XIV
A Iára e a Cuca
A vida na floresta é governada por duas rainhas, a Iára e a Cuca. A Iára, que é a rainha das aguas, vive em guerra com a Cuca, que é a rainha da terra. Essa luta vem desde o começo do mundo e ha de durar enquanto durar o mundo. E explica o que você observa na natureza, essa vida de luta permanente na qual nenhum ser, por maior ou por menor que seja, jamais tem sossego. Todos os viventes, quer sejam animais ou plantas, tomam o partido da Iára ou o partido da Cuca, de modo que viver, aqui na floresta, é fazer a politica de uma ou de outra rainha.
Ha mais embustes e traições nesta mata do que na côrte de todos os reis da terra. Tudo está cheio de armadilhas. O perfume das flores, que parece coisa tão inocente, não passa de uma armadilha. A côr, o brilho dos insetos, a penugem das aves, a forma e os costumes dos animais, tudo é armadilha ou artimanha de uma das rainhas para fazer mal ás criaturas do partido contrario.
A Iára tem do seu lado as coisas que vocês homens chamam belas — as flores de perfume agradavel, os lindos insetos, os animais de movimentos elegantes como a onça, as plantas sem espinho, as abelhas.
— Já sei, interrompeu Pedrinho. A Iára é a rainha de todas as coisas boas.
— Nada disso, contestou o saci. A Iára não é boa, nem má. E´ indiferente. Só quer uma coisa: beleza. Tudo que tem beleza está com ela, embora seja mau, isso não importa. As flores venenosas estão do lado dela só porque têm beleza.
— E do lado da Cuca está tudo quanto é feio, não é assim? sugeriu Pedrinho.
— Isso mesmo. O partido da Cuca é o partido da feiura. Os sapos, os lagartos, os jacarés, as corujas, as borbole- tas pretas, os insetos cascudos e de côres escuras, as palmeiras espinhentas, os vermes de pau podre, os pantanos de aguas verdes e gosmentas — e lá entre os homens as mulheres feias e malvadas, que batem nas crianças, as madrastas, os traidores, as “pestes”, em suma.
— Não sabia, disse Pedrinho, que nós homens tambem estavamos alistados nesses partidos.
— Estão, sim, sem o saber. Dona Benta, por exemplo, pertence ao partido da Iára, porque apesar de velha é muito “bela” de coração.
— E tia Nastacia?
— Tambem é bela por dentro, apesar da pretura de fora.
— E os sacis, de que partido são?
— Dos dois. A´s vezes trabalhamos para a Iára, ás vezes trabalhamos para a Cuca, conforme os interesses do momento. Somos “oportunistas”, disse ele fazendo a mais brejeira das carinhas.
— E você, pessoalmente? indagou Pedrinho.
— Eu sou da Iára desde que nasci. Nunca mudei. Implico-me com a Cuca. Tenho-lhe odio. Mas a senhora Iára nem sequer me conhece. Essas rainhas governam a gente sem dar a menor satisfação. Obrigam-nos a fazer isto ou aquilo sem dizer os motivos, de modo que vivemos aqui tal qual os homens vivem lá entre eles.
— Isso, não! protestou Pedrinho. Nós homens só fazemos o que queremos e sabemos o que queremos.
O saci deu uma risada gostosa.
— Bobagem, Pedrinho. Quando um rei de vocês manda milhares de homens para a guerra, esses coitados morrem mortes horriveis sem saber por que, nem como. Os pobres homens são joguetes dos reis do mesmo modo que nós aqui somos joguetes das duas rainhas. A gente pensa que sabe, mas não sabe nada. Homens e bichos somos todos uns idiotas.
Pedrinho ficou um tanto atrapalhado com aquela opinião, e sem coragem de protestar. Quem sabe se não era assim mesmo? Iria perguntar a dona Benta quando voltasse para casa.
— Os casos de encantamento que se dão entre os homens, continuou o saci, os que são virados em lobishomens ou em pedras ou em planta não passam de artimanhas das nossas rainhas para fins que só elas sabem. Quando isso se dá entre vocês, ninguem explica o misterio; uns negam; outros afirmam; outros, chamados sabios, inventam teorias para explicar a coisa. Na verdade só a Iára ou a Cuca sabem a razão. Eu mesmo já fui mandado diversas vezes fazer mandingas entre os homens, sem conhecer nem por sombras quais as intenções de quem me mandava.
Pedrinho ficou pensativo. Ou aquilo era verdade e as coisas da natureza em vez de se tornarem claras no seu espirito ainda ficavam mais escuras, ou era mentira e o saci o estava bobeando da maneira mais cinica. O melhor, porém, era não esmiuçar coisa nenhuma, porque a embrulhada poderia ficar maior ainda. Porisso interrompeu ali aquela estranha prosa, não só por essa razão como tambem porque já devia estar prestes a soar a tremenda hora da meia-noite.
Soar era um modo de dizer, porque a meia-noite só sôa quando ha relogio de parede perto. Ali na floresta, como saber as horas? Pedrinho perguntou-o ao saci.
— Oh, facilimo, respondeu este. Temos na mata inumeros relogios vegetais. Lá está um, disse apontando para uma certa flor. Só abre á meia-noite. Está quasi toda aberta — quer dizer chegando. E´ a hora dos grandes acontecimentos.
— Acha que iremos ver alguma coisa importante?
— Não acho; sei que vamos, respondeu o saci. Estamos bem no coração da floresta, ponto onde á meia-noite de todos os dias se reunem os meus irmãos sacis, e ás vezes tambem lobishomens. Até a mula sem cabeça costuma passar por aqui a essa hora.
Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.
Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.