PATERSON uma manhã, conversava com Robert, sobre as maravilhas de Kiato. Comparava o viver d’aquella gente com o do povo inglez, considerado o mais livre dos povos, onde a Justiça tinha os olhos vendados.
Que era Londres, comparada áquella capital de meio milhão de habitantes? Uma miseria. As artes, as letras, as industrias, a agricultura offuscavam-se ante o progresso daquelle reino livre.
Paterson philosophava. A Inglaterra é o paiz do ouro, mas lá se morre de fome. Kiato é o paiz da fraternidade humana.
Londres tem lords que soffrem da gota, que morrem de inanição, porque não podem engulir, que têm cancros que lhes roem o estomago, que os privam de tomar alimento mezes e annos, como os miseraveis das pocilgas, que morrem de fome porque não têm que comer. Na Inglaterra, é preciso um exercito para velar pela paz do Reino; em Kiato, é a consciencia do cidadão que vela pela tranquillidade publica.
O rigor das leis inglezas não impede que o «gin’s palace» seja frequentado até aos domingos. No dia do descanço, recolhe-se uma quarta parte da cidade. Fecham-se todos os estabelecimentos, mas ficam abertas, isto é, de portas encostadas, as tavernas. Os operarios procuram o «gin’s shop» em vez da igreja. Não achariam consolo no officio divino; e bebem aguardente até se atordoarem.
A lei ingleza o que não quer é o escandalo, é o espectaculo publico de homens sentados em frente do balcão da taverna, a beberem até se acabar o derradeiro penny. Não sendo offendidas em publico as leis do imperio, que o alcool continue degredar o genero humano, pervertendo-o espiritualmente, envenenando-o corporalmente, até o reduzir ao vil estado de perteita alimaria.
Paterson iria adeante, nessas considerações, si Robert não lhe dissesse:
— E pensará você que é só na capital que se observa rigorosamente a lei? «La force prime le droit», como dizia Bismark; só se observa esse attentado á liberdade nos paizes em decadencia. Aqui é o contrario — «Le droit prime la force». Em qualquer recanto de Kiato, o cidadão vive e procede de accordo com a educação civica e moral que recebeu. Em toda a parte, vê-se a simplicidade pontificando. E’ um povo sobrio em tudo. A felicidade não está no luxo. A mulher dos centros mais civilisados do mundo, com todas as sedas e joias, comparada á mulher de Kiato, em toda a sua simpleza, é uma desgraçada.
Vou contar-lhe uma viagem que fiz á fronteira do Reino, para melhor conhecer o povo a que estava deveras affeiçoado. Eu tinha de fazer uma viagem de algumas centenas de kilometros em estrada de ferro. Não sei si sabe que os trens aqui são movidos por tração electrica, aproveitada como força motriz para todos os misteres. Abandonou-se a agua, o vapor d’agua. Dos moinhos de vento nem mais as azas restam abertas no espaço.
Quiz conhecer uma das cidades manufactureiras, a cidade, ou antes, o kiatisito de Liserna. Não pedi informações por não ser preciso. O serviço de informes é feito pela imprensa, uma vez por semana, e tão perfeito que, de minha casa, conhecia todas as localidades do Reino, suas industrias, população, vida, distancia da capital, uma verdadeira photographia da circumscripção.
Admirei o progresso de Liserna. A ceramica tinha ali chegado á perfeição.
Segundo um estudo que li, nem a porcelana de Sévres, importada no tempo da decadencia, nem a da China, Japão, e outras procedencias podiam competir com o producto kiatense, cuja superioridade era devida á materia prima — o kaolim. Grandes jazidas de feldspatho em decomposição, mas purissimo, sustentavam cerca de doze fabricas. À porcelana era de uma transparencia quasi diaphana e da espessura de uma casca de ovo. Colorida, era dos mais bellos effeitos.
Tomei o trem que me devia levar a Liserna, em uma bella manhã de verão. Logo ao installar-me no vagão, avaliei a superioridade d’aquella via de transporte sobre as innumeras em que tinha viajado em diversas partes do mundo. Os assentos eram commodos divans, sobre molas para amortecer os choques da tracção, como si estes não estivessem amortecidos pelas possantes molas em que, sobre os eixos das rodas, se assentavam os carros.
Pouca trepidação.
As refeições foram servidas em vagões especiaes. Poucos pratos, muito mais fructas, hortaliças, doces, do que carnes.
Approximava-se a noite e pensava eu nos dormitorios. Logo que escureceu, raiou o sol electrico, illuminando tudo.
Aquelles que quizeram matar o tempo lendo, foram ás estantes, pois as havia em todos os vagões e escolheram o livro que os devia entreter, A’s dez horas em ponto, a sineta tocou a silencio. Immediatamente levantaram-se, afastaram-se todos os passageiros das cadeiras, enfileiraram-se entre uma ordem de divans e a outra, no estreito corredor. Imitei-os. Desoccupados os assentos, ouviram-se ranger de molas, estalidos, engrenagens mordendo-se, e o interior do vagão transformou-se em dormitorio. Os divans viraram biombos; minutos depois, cada um era pequeno aposento, com cama, lavatorio e seus pertences.
Era a hora de dormir.
A’s 6 horas da manhã, a sineta deu o signal de despertar. Feita a «toilette», sai do biombo. Em instantes desappareceu o dormitorio e voltou o antigo vagão.
Até Liserna, nenhum accidente alterou-nos a placida viagem.
Chegámos á cidade ao amanhecer de um bello dia sereno e luminoso. Era uma miniatura da capital do Reino, cidade nova e cidade antiga.
Ao saltar do vagão, fui cumprimentado por um rapagão de mais de vinte annos, que me interrogou em francez. Vendo que me exprimia mal, dirigiu-me a palavra em inglez. Desejava saber quem era, o que andava fazendo, interrogatorio muito semelhante ao que se faz na capital ao estrangeiro que ali aporta.
Satisfeita as exigencias, disse-me que, não havendo hotel, eu seria hospedado por conta da kiatisito e convidou-me a acompanhal-o. Perto da estação erguia-se um pequeno chalet rodeado de jardins, á porta do qual parámos. Convidou-me a entrar e disse-me estar eu em minha casa, as horas das tres refeições, e a hora de recolher-me para dormir. Dito isto, retirou-se.
— O mesmo povo original por toda a parte — disse commigo. Já na Estação, ao tomar o trem, estranhei a ausencia de bilheteria. A passagem seria paga no trem, si o passageiro entendesse de pagal-a.
O mesmo systema dos bondes. Ao apresentar-me a bolsa, disse-me o conductor que, si quzesse, daria uma esportula. Calculei os kilometros pela tabella das estradas inglezas e dei-lhe quantia equivalente. Instantes depois, voltou a mostrar-me as moedas, perguntando se não me enganara. Achara excessiva a esportula! Disse-lhe que não.
Passado o meu espanto, entrei para o interior do chalet. Que vivenda confortavel! Eram quatro os compartimentos para dormir, espaçosos, arejados, bem illuminados pelas janellas que se abriam para o jardim, Todos desoccupados e numerados.
Na pequena sala de visitas, uma mobilia de poucas peças e uma estante com livros, todos modernos, de autores kiatenses. Entre elles, um grosso volume, muito bem impresso, com finas gravuras — O kiatisito de Liserna. Lel-o-ia á noite.
Havia mais, sala de jantar, banheiro e latrina, esta tão perfeita como as da capital.
— Não sei se você já observou, King Paterson, que aqui o systema de exgoto é differente do usado em Inglaterra e nas outras partes do mundo?
— A primeira vez que aqui entrei em uma sentina, notei que o ambiente era inodoro, respondeu Paterson.
— E nem podia deixar de ser assim, si as materias fecaes, quando caem na bacia e são arrastadas pelo jorro d’agua para o syphão, já estão esterilisadas, inocuas, pode-se dizer, por um processo que só em Kiato se conhece.
O modo por que a latrina funcciona, todo automatico, é muito engenhoso. A pessoa senta-se e, quando se levanta, o apparelho faz por si a descarga, ao mesmo tempo, que uma esponja molhada em um liquido antiseptico faz a antisepsia do assento de madeira.
Depois que tomei posse de minha nova habitação fui visitar a cidade. Era uma miniatura da capital.
Vi escolas primarias em profusão. De ensino superior, havia um lyceu em que se estudavam preparatorios e uma escola de agronomia.
O titulo que em todo Kiato mais nobilitava um homem era o de «agronomosir». No tempo da decadencia, era o de doutor, mas doutores houve em tal abundancia que perderam toda a cotação.
Eu queria de preferencia conhecer Liserna industrial, manufactureira, pois havia sido negociante de porcelana.
A’s onze horas menos dez minutos da manhã, voltei á casa, para almoçar ás onze, como me haviam ordenado.
Recolhi-me ao quarto para fazer as lavagens do costume. Ao soarem onze horas, soou a campainha electrica.
Fui para a sala de jantar. Não encontrei pessoa alguma. | mesa estava posta, sentei-me. Que lauto almoço! Carne branca, pouca; hortaliças, fructas, doces, em quantidade.
Almocei.
Sahi depois, para visitar as fabricas de ceramica. A mesma ordem, a mesma disciplina das fabricas da capital, todos os machinismos movidos pela electricidade.
O dono do estabelecimento falou-me em inglez. E’ preciso dizer que em Kiato não havia lingua nacional. A usada no tempo da decadencia, pouco falada hoje, foi substituida pelos idiomas mais usados no mundo.
Pedi licença para visitar a exposição dos productos da fabrica. Levaram-me a um vasto salão, fartamente illuminado pelo sol. Encostadas ás paredes, dezenas de prateleiras e nellas milhares de objectos de porcelana. Approximei-me. Deslumbraram-me os tons da louça pintada e o leite da louça branca. As tintas de tão vivas pareciam naturaes. Vendo-se uma folha, um fructo, tinha-se a illusão do real.
Minha admiração chegou quasi á estupefacção deante de duas jarras que iam para o rei de Inglaterra. Foram as maiores, e as mais perfeitas que tenho visto. Nos lugares nús, a louça era translucida, de uma diaphameidade maravilhosa. Arabescos feitos com muita arte, via-se engenho em todas as linhas da paizagem.
Numa das jarras, a ornamentação representava um pedaço de floresta ao amanhecer, com aves revoando, borboletas aos beijos e beija-flores a sugar o mel. Tinha-se a illusão do real. Um dos colibris azul-e-ouro, que, com uma poupa quasi ferrete, adejava sobre a flor de um cacto, que se enredava como serpente no tronco de uma palmeira, dava aos sentidos a sensação do natural. Nunca os meus olhos de amador tinham admirado pintura igual.
A outra jarra, ornamentada em genero differente, representava uma caçada de javalis. O porco, ao sahir do covil, perseguido por um caçador e uma matilha amestrada — todas figuras animadas, correndo. O jogo da musculatura nas diversas posições era tão bem estudado como se fosse uma photographia instantanea. Scena representada tão ao vivo, a illusão tamanha, parecia ouvir-se o rosnar da féra.
Sai da fabrica fazendo um juizo elevadissimo da ceramica em Liserna.
Não quiz regressar á capital sem conhecer uma aldeia. Na pequena agremiação, o povo devia ser mais atrazado. Consultei o «kiatisito de Liserna» e li que a doze kilometros, havia a aldeia de Orthoze com uma população de 5 mil habitantes de agricultores e pescadores, dez escolas primarias e um campo em que se ensinavam principios de agronomia.
A viagem para Orthoze foi em automovel, pois o Reino é cortado, retalhado mesmo, de optimas vias de communicação, ferreas ou de rodagem.
Chegando á aldeia, logo que desci do vehiculo, fui cumprimentado e interrogado por um senhor de meia idade, que me disse ser o governador da aldeia. Offereceu-se para mostrar-me as escolas, o campo agricola e os seus instrumentos de pesca. Acceitei e, depois de ter tudo visto, fiquei certo de que, vendo-se a capital do Reino, se tinha visto todo o Kiato em miniatura. Despertaram-me attenção os apparelhos de pesca. Pouco entendido em semelhante industria, pedi explicações ao governador, que, com grande cortezia e proficiencia, explicou-me a excellencia das redes inventadas ali, de facil manejo, dando esplendido resultado Disse-me que Liserna era abastecida de peixe por Orthoze, que o mar era muito piscoso, mormente a bahia, á margem da qual se achava a aldeia, bahia de aguas sempre quietas e serenas.
Tomei o automovel, voltei á cidade e, no outro dia, á capital do Reino.
Esta obra entrou em domínio público no contexto da Lei 5988/1973, Art. 42, que esteve vigente até junho de 1998.
Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.