EM SÃO PAULO

Vendido por este ou aquele motivo, já hoje impossivel de apurar ao certo, á distancia de quasi um século, veiu Gama para o sul, inaugurando a via-crucis que ele narra mais espaçadamente na Carta: curta demora no Rio de Janeiro, enquanto trocava de senhor, embarque para Santos, subida, a pé, da Serra do Cubatão, peregrinação pelo interior da provincia, na oferta continua de seu corpo para pagem de filhos dos ricaços do tempo, recusa ostensiva dos fazendeiros em o aceitarem pelo fato de ser baiano.

Os escravos dessa naturalidade amedrontavam, na época, o Brasil inteiro. Notabilizara-os, no Império e na Colonia, uma serie ininterrupta de insurreições negras, na Baía, que vão de 1807 a 1835,[1] e nas quais a ameaça suprema pesava sobre a cabeça dos brancos possuidores de escravos. As primeiras haviam sido sedições de negros “haussás”, isto é, as de 1807, 1809 e a grande, de 1813, já ao tempo do Conde dos Arcos. As que se lhes seguiram, em 1826, 1828 e 1830, foram sublevações de negros “nagôs”, nação africana tida como das que maior numero de individuos inteligentes havia fornecido ás lavouras baíanas. A de 1835, a maior e a mais bem organizada de todas, fôra chefiada pelos “malês” ou “malinkês”, que se distinguiam por serem adeptos da religião mussulmana, mas tivera a ajuda de quasi todas as outras nações de negros, entre os quais os nagôs figuravam em primeira plana. Era a provada inteligencia destes que os fazia temidos.

Ora, Luiz Gama era filho de mulher nago. A repulsa seria, portanto, mais acentuada contra ele, da parte dos senhores. E para avaliar o termor que os escravos baianos inspiravam, baste dizer que ainda hoje, como tive ocasião de o verificar pessoalmente, em certos meios atrazados de São Paulo, especialmente nas zonas rurais, o negro dessa terra é muito respeitado e temido, considerado como indomavel e insubmisso, sempre a armar rebeldias e motins. Tanto póde o efeito de uma idéa, que se vulgarisou ha mais de cem anos, que seu residuo sentimental persiste ainda na mentalidade de muita gente.

Voltando a São Paulo, depois da infrutifera tentativa de passar a novo proprietário, seus primeiros sete anos de vida, na casa do alferes Cardoso, não têm maior significação. Destinaram-no, á falta de melhor aproveitamento, ao artezanato, que já andava em moda desde o começo do século para os negros que revelassem atividade mais desenvolvida. E Gama, “começou a aprender a copeiro, a sapateiro, a lavar e engomar roupa e a costurar.”

Dizendo que esses anos foram sem maior significação, não entendo asseverar que não foram penosos. Para quem vinha de sua vida anterior, na Baía, em quadra descuidosa, rodeado de mimos, a lembrança dos dias decorridos desde aquele fatídico 10 de novembro de 1840, devia ser de um amargor de fél.

Vendido pelo pai, indefeso e inerme diante do inevitavel, arrancado ao seu habitat de origem, incapaz de provar a sua condição de criança livre, tudo lhe mostraria como era precária e incerta a justiça dos homens e como era egoisticamente feroz a sua maldade. Porque tudo, nos primórdios da existência desse menino desprotegido, parecia haver-se conluiado para fazer dele um bandido que havia de encher de horror os anais do crime brasileiro!

Felizmente para ele, aos dezesete anos, se lhe abre a primeira clareira na lenta e dolorosa escalada do caminho da glória que a vida the faria percorrer. Aparece na casa do alferes Cardoso, um rapaz, Antonio Rodrigues do Prado Junior, que vinha estudar na Capital.

Prado Junior afeiçoa-se ao pretinho e resolve alfabetizá-lo. E dando-lhe o conhecimento da técnica das primeiras letras, o recenvindo se torna a varinha mágica que havia de transformar inteiramente as diretrizes humanas do futuro abolicionista.

Ha desse tempo, o testemunho de dois episodios ocorridos com Gama e que não encontrei relatados em parte alguma. Contou-os o sr. Antonio dos Santos Oliveira, ouvidos da boca do proprio pai.[2].

Gama, depois que o amigo lhe ensinara os primeiros rudimentos, fez tão rapidos e surpreendentes progressos que passou, por sua vez, a ensinar os filhos do alferes Cardoso, conseguindo alfabetizá-los com a máxima brevidade.

Um dia, já em 1848, Gama abordou o alferes, pedindo lhe concedesse este a carta de alforria, em virtude do trabalho que tivera para ensinar-lhe os filhos.

— Alforria por isso? escandalizou-se o interpelado. — Eu comprei você para que trabalhasse para mim e você nada mais está fazendo do que cumprir a sua obrigação.

— O senhor comprou-me para o trabalho braçal e manual. Não está nas obrigações de um escravo o trabalho intelectual, que é muito mais difícil.

— Nem assim você me convence. A sua liberdade só será concedida quando eu me julgar pago das despezas que fiz.

— Pois bem, nesse caso, vou levar a questão ao tribunais. O senhor bem sabe que eu não sou escravo e que nasci livre.

O alferes Cardoso irritou-se e perguntou-lhe se a instrução que ele consentira em que Gama recebesse, só tinha servido para criar-lhe na alma aquela absurda pretensão e para revoltar-se contra quem sempre o tratara humanamente.

Gama não se deu por vencido. Reconhecia que, no fundo, o senhor era boa criatura e que lhe votava estima, como confessou na Carta. Mas, mesmo nessa sua primeira mocidade, como o provará mais tarde com toda a atuação de sua vida, o baianinho tinha uma sêde ardente de liberdade. Não iria permanecer acorrentado a uma injustiça por meras preocupações sentimentais e não podia aceitar que lhe negassem aquilo que era um seu legitimo direito.

Fugiu da casa do amo, “depois de obter ardilosa e secretamente provas inconcussas de sua liberdade.”[3]

Esta frase da Carta é outro ponto cheio de indagações. Que Gama provou cabalmente a sua qualidade de homem livre, filho de mulher liberta, não ha a menor dúvida. Seria preciso não conhecer os antecedentes do alferes Cardoso para admitir a hipótese de que este tivesse cedido a considerações altruisticas, num tempo em que ninguem as usava, e tivesse recuado no seu proposito de reconquistar o moleque. E é o proprio Gama quem mostra a qualidade de teima do senhor, quando refere, na Carta, por que razão se suicidou o alferes, ali por volta de 70 ou 72: no ato de o prenderem por haver morto, á fome, alguns escravos, por ele longamente mantidos em cárcere privado.

Não é, portanto, possivel duvidar de que Luiz Gama, com as provas, tirou ao teimoso a vontade de pleitar a sua recondução ao cativeiro. Esses documentos foram naturalmente destruidos, juntamente com todo o arquivo da escravidão, por obra daquela celebrada Circular nº 29, de 13 de maio de 1891, que Rui Barbosa fez expedir quando Ministro da Fazenda. Ninguem póde compreender como uma idéa tão desastrada tenha surgido ao espírito do insigne baiano. Suprimiu assim, com uma penada, toda a preciosissima e inigualavel fonte de informações para o estudo da influência negra em nossa evolução racial.

Que provas seriam essas a que Gama dá um tão preciso qualificativo juridico, ao mesmo tempo que passa por sobre elas como gato sobre brazas?

Ele sabe que o ponto é melindroso e que nele residem circunstancias que lhe desvendariam a parte da existência propositadamente sonegada e, porisso mesmo, esflora o assunto, como se fôra de somenos.

A meu ver, prova inconcussa só havia uma: a certidão de batismo, que não podia deixar de registrar a sua qualidade de filho natural de uma negra livre, documento probante por excelência, dês que, no tempo, as Igrejas eram os cartórios de paz do Império.

Ora, nós vimos, páginas atraz, que esse assentamento, pelo menos, com o nome de Luiz, não existe no Tombo, da Curia Metropolitana da Baía, existindo, entretanto, os livros em que Gama diz ter sido registrado. E, se, como suponho, o assentamento do filho de Luiza Mahin está feito com prenome diverso do que ele usou em São Paulo, o documento não lhe adiantaria nada para provar a sua qualidade de cidadão livre. Salvo se ele conseguiu, depois de obter a certidão, que se destruisse a página onde constava o seu assentamento no livro respectivo da Igreja Matriz de Itaparica. Suposição improvavel para um moleque de dezoito anos. E em minha correspondencia com a Baía, não ha a menor referência a esse fato de existirem páginas arrancadas ou mutiladas.

Autografo de Luiz Gama existente na Repartição de Estatistica
e Arquivo de São Paulo.

Ser-se-ia, portanto, levado a concluir, razoavelmente, que não foi com esse documento que ele obteve a sua liberdade.

De que maneira, então, a efetivou? Tratar-se-ia de alguma declaração de autoridade baiana, suficientemente influente no tempo, garantindo, pelo conhecimento anterior, a qualidade de homem livre de Luiz Gama? Quem sabe? Se romances fizessem prova, poder-se-ia sustentar a tése com o livro do sr. Pedro Calmon, “Os Malês, a insurreição das senzalas” e apontar para provavel fiador de Gama, a figura do político brasileiro, Angelo Muniz da Silva Ferraz, depois barão de Uruguaiana, aquele mesmo causidico que foi desalmado promotor do processo da rebelião negra de 1835 e que tantos escravos fizera condenar á morte ou “aos 400 açoites”, baseado em papeluchos escritos em lingua hebraica, tidos como comunicações revolucionarias e que, traduzidas hoje, revelam ser apenas simples orações e invocações a Allah, ingenuas e inofensivas.

Mas tanto seria prolongar uma fantasia, sem fundamentação histórica alguma, como veremos que é o livro, no fim deste volume.

A verdade sobre o caso, nunca ninguem a soube e, provavelmente, não a saberá jamais. Permanece apenas incontestavel que Gama conseguiu provar o seu direito á liberdade e nunca mais foi incomodado por isso.

Durara-lhe o cativeiro aproximadamente oito anos e decorrera-lhe relativamente facil. Nem mesmo duro se pode afirmar que fôra, embora doloroso para a sua fina sensibilidade, porque a sorte the dera um senhor severo, mas que “lhe votava estima”. Dentro de sua acerba infelicidade, tivera bem mais fortuna que muitos milhares de negros boçais, que a lei declarava livres e que a justiça da terra encaminhava para as repartições publicas. Deviam servir 14 anos. Lá ficavam toda a vida.

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.
  1. Veja, para o estudo dessas insurreições, Nina Rodrigues — Os Africanos no Brasil, nesta coleção.
  2. O sr. Antonio dos Santos Oliveira é filho de Pedro Antonio Rodrigues de Oliveira, funcionário que, durante muitos anos, ocupou o cargo de porteiro do Forum de nossa Capital, e que foi o primeiro amigo que Gama conquistou em nossa terra. Gama acabava de chegar do Rio. Encontraram-se os dois meninos, que deviam ter pouco mais ou menos a mesma idade, no Largo da Misericordia, nascendo entre ambos uma viva simpatia. Ligaram-se em intima camaradagem, amizade que nunca mais se arrefeceu e que durou até a morte de Gama, sempre com a mesma força e com a mesma lealdade dos primeiros dias. Pedro Antonio teve ocasião de prestar, no Forum, inumeros serviços ao amigo, ajudando-o nos seus processos forenses, em defesa da causa negra.
    O sr. Antonio dos Santos Oliveira que, na sua infancia e adolescência, conheceu Gama, e lhe frequentou a casa, no Braz, foi quem publicou, em 1904, juntamente com o sr. João Rosa da Cruz, a 3.ª edição das «Trovas Burlescas de Getulino.
  3. Cabe aqui relatar o segundo episódio de Gama, narrado pelo mesmo sr. Antonio dos Santos Oliveira. Parece que não foi semente Prado Junior que deu lições a Luiz Gama. Entusiasmado pelos ensinamentos que o joven amigo lhe ministrara, o pretinho resolveu empregar-se como servente ou zelador do conhecido Colegio Isidoro, que ficava na Ladeira Porto Geral. E ao mesmo tempo que servia, estudava, aproveitando todos os minutos de folga que lhe davam as suas tarefas de empregado. Dizem que era infalivel vê-lo com o livro na mão, numa ânsia de aprender depressa, tratando de rehaver o tempo perdido.