje se vê a freguesia de São Bernardo. Fora aquele o primeiro povoado de serra-acima, e a residência de João Ramalho; mas a influência dos jesuítas o apeara da categoria de vila em 1560, conseguindo transferir o pelourinho para São Paulo de Piratininga.

Partindo do pouso ao romper do dia, não iam os viajantes tão expeditos como desejavam, pois já estava alto o sol, e ainda lhes faltavam uma légua de caminho.

— Olha, Pablo! Não te faz lembrar as nossas veigas de...?

O fidalgo voltando-se na sela para dirigir estas palavras ao criado, estendera o braço e com um rasgo da mão direita mostrava os campos que se dilatavam em torno.

Com efeito os campos de Piratininga, que hoje não passam de terrenos baldios, cobertos de estevas e minados de formigueiros, naqueles tempos primitivos apresentavam o risonho aspecto das veigas de Espanha, depois da primavera.

Pelas colinas debruçavam-se os vinhedos; e nas rechãs as louras searas cingiam os pomares onde medrava a pera, a maçã e o pêssego, e quase todas as outras frutas da Europa.

Com a viração da manhã, arfavam as asas dos moinhos, colocados nas eminências; e ouvia-se o tric-trac da roda movida preguiçosamente, enquanto as ovelhas balavam no prado.

Por que essa cultura europeia definhou a tal ponto que em muitos lugares, onde floresceu, não restam mais nem vestígios dela, apesar de acharem no solo e no clima as condições mais favoráveis para seu desenvolvimento?

Há cegos tão pertinazes que não enxergam nestes e outros fatos a influência irresistível de uma nacionalidade indígena, que impunha o seu cunho original, tanto nos costumes, nas ideias e tendências da sociedade, como na sua indústria.

O lacaio, interpelado pelo amo, não se dignou tirar os olhos das orelhas do burro, onde os trazia pregados, mas retorquiu no tom grave que lhe era habitual:

— O Sr. D. João Mateus Rendon quer saber o que eu penso acerca desta terra?

— Se me queres fazer o favor de dizer, Pablo! respondeu o fidalgo a rir.

Pablo não pestanejou. Ele que era de imperturbável sisudez, fechou ainda mais a carranca.

— Pois então fique sabendo que acerca desta terra eu não penso nada.

D. João desfechou uma gargalhada.

— Não digo bem, tornou Pablo; que isto não é terra, senão lama.

— Despacho-te meu cosmógrafo; reunirás este aos outros ofícios; e eu prometo apenas descobrir a minha primeira mina de ouro, dobrar-te o salário, contanto que te mantenhas nesta mesma abstinência de pensar. Um lacaio que não pensa é um traste precioso.

E o fidalgo continuou a desafogar a sua vontade de rir.

— Sr. D. João, não se ria! Veja que ainda não acabamos esta maldita jornada.

Pablo tinha para si que o riso era uma provocação ao diabo, o qual vendo a gente muito alegre, tratava logo por pirraça de pregar-lhe uma peça. Assim ele não ria nunca; e não podendo obter o mesmo do amo, que era o seu contraste, fazia tudo para que ele evitasse ao menos esse perigo nos passos mais difíceis e precários da vida.

— Tens razão; ainda não acabamos esta maldita jornada, e eu quero chegar à hora da missa para ficar logo conhecendo a vila que há de estar toda na igreja. Vamos lá!

O fidalgo ferrou os acicates no baio, que assim estimulado abriu o galope.

A poucas braças de distância o caminho fora cavado pela enxurrada; e tinham feito sobre esse barranco uma estiva coberta de terra, como ainda agora se usam, para franquear a passagem.

No ímpeto da carreira o cavalo de D. João meteu as patas dianteiras num buraco e foi com os peitos ao chão; mas tão desastradamente que um dos paus da estiva quebrando-se com o peso vazou-lhe o ventre.

— Caramba! gritou D. João.

O fidalgo agilmente se desvencilhara do perigo, saltando em tempo da sela; mas quando tratou de erguer o animal conheceu que estava desmontado. O pobre baio agonizava.

Atinando com o que havia acontecido, Pablo que chegava ao trote miúdo do burro, observou filosoficamente.

— Eis em que deu a risota.

D. João que era incorrigível soltou nova e maior gargalhada, ou porque o carão chupado do Pablo lhe provocasse a hilaridade, ou porque buscasse dissipar a contrariedade com o seu gênio galhofeiro:

— Não podemos estar longe! A pé é um passeio; e excelente para esticar as pernas que já as tenho trôpegas deste sendeiro. O bruto!... Afinal estrepou-se, como uma galinha por um espeto.

Pablo, apesar de seu estoicismo, fez uma careta àquela perspectiva do passeio a pé, através do lamaçal. Apeando-se, foi ao baio e aliviou-o dos arreios que transportou para o burro.

Nesse momento D. João que se adiantara alguns passos, ouviu o som dos sinos a repicarem.

— Lá estão nos chamando para a missa, Pablo! Avia-te se queres ver tua futura dona.

— Deus o permita; replicou o lacaio erguendo os olhos ao céu. Então não há de ter tamanha gana de rir.

— Pois é por isso que me queres ver casado, Pablo? acudiu o zombeteiro fidalgo. Neste caso melhor é metermo-nos de frades nalgum convento.

O sofista do lacaio abanou a cabeça gravemente:

— Tenho muitos pecados; não me fica tempo para rezar pelos outros.

— Mas, filho, os pecados tiram-se com as disciplinas.

— Petas de frades! Se isso fosse verdade, não havia maior santarrão do que este burro de mil demônios, pois já tenho o braço morto de o zurzir.

Sem desmentir a sua inalterável seriedade, o lacaio terminou o seu mister de estribeiro enquanto o amo continuava a rir.