XXIX
O novelo de cipós
CORTADO o cipó, trouxeram-no em dois grandes feixes; e, sem receio nenhum, pois os roncos da Cuca mostravam que ela estava a dormir como quem não dormia ha sete anos, começaram a amarra-la dos pés á cabeça.
Mais uma vez teve Pedrinho de reconhecer como era habil e arteiro o seu amigo saci. Amarrar parece coisa facil, mas não é. Se Pedrinho houvesse amarrado a Cuca, o mais certo era que com dois safanões a bruxa se livrasse da cipoada num minuto. Mas com o saci deu-se coisa diferente. O diabinho parecia nunca ter feito outra coisa na vida. Amarrou-a com a mesma ciencia com que as aranhas amarram as moscas nas suas teias, sem deixar um ponto fraco. O segredo, explicou ele, era estudar a amarração de modo que, ao despertar, a Cuca não pudesse fazer o menor movimento. Porque se a criatura amarrada puder fazer um pequeno movimento, por menor que seja, afrouxará um ponto no amarrilho; — e depois afrouxará outro ponto e assim irá até libertar-se duma vez.
Terminado o serviço, em vez de Cuca via-se no chão um verdadeiro carretel de cipó.
— Sim, senhor! exclamou Pedrinho. Aprendi mais hoje do que em toda a minha vida. Esta diaba pode ter a força de cem elefantes, mas duvido que escape da “nossa” amarração.
O saci sorriu daquele "nossa", mas calou-se. Limitou-se a enxugar o suor da testa.
— Temos agora de acorda-la, disse depois.
— Deixe esse ponto comigo, pediu o menino. Com um bom pau de guatambú, eu acordo-a bem acordada.
— Nada de paus! Você não conhece a Cuca. Um monstro de tres mil anos, como ela, havia de rir-se das pauladas dum menino como você. A’ força, é impossivel lutar com ela. Temos de usar da astucia. A arma a empregar vai ser o pingo d’agua.
— Lá vem o pingo d’agua outra vez! exclamou o menino. Até parece caçoada, querer com um pobre pingo d’agua vencer uma bruxa destas.
— Pois fique sabendo que é o unico meio.
Pedrinho não entendeu, ficando de boca aberta, a observar as manobras do saci. A engenhosa criaturinha trepou que nem macaco pelas estalactites gotejantes da gruta até alcançar a que ficava bem a prumo sobre a cabeça da Cuca. E lá, então, encaminhou um fiozinho d’agua, de modo que gotejasse lentamente bem no meio da testa da Cuca.
— Basta isso, disse ele. No começo ela nem sente; mas com a continuação a dor vai ficando tamanha que ha de dar-se por vencida.
— Sim, senhor! murmurou o menino. Está aí uma invenção que nunca imaginei — mas agora me lembro que vóvó nos contou uma historia assim...
— Pois é, disse o saci. Ambos ouvimos essa historia; mas só eu prestei atenção e agora já estou tirando partido do que aprendi. Sou dez, vezes mais esperto que você, Pedrinho. Não acha?
O menino não teve remedio senão achar que era mesmo.
Os pingos começaram a cair. Os cem primeiros nenhuma impressão fizeram na bruxa, cujo sono parecia dos mais gostosos. Daí por diante já esse sono não pareceu mais tão calmo. Começou a fazer caretas, como se estivesse sonhando algum sonho horrivel. Por fim abriu um olho e depois o outro.
Por varios minutos ficou apatetada, vendo diante de si aquelas duas criaturas de mãos na cintura, a olharem para ela sem dizer coisa nenhuma. Depois a sua inteligencia foi acordando e percebeu o pingo a lhe cair na testa. Quis mudar de posição. Não pôde. Só nesse momento viu que estava amarradinha como se fosse um carretel e condenada á mais absoluta imobilidade.
Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.
Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.