CAPITULO XI
A LITERATURA


PARA se avaliar um povo nada mais é preciso que sua literatura.

Paterson quiz aprofundar os seus estudos sobre a gente do Kiato no passado e no presente. Melhor que a sua bibliotheca, que fonte procuraria para beber noticias da origem e da vida desse povo?

Procurou, pois, a casa dos livros, o tabernaculo em que se guardavam as reliquias mentaes de muitas gerações passadas, o esforço de tantos homens já desapparecidos ou ainda vivos.

O edifício em que funccionava a bibliotheca era um grande palacio, construido no tempo da decadencia. Dirigiu-se á portaria: aberta. Uma larga escada de marmore negro reluzia, mordida pelo sol da manhã, que entrava em fartas ondas, portas a dentro. Em letras negras lia-se, encimando o atrio — «Bibliotheca Publica».

Paterson subiu. Chegando ao patamar, achou-se num vasto salão deserto, que parecia convidar ao estudo, á meditação. A’s paredes, rigorosamente limpas, estantes de tres metros de altura, o verniz preto a espelhar ferido pela luz que, illuminando fartamente o recinto, se reflectia nas vidraças protectoras dos livros,

Ao centro do salão, mesa de dez metros de comprimento, envernisada de preto, cercada de cadeiras, que sob ella se escondiam, deixando ver somente os espaldares. De espaço a espaço, uma escrivania com seus pertences, cadernos em branco, lapis, pennas, canetas e canivetes. Uma placa de pedra embutida no alto da parede do fundo trazia o numero 1.

Paterson procurou os empregados, ao menos um botão electrico para chamal-os; não encontrou. Correndo a vista pelo salão, leu na parede do fundo do compartimento, por cima de uma pequena banca — «Informações».

Dirigindo-se para lá, viu sobre a mesinha um grande livro. Abriu-o. Era uma noticia completa do estabelecimento, em diversas linguas. Informou-se, então: os salões eram em numero de dez, no salão numero 1 encontravam-se, por exemplo, a historia antiga, as obras scientificas de alguns dados paizes. Cada salão tinha o seu catalogo de todos os autores, por ordem alphabetica, com o numero das estantes e das prateleiras. Era facilimo encontrar um livro...

O que mais admirava Paterson era a ordem, o aceio, o methodo em tudo. Não havia visto pessoa alguma, embora as estantes estivessem todas abertas. E’ verdade que em todas ellas havia um aviso: — «Tire o livro com cuidado, leve-o com carinho, manuseie-o sem maltratal-o, depois traga-o e colloque-o no mesmo lugar em que o encontrou. Assim elle servirá a muitas gerações» — recommendação que era attendida.

Em outra qualquer parte do mundo, qual a bibliotheca ou estabelecimento que estaria aberto noite e dia, sem ser saqueado?

A questão era não ficar guardada. Com empregados vigilantes mesmo, quanto livro teria sido furtado, quanta pagina arrancada por preguiça de fazer-se a copia, quanta caneta, lapis, canivete carregados! Todas essas miserias, praticadas no Kiato antigo, seriam hoje a morte moral de um homem. Nem mesmo o estrangeiro que frequentava a bibliotheca se animava a commetter taes delictos, porque bem sabia que era vigiado. Enganava-se suppondo-se a sós: olhos que os seus não viam, não o perdiam de vista.

Paterson consultou o catalogo alphabetico. Queria o «Novum Organum» de Bacon, livro raro, que havia muito desejava conhecer. Tinha-o procurado inutilmente em diversas capitaes. Achou-lhe o roteiro: salão numero 6, estante 25, prateleira 8. Dirigiu-se para lá.

Estava o «Novum Organum>» no mais perfeito estado de conservação. Sentou-se á mesa para satisfazer, naquellas paginas, a curiosidade de seu espirito. A obra era interessante por archaica. — Era a chimica no berço, eram as primeiras linhas do methodo experimental, as bases do grande edificio da sciencia moderna.

Depois de duas horas de leitura, repoz no seu logar a obra, tomou o chapéo, a bengala e encaminhou-se para a escada. Ao chegar ao patamar, um clarão, offuscante como um relampago, deslumbrou-o: uma lampada brilhava, illuminando estas letras negras:

«Dr. King Paterson. Tenha a bondade de voltar, assignar o livro de visitas, aberto sobre a mesa do salão numero 1. Escreverá o seu nome, naturalidade, profissão, estado, e que livros consultou. Agradecido».

Paterson ficou estupefacto. Cada dia que passava em semelhante terra mais a admirava. Sabia que deviam vigial-o, como estrangeiro, porém tão originalmente nunca suspeitou.

Sanada a pequena falta, desceu e seguiu em rumo do hotel.

Conversando com Robert sobre o caso, soube que o kiatense não frequentava a bibliotheca durante o dia e sim á noite; o estabelecimento se achava aberto ás horas de trabalho para os estrangeiros. Dispoz-se a voltar, como de facto voltou, ás sete horas da noite, afim de continuar os seus estudos.

A primeira cousa que o impressionou, ainda na rua, foi a claridade offuscante de um sem numero de focos electricos, que sahia pelas janellas do edificio e se espalhava pelas cercanias.

Subiu.

Os salões estavam cheios. Rara a mesa com um logar vasio. O silencio era tal que se ouvia o volver das folhas dos livros. O atrito do lapis, da penna escrevendo, todos esses leves ruidos se fundiam num sopro brando, que em cadencia estranha enchia o vasto salão.

Paterson, para não perturbar o silencio tumular da estancia, entrou subtilmente, como um felino. Accomodados chapéo e bengala, foi ao catalogo geral das obras dos kiatenses, antigas e modernas, onde as artes, as sciencias, as letras estavam representadas. Escolheu um romance do tempo da decadencia: «A queda».

Logo ás primeiras paginas, viu que lia scenas da vida de uma sociedade de todo corrompida. O autor, sectario da escola franceza, cultivava o thema eterno — o adulterio; mas em uma linguagem crúa, mais crúa que a de Zola na «Terra».

O enredo era conduzido com arte, as scenas vividas, as personagens moviam-se, nós as viamos como vivas. O vigor da expressão, o estudo dos diversos estados d’alma, a descripção das sensações, faziam do livro excellente incentivo, ou antes, optimo manual de perdição. Que differença da escola ingleza! pensava Paterson.

O romance inglez, forte nas descripções, não desnudando chagas que, a bem da moral, devem estar sempre veladas, deleita, moralisa, edifica. Dickens, por exemplo, tem paginas admiraveis de psychologia, paginas descriptivas intensas, mas é artista, que não desce á analyse dos estados pathologicos do espirito.

«A Queda», pathologia de uma alma enferma em todos os seus detalhes, era a repetição das mesmas scenas de adulterio tantas vezes celebradas. Uma mulher que entra na vida mundana, cercada de admiradores de sua rara formosura; que, escudada na virtude, resiste até mais não poder ás seducções; e que, afinal vencida, para se ver livre do marido, mata-o. As peripecias, descriptas com tal maestria, tornavam-no optima lição de adulterio.

Para a arte não ha immoralidade; mas o artista deve ter pudor, não deve cultivar o «feio» de preferencia ao «bello», e nunca o obsceno. Zola por exemplo, em alguns de seus livros, moralisa escadalisando. Para mais realçar a belleza de um membro são, apresenta primeiro a fealdade repellente de um membro gangrenado. Descreve a enfermidade sem escolher termos, indo ás vezes até á obscenidade.

Paterson voltou na noite seguinte á bibliotheca; a mesma concorrencia. O segundo romance do tempo da decadencia, que leu, tinha o titulo — «Coração de mãe».

Libia, uma mulher formosa, nova, casada, rica, honesta, frequentando a alta sociedade, tinha um filho unico idolo do casal. O marido, um guapo rapaz, amava-a. Era feliz.

Um dia, seu lar foi invadido pela desgraça. A creança mordida por um cão damnado — prologo de uma tragedia — o medico foi chamado immediatamente. Era um homem novo, bem apessoado, que desde muito tempo alimentava ardente paixão por Libia. Nunca tivera coragem de lh’a declarar, tal o respeito que impunha o ar senhoril daquella casta e formosa mulher.

Um pensamento maldito encheu a alma do doutor: possuir aquella carne, tel-a ao contacto de sua carne, sorver a grandes haustos o perfume que della se evolasse quando o seu ser se crispasse na volupia do goso. Possuil-a, gosal-a, antes que fosse preciso infamar-se, violar a consciencia, lançar um anathema sobre o seu nome. Obrigal-a-ia a trocar a honra pela vida do filho.

Valeu-se Libia das lagrimas, implorou piedade, mas o seductor, na febre da paixão, consciente de seu poder, (só elle, no momento, possuia o antidoto da raiva e ademais ausente o pae do enfermo) o seductor, impassivel, exagerou a urgencia da applicação do serum, fazendo ouvir o seu ultimatum: — ou ella se entregava, ou teria de ver morrer o filho hydrophobo, amordaçado, para não se morder a si e aos outros.

A infeliz mãe ajoelhou-se-lhe aos pés, pediu-lhe piedade, as mãos supplices, os olhos quebrados, numa languidez dolorosa, empanados de lagrimas, que se succediam celeres. Não se apiedou elle ; pelo contrario, accendeu-se-lhe mais a paixão, que o devorou inteiro. A sua carne, fremindo de desejos, respondeu ás lagrimas daquella mãe torturada:

— Alguns minutos mais de demora, seu filho estará perdido.

Libia, prostrada ainda, no auge da angustia, concentrou no olhar toda a ternura de sua castidade agonisante, os ultimos lampejos da luz de sua honra que bruxoleava, prestes a apagar-se, e fitou o seductor esperando commovel-o.

— O medico comprehendeu: aquelle olhar era o derradeiro esforço, a extincção das energias daquelle espirito.

Possuiu-a ali mesmo, mas possuiu o corpo de uma mulher em syncope, apparentemente morto, sem vibrações e sem gosos...

Quando Libia deu accordo de si, estava em sua alcova. O filho salvo, emquanto o medico, reflectindo em sua casa nas scenas passadas, era presa de idéas mortificantes.

Um pensamento sobretudo o acabrunhava: — não tinha gosado Libia, mas violado o seu cadaver... Fôra um infame, um covarde!... Lubrico como um capro, atirara-se sobre a victima e, quando a cingiu ao peito e colou os labios aos labios d’ella, molhados de lagrimas, já ella estava sem sentidos. A vista, empanada pela concupiscencia, não via decompostas as feições da mulher em que cevava a sua paixão, a pallidez de cadaver, os olhos de cilios mal cerrados, deixando perceber uma esclerotica onde se afogava um iris opaco, como velado pela morte. No auge da volupia, não sentira a frieza do corpo d’aquella mulher nova, que a syncope tinha esfriado. Gosara uma estatua como de pedra, apenas humidecida de um suor glutinoso.

Libia, por sua vez, tinha vaga idéa do que se havia passado até o momento em que ouviu o ultimatum do seductor: «Alguns minutos mais de demora, seu filho estará perdido». Lembrava de que estas palavras a atordoaram. Sentiu um vasio na cabeça, os olhos esfriaram-se-lhe, como dois globos de gelo, teve uma sensação de fim, o corpo a tomar proporções taes que parecia tocar o tecto, a vista tendo eclypses até que num delles a visão não mais se fez, acabando-se com ella a consciencia.

A ultima impressão que lhe ficou foi a da constricção do busto, a de um corpo que lhe aquecia os labios... E a vida pareceu cessar.

Quanto ao acto carnal, ignorava-o por completo. Só mais tarde teve a prova material delle. Sua castidade não na havia perdido; sua honra não havia sido offendida nem em sonho. Continuava pura perante sua consciencia...

E Paterson fechou o livro. Querendo, agora, conhecer a vida de Kiato moderno, escolheu um de seus romances contemporaneos — A Felicidade.

O primeiro capitulo deu-lhe a conhecer a feitura do livro: scenas populares, photographias da vida campezina em toda sua simplicidade e pureza de costumes. Scenarios descriptos com vigor e arte, o leitor tinha a sensação do real, tal a nitidez dos quadros; uma aguaforte emfim. Os campos pareciam naturaes, com flores e perfumes tão activos que impressionavam ao olfacto.

Esse ninho de felicidade abrigava um casal, que para ali entrára na alvorada da vida, e, hoje, já em meio da jornada, cercado de crescida prole, vive muito bem com o seu Deus, com os seus gados, tirando da terra — mãe de todos os homens — o pão de cada dia.

Os amores daquelle casal haviam sido castos como os das borboletas. O entrecho da novella, um idylio de beija-flores, de cujas scenas simples, que não sacudiam os nervos com o horrivel, a arte tirava encantos, symphonias que embriagavam a alma do leitor.

«A Queda» — deixára o espirito de Paterson atordoado pelo escandalo, pela maldade humana; «A Felicidade» embevecera-o na contemplação de scenas placidas, vividas no paiz do sonho. O romance era todo inteiro uma canção que enternecia a alma. As proprias sombras, que faziam a mortecor do quadro, não chegavam a dar tons de tristeza á aquarela.

Na terceira noite, voltou Paterson á bibliotheca para consultar alguma obra scientifica de autor Kiatense. Encontrou — «A origem da vida».

O assumpto era vasto e suggestivo. Delle grandes homens se haviam occupado, sem achar a verdade. Darwin, Lamark, Haeckel, Quatrefages, Spencer, pretenderam achar a incognita do problema na geração espontanea e no transformismo; chegaram a crear uma escola, o «darwinismo», bonito e bem architectado edificio que não resistiu aos embates das escolas que contra elle se formaram e acabou ruindo, porque a sua fundação repousa sobre uma base falsa, um espaço vasio, que era o intermediario, o elo que unia o homem ao mais perfeito dos macacos.

Paterson estava ancioso por conhecer as idéas do autor. Seria possivel que o problema do apparecimento da vida sobre a terra, até hoje insoluvel pela nossa carencia de conhecimentos, aquelle povo o tivesse resolvido? Bem podia ser que lhe estivesse reservada essa agradavel surpreza.

Leu o livro em tres noitadas. Os primeiros capitulos, destinados á critica do darwinismo, provavam a falsidade da escola. Sobre a geração espontanea, fazia considerações baseadas nos estudos de Pasteur. Dava grande importancia á theoria da fermentação, estudo que devia desvendar o mysterio da vida e da morte e portanto da geração espontanea. Sobre as forças dissymetricas no desenvolvimento da vida, que Pasteur estudara com grande interesse, para resolver o problema dos organismos vivos apparecidos sem ascendentes, o da germinação sem semente, pensava que o sabio francez chegaria a descobrir a verdade, embora grandes scientistas como Biot acreditassem na geração espontanea. Aristoteles e sabios de seu tempo haviam crido nella.

No seculo XVIII, Helmont ensinava como se faziam camondongos. Ainda hoje, alguns povos acreditam que dos cabellos da cauda do cavallo geram-se enguias nos lagos de agua doce; que os insectos «louva-Deus» são pequenos vegetaes que se transformaram em animaes. O microscopio muito contribuia para animar os que acreditavam na vida gerada por si mesmo.

O autor citava factos que bem deixavam ver que elle estava a par da questão da geração espontanea desde Aristoteles. O cardeal Polinac, lembrado por elle, dizia, no começo do seculo XVIII: «animaes e vegetaes foram creados, tudo no mundo sahiu do ovulo ou da semente». No meiado daquelle seculo, dois padres, um inglez e outro italiano, terçaram armas discutindo a geração espontanea. Buffon entrou na peleja, pela doutrina da vida gerada por si mesma, com tanta felicidade que chegou a fazer escola. Voltaire, com a sua costumada ironia, entrou na questão dizendo : — E’ estranho que homens que negam o poder creador de Deus arroguem-se o poder de crear enguias».

Em discussões e experiencias passaram-se os seculos XVII e XVIII; já no meiado do seculo XIX, Pasteur matou a questão da geração espontanea. Teve de bater-se com inimigos do valor de Pouchet, Joly e outros. Todas as suas experiencias se baseavam no methodo experimental. O microscopio prestava-lhe grandes serviços. A fauna e a flora atmosphericas, até então ignoradas, faziam-lhe revelações estupendas. Antagonistas contradiziam-nos allegando, baseados em factos mal observados, o apparecimento da vida, a fermentação em liquidos asepticos em presença do ar atmospherico. Os infinitamente pequenos eram a causa da fermentação — affirmava Pasteur.

Pouchet negava aquella asserção firmado num facto por elle observado nas planicies da Sicilia, no Etna, e no mar. Affirmava que a atmosphera era propria á genese organica em toda a parte, nas cidades as mais populosas, na vastidão dos mares, nas maiores altitudes. Num decimetro cubico de ar do cimo do Hymalaia ou da rua mais central de Londres obter-se-ia a geração de legiões de microzoarios ou de mucidinéas.

Pasteur aprofundava cada vez mais os seus estudos sobre a fermentação, os quaes dariam em resultado provas irrefutaveis contra a pretendida heterogenia ou geração espontanea. Chegou ao conhecimento de que ha seres microscopicos, que vivem sem ar — os chamados «anaerobios», e seres aos quaes o ar é indispensavel á vida — os «aerobios».

Convencido de que o instincto da conservação é innato, o que se vê até nos animaes unicellulares, assistiu á lucta do mycoderma aceti com as anguilles, batendo-se estas pelo ar atmospherico.

Dando grande valor ao infinitamente pequeno, considerando-o factor primordial da vida sobre a terra, exclama o sabio francez:

«Se os seres microscopicos desapparecessem do nosso globo, a superficie da terra cobrir-se-ia de materia organica morta e cadaveres de todo o genero (animaes e vegetaes).

São os infinitamente pequenos, que dão ao oxigenio principalmente as suas propriedades comburentes. Sem elles, a vida seria impossivel, porque a obra da morte ficaria incompleta».

O autor commentava com muita sabedoria estas palavras de Pasteur. Sem a putrefacção, que é obra dos microorganismos, como se faria a resurreição da carne, como seriam restituidos á natureza os elementos que constituem a materia organica para a formação de novos seres? Só a putrefacção, só os microorganismos podem decompor a materia organica, completar a obra da morte, alimentar a vida. O autor considerava, depois dos estudos de Pasteur, morta para sempre a theoria da geração espontanea, Regeitava todas as idéas apparecidas e procurava provar com os conhecimentos actuaes, consultando a historia natural, a paleontologia, e todas as sciencias, que a vida somente poderia ter apparecido em um meio, como o nosso planeta, em que só houvesse compostos ternarios e corpos simples, a materia inorganica, mineral.

Estudou a origem e formação da terra, as idades por que passou, as forças que actuaram sobre ella quando a esphera não tinha a crosta solidificada e a forma actual.

Abria de um lado a Biblia e do outro a sciencia. Pondo de parte o symbolismo, o estylo rebuscado do livro santo, via-se que as idéas eram as mesmas, apreciando factos que ficaram escriptos, não nos hieroglyphos, nos pergaminhos, porém nas folhas dos grandes livros da Terra — os terrenos da sua crosta. A formação geologica, os periodos de fogo e agua por que passou o globo, descriptos pela Biblia, a paleontologia os confirmava.

Que a terra teve origem ignea, passou queimando no espaço seculos ou milenios tem-se a prova material todas as vezes que penetramos as suas entranhas, percutimos o seu esqueleto, todo formado de rochas plutonicas.

Nesse periodo, a sua constituição era semifluida, o que prova a forma actual do globo, dilatado no equador, achatado nos polos, forma essa devida á força de rotação impressa á esphera ainda em não completo estado de solidificação.

O calor central, a existencia do pyrosphero, que parece a alguns geologos duvidosa, os vulcões, os tremores de terra, os geysers, dizia o autor, são provas materiaes.

Ao periodo do fogo seguiu-se o d’agua. A Biblia fala de um diluvio universal, em que a agua cobriu os mais elevados pincaros das cordilheiras. Esse diluvio, a não ser um symbolo, foi posterior ao periodo neptuniano, que se seguiu ao periodo plutonico. Naquella epocha não existia alteração alguma, não havia relevo na face do globo. O levantamento das montanhas teve logar quando os gazes produzidos pelas combustões, ficaram retidos nas entranhas da terra e a sua força expansiva actuava sobre a crosta mal solidificada; a parte mais tenue cedia, levantando-se camaleões colossaes, os Andes, o Hymalaia e todas as cordilheiras que existem hoje. A’ proporção que a crosta ganhava espessura, augmentava a sua resistencia, diminuia o relevo, reduzido este aos montes, aos pequenos outeiros, que salpicam hoje a face do planeta.

Essas alterações foram as derradeiras e fracas contorsões de uma formidavel crise epileptica por que passou o globo, crise que o abalou, que o sacudiu até ás fundações. O periodo neptuniano não é, portanto, o diluvio universal. A materia organisada não existindo, como Noé vivia? Afogado, diz o autor, esteve o globo por muitos seculos até que aflorou no immenso oceano o primeiro ponto, o Quarisankar no Hymalaia.

Outros pontos foram apparecendo, até que se individualisou a terra; separaram-se os dois elementos — terra e mar.

Devia ter sido uma convulsão cyclopica, de annos, talvez, taes foram as alterações que se operaram á superficie do planeta. A terra, que era uma, foi dividida em partes — os continentes. Ilhas appareceram, isoladas ou juntas formando archipelagos. No pincaro das montanhas, em diversas latitudes, elevavam-se pennachos de fumo negro, sahido das chaminés dos vulcões que appareciam pela primeira vez. Estas valvulas de segurança abriram-se durante uma preamar descommunal do pyrosphero, determinada por uma convulsão titanica do globo: Crateras abrir-se-iam para, em vomitos formidandos, sahirem os gazes, as materias incendiadas que premiam o envolucro terraqueo, ou o globo iria pelos ares. Ficou mais ou menos firmada, nesse periodo, a homogenia da terra.

O autor estuda a causa da erupção do vulcão e apresenta idéas suas. Diz elle: a lava vem das entranhas da terra, mas qual a força que a faz subir? Acredita-se ser da agua, porque todos os vulcões, á excepção de tres ou quatro na Asia, acham-se nas ilhas ou nas costas. Presume-se ser a força expansiva do vapor d’agua que determina a ascensão da lava. Essa hypothese não satisfaz, attendendo-se á disposição interna do vulcão, imaginaria é verdade.

Supponha-se que sobre o lar do vulcão, em fusão ignea, cae uma grande massa d’agua. Dá-se a espherolisação — a agua vaporisa-se immediatamente. O vapor sobe pelo conducto até escapar-se pela cratera. A pressão do vapor d’agua jámais se faria sobre o lar do vulcão. Quando a cratera se açha obstruida pelo ultimo vomito de lava, que não poude ser lançado fóra, a força expansiva dos gazes o atira no espaço, um bloco ás vezes de algumas toneladas. Não explicaria a ascensão da lava o vasio que se faz no conducto pela subida do vapor dagua? Não se dará o mesmo phenomeno que se observa nas bombas, quando se faz o vasio nos tubos? Objectarão que a pressão da atmosphera é que faz a agua subir nos tubos das bombas e — como ella se exerceria no centro da terra? O meio lá é outro e não se pode saber as modificações que soffrem as leis physicas, que conhecemos, em uma temperatura que funde todos os corpos.

Além d’isso, a agua tem um limite de ascensão nas bombas. As lavas dos vulcões tambem o tem. A dynamica terrestre deve ser outra no centro do globo.

Para que a pressão do vapor d’agua fizesse a ascensão da lava como faz a pressão atmospherica na columna barometica, era preciso que se exercesse sobre a lava e, assim, em primeiro logar, o vulcão vomitaria esta e depois o vapor d’agua. O que se observa é justamente o contrario. Os gazes, subindo, fazem o vasio no conducto e a lava os acompanha porque a natureza tem horror ao vacuo.

Diversas têm sido as hypotheses para explicar os phenomenos eruptivos. Attribuiram-nos ao incendio do carvão de pedra, á oxidação dos metaes alcalinos, o potassio por exemplo — hypotheses que não resistem á mais fraca objecção. Si a erupção do vulcão tivesse como causa a combustão da hulha, outras deviam ser as substancias vomitadas pelos vulcões. Si tivesse por causa a oxidação do potassio, seria o hydrogenio o producto regeitado. Alguns geologos pretendem encontrar a causa das erupções nas marés do pyrosphero, hypothese pouco plausivel, uma vez que as erupções não são periodicas. Pensam outros que a erupção é devida á compressão do pyrosphero pela diminuição do raio terrestre em consequencia do resfriamento.

Esta explicação tambem não satisfaz, visto as intermittencias que se observam nos phenomenos eruptivos, periodo de repouso e actividade.

A geologia, estudando a camada solida do planeta, conhece a origem das rochas, o periodo ou idade dos terrenos. As rochas de origem plutonica têm estructura crystalina e nem uma cellula organica. Ellas formam o esqueleto do globo, vestido pelas rochas de sedimento, neptunianas, dispostas em estractus concordantes ou discordantes, onde se encontra a materia organisada, restos dos primeiros animaes que habitaram a terra. Nos terrenos de sedimento, ha tambem, intercalado, o terreno crystalopheleano ou metamorphico, composto de rochas que, fluidas, vieram do centro da terra e subitamente se crystalisaram quando cahiram nagua.

A vida manifestou-se primeiro no seio das aguas. Os vestigios do primeiro animal inferior, que a paleontologia encontrou, foram do «ezoon canadense», no terreno Laurenciano da epocha paleozootica.

A primeira cellula vegetal, ou antes, o primeiro organismo uni-cellular não se encontrou. A monera, laço de união que liga as duas cadèias organicas, vegetal e animal, não foi achada. A vida havia de facto, diz o autor, apparecido em um meio todo inorganico. Quem creou a primeira cellula, deu-lhe vida, mysterio que até hoje não foi desvendado pela sciencia.

A paleontologia, estudando os terrenos, encontra as algas marinhas ao lado dos zoophitos. As duas cadeias ou, antes, os dois reinos vivos foram crescendo, aperfeiçoando-se e, quando ás suas especies o meio se lhes tornava inhospito, passaram a viver na terra.

Como nas aguas cresceram as plantas crassas, as cryptogamas, e á sombra dellas os vermes rastejaram, não tardou o aperfeiçoamento das especies, a creação de novos seres. Os vegetaes phanerogamos ostentaram as suas frondes, com flores e fructos, immensas florestas, a cuja sombra pastavam os grandes pachidermes.

A evolução dos reinos vivos, narrada pela Biblia, comprovara-se pela paleontologia. O ultimo elo da cadeia animal fôra o homem, dizia o livro santo.

A regular gradação na escala da vida, desde a monera até o homem, foi a tentação de Darwin. Nesta evolução progressiva, julgou achar a solução do grande problema: estava explicada, pelo «transformismo», a origem da vida sobre a terra. Foi essa, dizia o autor, uma miragem que deslumbrou grandes espiritos.

O darwinismo não explicava a homogenia dos seres vivos, quanto mais o apparecimento da vida no planeta. O homem, como todos os animaes superiores, veio já adulto ao mundo, isto é, si são as mesmas as leis biologicas que nos regem e regeram a elle nos primeiros tempos. Si são as mesmas, si o homem moderno é igual biologicamente ao homem antigo, só a symbolica creação de Adão pode explicar a origem da vida.

O autor pensa que a humanidade não ouvirá nunca a ultima palavra sobre o assumpto. Não será o raciocinio que desvenderá o mysterio. Os processos empregados pela sciencia — analyse, synthese, o methodo experimental, emfim — não darão em resultado sinão hypotheses. Os documentos a consultar, as causas a investigar serão sempre as mesmas — a crosta da terra, que com pouco resultado a paleontologia estuda ha muitos annos.

Os hieroglyphos, as tradições dos egypcios nada dizem de positivo e a noite de mysterio continúa a envolver a historia da origem da vida sobre a terra.

Paterson chegou ao fim do livro na mesma incerteza, convencido de que o caso é d’aquelles a que a razão, a sciencia e a intelligencia humana jámais encontrarão uma explicação que satisfaça. Será sempre a eterna questão: «qual mais antigo, o ovulo ou o ser que o gerou»?...

São as causas primarias que o homem não explicará nunca. São os phenomenos magneticos, electricos, a radio-telegraphia, o sonho, os phenomenos espiritas, telepathicos, cuja causa escapa aos nossos sentidos, e a sciencia não explica porque não pode comprehender o «porque» dos factos.

Paterson, na segunda noitada, voltou á Bibliotheca afim de conhecer a literatura didactica do povo kiatense.

Começou pelos livros antigos. As obras em que a infancia devia adquirir conhecimentos praticos e moralidade, fortalecer e formar o caracter, sobretudo estimular-se, eram de uma banalidade que tocava á demencia. Eram triviaes contos da carocha, reinos encantados, sem arte, sem graça, sem estylo e até sem grammatica. Nelles, de pedagogia nem sombra.

Enfastiado, escolheu um livro moderno. A differença começava pelo trabalho material. A impressão era nitida quanto podia ser, o typo graùdo, bem entrelinhado, de leitura facil, O papel de excellente qualidade e a encadernação artistica. Na capa lia-se: — «Leitura infantil — Quarta classe. Distribuição gratuita».

A instrucção publica em Kiato era sem onus de especie alguma. Os livros fornecia-os gratis o governo, desde a escola primaria até a universidade. Não havia razão para que o kiatense não soubesse ler. Pelo ultimo recenseamento, numa população de alguns milhões, não havia um só analphabeto.

Paterson folheou o livro e viu que tinha entre as mãos uma collectanea muito bem organisada de escriptos de autores celebres, sobre diversos assumptos e em linguagem correcta e facil. Eram lições de cousas, era o util unido ao agradavel, prendendo com muita arte a attenção da creança.

O primeiro artigo intitulava-se «O carbono». Este corpo era apresentado em todas as suas variedades, desde o diamante, que adorna as mulheres dos paizes em decadencia, até o carvão das cosinhas.

Seguia-se outro sobre a agua. O autor estudava-a em todos os tres estados, o seu grande valor como alimento e o perigo de usal-a pura. Dizia que a agua podia ser aseptica e não ser potavel, que podia ser chimicamente pura e não ser aseptica, e exemplificava de accordo com os conhecimentos da creança.

Seguiam-se outros artigos e entre elles um de grana de interesse — «Rudimentos de toxicologia». Escripto com muita clareza, ensinava a creança a defender-se dos venenos

Paterson fechou o livro admirando a didactica em Kiato.

Esta obra entrou em domínio público no contexto da Lei 5988/1973, Art. 42, que esteve vigente até junho de 1998.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.