O MISTÉRIO SOBRE A IDENTIDADE
DO PAI

Gama surripiou á historia o nome de seu progenitor. Fê-lo com uma elegancia digna de seu coração bondosíssimo. Releiamos o trecho:

“Meu pai... era fidalgo, e pertencia a uma das principais familias da Baía, de origem portuguesa.

Devo poupar á sua infeliz memória uma injúria dolorosa e o faço ocultando o seu nome. Ele foi rico, e, nesse tempo, muito extremoso para mim: criou-me em seus braços. Foi revolucionário em 1837. Era apaixonado pela diversão da caça e da pesca; muito apreciador de bons cavalos; jogava bem as armas e, muito melhor, de baralho; amava as súcias e os divertimentos; esbanjou uma boa herança, obtida de uma tia em 1836; e, reduzido á pobreza extrema, a 10 de novembro de 1840, em companhia de Luiz Candido Quintela, seu amigo inseparavel e hospedeiro, que vivia dos proventos de uma casa de tavolagem na cidade da Baía, estabelecido em um sobrado de quina, ao lado da praça, vendeu-me como seu escravo, a bordo do patacho “Saraiva”.

Com esse epitafio, Gama encerrou no mais pesado mistério o nome e a personalidade do amante de Luiza Mahin. E assim permanece até hoje, porque a não ser as referências acima, que lhe fez o filho, tudo o mais é enigma na vida do fidalgo. Gama, por pura misericórdia filial, generosamente lhe cobriu o nome com o manto do seu silêncio e levou a tal ponto o seu escrúpulo dessa negativa piedosa que nem mesmo aos amigos mais íntimos nunca fez a mínima confidência nem permitiu a menor alusão a respeito.

Varios e ilustres espíritos, Bernardino José de Souza, Artur Neiva, Borges de Barros, de meu conhecimento, se interessaram pelo problema, sem lograr decifrá-lo. A cortina de fumaça permanece espessa e impenetravel.

Tambem a mim tentou a solução, partindo da afirmativa feita na Carta de que ele fôra batizado, com 8 anos de idade, na Igreja Matriz do Sacramento, na cidade de Itaparica, fronteira á Baía.[1]

Pedí a amigos meus que conseguissem pessoa disposta a ler, no Tombo da Curia Metropoliana da Cidade do Salvador, os livros de assentamentos de batismos daquela Matriz afim de copiar o referente ao nosso heroi.

A tarefa afigurava-se-me simples, uma vez que o neófito se apresentara ás aguas lustrais com idade bem avançada para a cerimônia. Ora, um pretinho Luiz, de oito anos aproximadamente, filho de Luiza, preta não escrava, que lá estivesse registrado, não podia deixar de ser o nosso homem. E na tentativa animava-se a esperança de que o pai comparecesse como padrinho ou como testemunha, dando assim uma pista ás pesquizas.

Baldado esforço. Os livros, de fato, existem e foram vistoriados pelos srs. Conego Anibal Matta, secretario da Curia, e depois pelo Revmo. P. Clodoaldo Barbosa, mas infelizmente, não se logrou encontrar o assentamento naqueles termos. Não ha nenhuma criança de oito anos, com o nome de Luiz ou de Luiz Gonzaga, entre os registros, como pude verificar pela relação que me enviou a educadora baiana, D. Anfrisia Santiago.

Isso levaria a concluir que Gama trocou não apenas o nome de familia mas tambem o proprio prenome. Seria conjetura perfeitamente plausivel, que nada apresenta de estranha ou de absurda. Poder-se-ia até supor que essa mudança ele a operou antes de pensar em esconder o nome paterno. Haveria toda a verosimilhança em imaginar que Gama tivesse dado prenome diverso, á sua chegada no Rio de Janeiro, não já com o intuito de salvaguardar futuramente a reputação do progenitor, mas pelo orgulho ferido que não admitia tivesse “o escravo á força” o mesmo nome do menino livre da Baía. E se o descobrissem no embuste, diria que tinha preferido adotar o prenome materno, o que, naqueles tempos, para um escravo que alem de tudo mudava de província, não seria um acontecimento muito importante. Ajudá-do-ia, quiçá, nessa tarefa, o proprio proprietário da “peça”, a quem o expediente convinha, de vez que o menino tinha sido escravisado injustamente e Gama não havia de se ter cansado de o referir e repetir durante toda a viagem e depois dela. Ora, o artifício servia a emaranhar e complicar os antecedentes e forrava o senhor a complicações sempre possiveis, decorrentes da aplicação da lei de 7 de novembro de 1831, que, embora burlada e incumprida, era sempre uma lei.[2]

Ainda haveria a hipotese de ter Gama, na Carta, trocado o nome da Igreja Matriz em que foi batizado, despistando assim os possiveis pesquisadores de sua vida. Mas tal só se poderia verificar mediante uma batida completa nos livros da Curia, e referentes a todas as freguezias existentes na época, não só da cidade do Salvador, mas tambem das cidades visinhas. Trabalho para anos e realizado em virtude de uma simples suspeita, não teria a animá-lo nem mesmo a certeza de uma descoberta sensacional. Porque bem pode acontecer que o assentamento de batismo seja de um laconismo tal, como era praxe no tempo, que não compense tamanho esforço.

Compreendem-se, aliás, perfeitamente as dificuldades encontradas na busca desse documento. Se Gama não tivesse a certeza da existência de uma circunstancia qualquer que tornasse baldadas essas pesquizas, ele, que foi, como veremos, um prodigio de inteligência e de argúcia e que, como advogado dos mais ilustres, conhecia todos os segredos e todos os recursos da astúcia e da malícia humanas, não haveria afoitamente contado a seu amigo Lucio de Mendonça, o local e a data aproximada em que fôra batizado. Não iria fornecer aos seus futuros historiadores um dado de fato tão expressivo e tão significativo como esse, para a reconstrucção de sua vida, se não tivesse a plena certeza de que o assentamento, embora feito numa pequena cidade de provincia, que até hoje pouco se desenvolveu, mas que é, de outro lado, francamente acessivel, não o puzesse a coberto da probabilidade de uma surpresa, denunciando-o naquilo que ele mais queria esconder.

O problema, contudo, ai fica, como uma permanente tentação e como um irresistivel desafio á argucia e á capacidade decifradora dos seus conterraneos.

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.
  1. Alberto Faria, na sua conferencia do Instituto Hist. Nacional, mostrou que o nome de Luiz Gonzaga lhe fora dado «por coincidir o seu natalício com a festa ao padroeiro da juventude cristã». E isso me fazia desconfiar de que ele talvez tivesse sido batizado na recorrência dessa mesma data.
  2. Tambem não seria desarrazoado supor que a mudança de nome tivesse sido exigida ou, pelo menos, inculcada pelo proprietário do novo escravo.