A VENDA DO FILHO

Problema muito mais apaixonante que o do nome exato do fidalgo, é o dos motivos reais que o levaram a vender o filho. E apezar de nunca haverem sido discutidas, aceitando todos, mui naturalmente, as afirmações de Gama, nesse particular, não me parece comoda a interpretação dos fatos, tal como sempre foi apresentada e passou em julgado.

Relendo o parágrafo acima transcrito, o que se apura de definitivo, é que o amante de Luiza Mahin, depois de haver criado o menino com o maximo carinho e de haver sido um modelo de pai extremoso, resolveu, um dia, vendê-lo como escravo, por estar reduzido á miseria extrema, lançando mão de um expediente triplicemente repugnante: vendia um filho, fruto de seu proprio sangue, repudiando dez anos de bons tratos, e de afagos; fazia a transação com uma criança livre, filha de mulher liberta; negociara acerca de uma criatura humana sobre a qual não tinha o mínimo título de posse, desde que não lhe assistia siquer o pátrio poder reconhecido. Tudo isso em tróca de uns miseraveis mil reis que a sórdida operação lhe trazia de proveito.

E’ sumamente dificil, nas condições em que o problema se nos oferece, hoje, com os antecedentes que o próprio Luiz Gama põe em luz, aceitar o fato e a sua interpretação com a simplicidade que parece emanar de um relato feito ha oito lustros de distancia e baseado nas reminiscências de uma criança de dez anos.

A circunstancia de ser o fidalgo um amante inveterado de súcias e de farras, estrôina, peralta, jogador, amigo da vida desregrada e dissipada, não destroe a outra da boa conduta anterior para com o filho, de o haver cumulado de mimos e carícias, “criando-o nos braços”, na expressão textual de Gama. Um incidente, na aparência insignificante, mostra o cuidado do fidalgo anónimo pelo filho. Luiza Mahin nunca aceitara, como vimos, nem a crença nem a doutrina cristã, mantendo-se intransigentemente pagā, certamente subordinada ao culto gêge-iorubano que os nagôs haviam vulgarizado na Baía. Decorre naturalmente daí o fato de Luiz Gama não haver sido batizado na sua primeira infancia, isto é, quando ainda permanecia sob a tutela materna.

Pois bem, quando Luiza, com toda a certeza comprometida, junto com o amante, na “Sabinada”, achou prudente, depois de vencida a revolução rumar para o Rio de Janeiro, pondo-se cautelosamente fóra do alcance da polícia baiana, o fidalgo aproveita-se da ausência para cumprir o seu dever de crente. E leva o filho á pia batismal. Fá-lo, é certo, com a maxima discreção, mandando o pirralho á Matriz da ilha fronteira de Itaparica. Mas, nesse gesto, percebe-se apenas o desejo de escapar á tesoura da maledicência citadina, que não veria com bons olhos um membro de uma das melhores familias locais surpreendido em flagrante delito de ternura para com o bastardo de pele tão tostada. Mas fá-lo de qualquer maneira, pondo-se em paz com a sua conciência.

Isso foi em 1838. Dois anos mais tarde, esse mesmo pai extremoso, bom, afavel, cordialissimo, manda o pequeno para o retalho, como animal de troca e barganha. Poder-se-á concluir, em sã razão, que haja sido unicamente a pobreza, ou, talvez, alguma dívida de jogo,[1] o movel determinante dessa brusca, inesperada, incompreensivel mudança de atitude?

Não ha pai que, por motivo de penuria e de miseria, venda um filho. Pode dá-lo, uma vez se convença que o entrega a pessoa carinhosa que o eduque e o ampare. Mas, vendê-lo, nunca.

Poder-se-ia conceber que o fidalgo baiano, do qual não se conhecem atos brutais e apenas viciosos, conhecendo-se-lhes, ao contrario, os de bondade e coragem, tivesse, em poucos mezes degradado tanto a ponto de descer a um tal procedimento, que aberra clamorosamente das normas humanas e naturais?

E’ dificil crê-lo. A mim, individualmente, afigura-se-me de todo impossivel. Não seria muito mais razoavel supôr um lento, continuo, intenso trabalho de intriga sobre o ânimo do fidalgo, da parte de sua própria família, talvez de seus amigos (quiçá esse mesmo Quintela, a quem de tão má vontade se refere Luiz Gama) no sentido de convencer o amante de Luiza Mahin de que o filho não era dele e que a preta o ilaqueara miseravelmente na sua boa fé, só para garantir o futuro do rebento? A ausência da quitandeira facilitava a tarefa. Não estava ela alí para, em se defendendo, defender a sorte do filho. E essa propria e prolongada ausência não poderia transformar-se, para os advogados do diabo, numa prova bastante e decisiva da habilidade da mulher em impingir-lhe a prebenda, transferindo as suas responsabilidades, e desinteressando-se a seguir da cria, uma vez convencida de lhe haver assegurado e consolidado o porvir?

Não tenho a intenção de inocentar ou de minorar o gesto do homem que Luiz Gama, num repente quiça se mais de nojo que de piedade, negou á historia. A ignomínia do procedimento permanece a mesma. Mas não consigo juntar, num mesmo perfil psicológico, as duas contraditórias atitudes, tão proximas uma da outra, sem a intervenção de um fator novo, capaz de, pela dúvida que viesse a suscitar, levantar uma verdadeira tempestade no cérebro desse homem, e lhe desse a coragem necessária para mudar, de uma hora para outra, e assim tão brutalmente, o curso da existência de uma pobre criança inocente e ignara dos sucessos. E’ inutil: não posso conceber o gesto sem a tragédia interior; não posso admití-lo sem movel profundo, arrebatado, lacerante, de egoismo animal, de ciume póstumo, de desejo cruel de vingança.

A desgraça de Gama vendido aparece-me muito maior do que ele a fez supor. No procedimento paterno, em que todos nós nos habituámos a enxergar infámia pura e crueldade sórdida, parece-me que houve um pouco mais do que a simples sêde do lucro facil e da ganancia de algumas dezenas de mil reis. O gesto tem todo o sabor, quasi medieval, de uma desforra de macho que se acreditou traído e que não podendo desafrontar-se no proprio ente de que imaginou receber o ultraje, levou o seu odio irraciocinado para a geração seguinte.

Para mim, Gama foi muito mais infeliz do que ele mesmo acreditou.

E si o soube e, assim mesmo, ocultou o nome paterno com essa indevassavel lápide do olvido, maior exsurge o seu boníssimo coração de filho. Porque, então, foi a última homenagem que ele tributou á mãe: proibir para todo o sempre a devassa de sua vida intima. Isso valia bem o labéu de filho de pai desconhecido.

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.
  1. A carta de Gama não o afirma, mas essa idéa surge naturalmente á cabeça do leitor pelo proprio contexto das frases.