O precursor do abolicionismo no Brasil/2.12
O FIM
Luiz Gama não nascera para durar muito. Naquele temperamento de super-emotivo, em que as paixões vibravam com uma singular e enorme ressonancia, o organismo não conseguiria resistir mais longamente aos choques brutais e impiedosos com que a vida o brindara.
Concebido em tempos de angustia e desassocego, por mulher de indole irrequieta e insofrida, trabalhada por mil ansias diversas nos seus mais profundos sentimentos; tendo vivido numa atmosfera de terror, dos cinco anos em diante; padecendo, aos sete, a dôr inenarravel da perda da mãi, que um movimento político lhe furtara para todo o sempre; alanceado, aos dez, pelo horror sem nome de uma situação trágica, quando o pai, fria e perversamente, o encarcerou nas malhas da escravidão; humilhado, depois, por todas as formas de desprezo e de achincalhe que o regime social reservava aos párias nas suas miseraveis condições; coagido, em certo sentido, á disciplina militar, ele que era a rebeldia feita homem; castigado invariavelmente porque tinha brio e coragem e caracter; envolvido, a seguir, durante o resto da existência, como chefe do movimento, nas lutas ferozes, insidiosas, desleais, pela liberdade negra; forçado, por elas, a insurgir-se contra o proprio bemfeitor — magua que devia ter sido atroz para um espirito como o do inolvidavel negro, em quem a gratidão era mais que um culto e quasi uma mistica — obrigado a defender, todos os dias, com a obstinação de um crente, as conquistas de sua raça, para que a vitoria de ontem não se transformasse na derrota de amanhã; amargado e desiludido na sua ideologia política, ao verificar que os homens, no seu namoro com o poder, não recuavam em mercadejar as questões mais santas; vilipendiado, ultrajado, combatido, com a vida perenemente em perigo, Gama não teria a resistência física para prolongar esses embates. Se a cabeça, o conjunto de suas qualidades morais e inteletuais aguentava galhardamente, o organismo cederia por certo.
A sorte adversa, que o escolhera para a provação de todos os sofrimentos, negou-lhe tudo. Recusou-lhe as alegrias das conquistas que vieram de 1884 em diante. Negou-lhe até o direito de ser espetador da maravilhosa derrota de Souza Dantas, o magnifico e admiravel estadista que a monarquia não soube compreender.
Como quasi todas as nossas datas máximas, como a Independência, que em sendo de 1808, nós a festejamos em 1822, a Abolição teve o seu verdadeiro término na moção de 4 de maio de 1885, quando, num gesto insensato, a Camara dos Deputados, derrubou, pela diferença de dois votos, o gabinete de um homem de visão e de largo descortino. E a inconciência partidaria, que, em maio, se recusava a discutir as medidas conciliadoras de um político honesto, com o senso exato das realidades nacionais, acabava aceitando, em setembro, pouco mais ou menos esses mesmos dispositivos, aprovando, sob a orientação de outro chefe, as providencias que se obstinara em não examinar meses antes. Houve, naturalmente, um espanto na opinião pública, espanto que a imprensa, desavisada, interpretou como um arrefecer da campanha abolicionista. A verdade era outra e transpareceu de chofre: refeita do assombro, a opinião pública reagiu, exigindo a libertação em massa, imediata, sem restrições, e foi apertando o cerco contra as últimas resistências, valendo-se daquela atmosfera de coação moral que é comum estabeleça em todos os grandes movimentos coletivos e sentimentais. A honra nacional estava empenhada no certame.
E a sociedade brasileira, purificada e redimida de seus crimes, rehabilitada de seu passado, pôz a Corôa e o Parlamento em estado de sitio. Coagidos pelas circunstancias, sem esperanças de uma sortida honrosa, ambos capitularam.
Aqueles dois votos de diferença, dos quais um era de um deputado republicano [1], e que haviam provocado a queda do Ministerio Souza Dantas, foram o desafio á Nação. Esta, mobilizada, respondera-lhe, em tres anos, extinguindo, num estouro de mar enfurecido, a mancha negra.
Mas, Gama dormia, no cemiterio da Consolação, o sono dos justos.
Minara-o o diabetes. Já em fins de 80, na carta, retro-citada, a Ferreira de Menezes, ele conta que estava sob severo regime médico. E dai, por diante, a molestia foi se agravando.
“Na ultima pagina da vida de um grande homem”, que dentro de pouco transceverei, Raul Pompéa relembrou que Luiz Gama, nos últimos tempos, já não descia as escadas do escritório sem que o amparassem os amigos. “Era uma veneravel ruina”. Só não perdera a alegria. Esta persistia clara, translúcida, inalteravel. Por fim, teve de abandonar o escritório, retido ao leito. Foi crise rapida, em marcha para o desfecho final.
Ao meio dia de 24 de agosto perdeu a fala. Chamaram medicos com urgência. O primeiro que se apresentou foi o dr. Bertoldi, clínico italiano muito conhecido no tempo e amigo de Gama. Depois dele, foi a romaria: compareceram mais de vinte.
Gama caíra em sonolência. Alí pelas 14 horas, voltou momentaneamente e balbuciou uma frase, que não se sabe se referia á propria mãi, que ele longamente procurara, ou ao filho, que a esse tempo estudava na Escola Militar do Rio:
— “Está na Côrte...”
Nada mais disse. Pouco tempo depois expirava.
O enterro do mísero negrinho que se fizera grande homem em quarenta anos de lutas porfiadas, foi o maior de que ha noticia na época. Raul Pompéa que o descreveu, miudamente, no folhetim da “Gazeta de Noticias”, do Rio, edição de 10 de setembro de 1882, não disse tudo. O séquito foi interrompido pelos discursos que se fizeram no trajeto. A cidade inteira participou do luto: o comercio em peso cerrou as portas, e pelo leito das ruas, tanto no centro como nas vias do itinerário, havia folhagens e flores esparsas, tapizando, ao menos uma vez, na vida, o caminho por onde devia passar quem tanto e tão heroicamente sofrera. E nas sacadas das janelas, as tapeçarias ricas se ostentavam como nos dias solenes da Semana Santa, quando passava a procissão do Senhor Morto.
E’ inutil, porem que se queira reconstituir a cena, com dados de reminiscências pessoais, quando Raul Pompéa tem o seu muito relembrado trabalho a respeito, a que muita gente alude, mas que poucos leram. Nem se compreenderia que num livro como este, o relato fiel do autor do “Ateneu” não ficasse entre as suas páginas mais empolgantes. Aí vai ele:
ULTIMA PAGINA DA VIDA DE UM GRANDE HOMEM
Por volta das tres horas e meia do dia 24 entrou-me pela casa um amigo: — Sabes? disse bruscamente, o Luiz Gama morreu!... — O que está dizendo?!... — Morreu... — ... Luiz Gama?! — Serio, tristemente serio, afirmou-me o amigo. Era serio, era verdade. Aquele grande bemfeitor da humanidade não existia mais, aquele enorme coração, que só batia pelos outros, cessára de palpitar; aquela grande alma, feita de todas as nobrezas do caracter, dissolvera-se pelo desconhecido da morte. Eu amava-o. Voltava-lhe a adoração humana que inspiram-me os largos espiritos candidos de desinteresse. O seu passado lendario impunha um respeito amoroso, que eu tributava-lhe, como ás velhas cousas sagradas que lembram-nos uma tradição de sacrificio. tarde tive a grata felicidade de conhecer Luiz Gama. A' primeira vez que viu-me, mandou-me sentar a uma pequena mesa do seu escritorio e ditou-me uma carta. Achei esplendida aquela familiaridade repentina. A historia de Luiz Gama, tão minha conhecida, veiu-me á mente como um raio e combinou-se admiravelmente com aquele rasgo de intimidade. Ao fim da primeira palestra, já o homem chamava-me você. Era adoravel... Eu sentia uma ternura por aquele modo franco e descuidoso, com pretensões á brutalidade, e desmaiando em doçura insinuante, paternal. Gostava daquele rudez granitica, recortada em arestas selvagens, porque sentia cachoeiras pelas pedras, uma cascatinha vitrea e sonorosa. O conjunto cativava-me. Depois, não sei que grandeza admirava naquele advogado, a receber constantemente em casa um mundo de gente faminta de liberdade, uns escravos humildes, esfarrapados, implorando libertação, como quem pede esmola; outros, mostrando as mãos inflammadas e sangrentas das pancadas que lhes dera um barbaro senhor; outros... inumeros... E Luiz Gama os recebia a todos com a sua aspereza afavel e atraente; e a todos satisfazia, praticando as mais angelicas acções, por entre uma saraivada de grossas pilherias de velho sargento. Toda essa clientela miseravel saía satisfeita, levando este uma consolação, aquele uma promessa, um outro a liberdade, alguns dinheiro, alguns um conselho fortificante... E Luiz Gama fazia tudo: libertava, consolava, dava conselhos, demandava, sacrificava-se, lutava, exauria-se no proprio ardor, como uma candeia iluminando á custa da propria vida as trevas de desespero daquele povo de infelizes, sem auferir uma sombra de lucro, entendendo que advogado não significa o individuo que vive dos jantares, que lhe paga Temis; entendendo que deve-se fazer um pouco de justiça gratis. E, com esta filosofia, empenhava-se de corpo e alma, fazia-se matar pelo bem. O heroi... Pobre, muito pobre, deixava para os outros tudo o que lhe vinha das mãos de algum cliente mais abastado; doente, moribundo, encontrava no amago da sua natureza uma reserva instintiva de energia, e ia gastá-la em proveito da justiça e da beneficiencia oculta, avessa á fanfarra das reclames, sublime. Tudo isto conglobava-se-me no espirito, como uma grande esfera de luz, sobre a qual levantava-se a figura nobre, irresistivel do bom Luiz Gama. Havia para ele como que um trono em minha alma. Eu votava-lhe o grande culto das lendas heroicas... Entram-me de subito por casa, dizendo: — Morreu Luiz Gama!...
Estes ultimos dias têm sido esplendidos em São Paulo. A tarde de 24 estava incomparavel. O ceu estava profundamente azul: não havia senão, a bordar o mais remoto horizonte, umas linguetas argentinas de nuvem. Sol a deslumbrar. Vasta tranquilidade pelo espaço.
Saí de casa desesperado, esmagado por uma especie de raiva surda, sufocante, contra esse monstro terrivel que habita não sei onde, o que de vez em quando, estende para fóra a garra e leva-nos um ente querido. Tomei o bonde do Braz. Em caminho, como que serenou a intima tempestade que sufocava-me a garganta e estrangulava-me o espirito. Ao rolar estremecido do bonde, foram-se-me acomodando na mente as idéas que me haviam desabado como rochedos sobre o craneo, no momento da noticia... Então Luiz Gama morrêra... Aquele jovial, aquele folgazão, aquele ameno, com quem eu estivera, não havia tres dias, no escritorio, ouvindo-lhes umas cousas filosoficas e amargas, envoltas em ironias sem veneno, em pilherias desenluvadas, mas justas, a proposito do que das mesquinhezas politicas da terra, que o haviam exilado para o fundo do seu gabinete de advogado; aquele homem morrera... Invadiu-me o animo, nessa ocasião, a incredulidade, irracional, instintiva do horror á morte. Não sei porque, principiei a não crêr. Aquilo era falso, Luiz Gama vivia... Tive vergonha de externar o meu pensamento. Não acreditava... Porque? Onde falta o porque, aí vive o desvario. Tive vergonha. Aquilo era a covardia da vida. Não acreditar era fechar os olhos para não ver o espectro dos tumulos. Refleti, isto é, abri os olhos. Desenhou-se-me então pelo espirito a imagem simpatica do grande homem, alegre, ruidosamente alegre; mas revelando na palidez doentia do rosto, que ia-lhe pelas fontes da vida algum mal terrivel. Lembrei-me de que Luiz Gama já não descia as escadas do escritorio, sem que o amparassem. Ora dava-lhe o braço o seu jovem amigo Brasil Silvado, ora o seu dedicado Pedro; uma vez até, permitam-me que o refira orgulhosamente, uma vez, até eu mesmo dera-lhe o braço. O Luiz Gama dos ultimos tempos era uma veneravel ruina. O descômbramento total figurou-se-me naturalissimo. A cruel verdade. Perto da moradia de Luiz Gama, o bonde parou. Dirigi-me para lá enxugando as lagrimas que me ferviam nas palpebras.
A casa era uma devastação. Sentia-se que por ela havia passado alguma cousa formidavel como a derrota dos ciclones. Não havia um semblante sobre que se não lesse o vestigio da rajada das catastrofes. Choravam os homens como uns covardes, as senhoras pareciam exalar a vida em convulsivos soluços. Os mais rijos sentiam-se acabrunhados... Falar da esposa do finado fôra violar o silencio sagrado que deve rodear os martirios...
Na sala da frente estava o corpo... Lá estava sobre duas mesas aproximadas um grande cadaver, reto e fixo, as duas mãos rijamente cruzadas sobre um largo peito, trajado de negro, coberto a meio corpo por um pobre lençol grosseiro. O perfil do rosto alteava um pedaço de pano em frias saliencias... Levantava-se o lenço e via-se um belo semblante tranquilo como a noite do tumulo, ligeiramente alborisado pelo congelamento do sangue, dois olhos cruelmente cerrados para sempre sobre as mais suaves estrelas de bondade e de esperança, dois labios colados como as palpebras, selados por um ligeiro sorriso ironico sobre as mais ternas consolações de um largo coração. Impressionava a serenidade majestosa daquele morto. Sem aquele sorriso queixoso, que espiava por um canto dos labios, fôra a efigie de um Cristo. — Parece uma imagem, diziam... Estive a olhar longamente para aquela estatua tombada... Do interior da casa, chegava como em lufadas de alegria o gorgeio de muitos passarinhos...
Luiz Gama gostava das flôres... Das flôres e dos passarinhos. Devia gostar tambem das crianças. Essas grandes almas humanitarias evadem-se nas horas vagas para a inocencia. Fartas de lagrimas e de miserias, refugiam-se no convivio das risadas, dos perfumes e dos gorgeios. Passaros, flôres e crianças, a fraqueza sublime dos fortes... A casa de Luiz Gama estava cheia de gaiolas; mais de vinte contavam-se. Um cardeal de estimação, muitos canarios... A’ camara mortuaria toda a passarinhada enviava o pipilar inocente e ruidoso... Pelas janelas da sala de jantar enfiava-se a vista para um grande jardim... Logo ao entrar pelas ruasinhas margeadas de grama demoravam os olhos sobre centos de parasitas, pendentes de longos fios de arame, ostentando lindas flores rubras, azues, roxas e umas folhas alongadas como laminas de punhais, ouu arredondadas como linguas, muito musgo envolvendo as parasitas, velhas grades de arame envolvendo canteiros preciosos; grandes tinas com plantas de fina especie, uma delas cheia d'agua alimentando alguns feixes de uma parasita dos brejos... — Aí vê-se por toda a parte o dedo de Luiz Gama, disseram-me. Mais para o interior do jardim, avistavam-se tapetes de violetas, roseiras, curvando-se em arco sobre quem passava, lirios abertos tristemente para o ceu como labios queixosos... Resplendia uma tarde divina. O sol, ainda fóra, sacudia sobre o jardim, uma chuva de puro ouro; chegava a viração da tarde, os arbustos inclinavam simultaneamente de uma para outra banda a cabeça como fakirs em oração. Os pecegueiros erguiam vaidosamente centenas de varas como cétros, literalmente forrados de flôres do mais fino rosa. Uma alegria vasta, geral pousava alí pela romaria das jaboticabeiras, ao longo das palmas de bananeira; enrolava-se como as serpentes do Tirso de Kermes pelas flechas dos pecegueiros e pelos galhos das amoreiras salpicadas de frutos. Ali, á luz daquele ceu cristalino e setinoso, sentia-se a impressão dulcissima da languidez harmoniosa, biblica do Eden. De longe vinham gargalhadas frescas dos meninos; dos arvoredos vinham chilros festivos de passarinhos. Uma orgia franca de prazer... Voltaram-me aos olhos violentamente as lagrimas. Aquelas aves, aqueles meninos e aquele pomar não sabiam que morrera Luiz Gama... A cruel alegria dos inconcientes... Não mais viria o amigo daquelas flôres e o cultor daquelas arvores visitá-las, ao amanhecer, nem assistir naquele pomar as agonias da tarde longa do estio... E tudo sorria!... Tudo aquilo lembrava-me o Eden, sim, mas o Eden abandonado.
Estava marcado o dia seguinte para o saímento.
As 6 horas da manhã, fui ainda uma vez visitar o corpo do meu adorado Luiz Gama.
Rompera um dia, como raros dias de São Paulo. A manhan, ligeiramente fria, impregnava-se-me pelos poros, como um banho de alegria. Eu estava, porem, refratario á manhã. Caminhava triste, refletindo na catastrofe que significava a morte de Luiz Gama. Lembrava-me que me haviam mostrado na vespera, em casa do morto, uma pequena guarnição de tijolos com que Luiz Gama andava cercando os alegretes do jardim... A guarnição estava em meio... Eis um trabalho do homem, que fica por concluir, observam-me... Eu refletia que, como a guarnição dos alegretes, uma outra obra de Luiz Gama ficara em meio, transformada em fuste partido para adornar-lhe o tumulo, — o sonho de todos os seus dias: a abolição. Eu procurava um soldado da sua força, queria espantar do espirito o meu desanimo. E só me aparecia a desoladora imagem da coluna truncada... Depois, sem consolar-me, resignava-me com a esperança de que o momento historico é muitas vezes a razão de ser de certos homens. Antes de chegar á casa do morto, encontrei-me na estrada do Braz com uma pessoa da familia.
— Já por aqui? disse-me.
— Vou vê-lo ainda uma vez...
— Eu vou á cidade trocar a tampa do caixão... Esta é pequena. E indicou-me um individuo que se aproximava, tendo á cabeça uma tampa de esquife, com os galões fulgurando ao sol... Eram os preliminares do saímento.
Já se havia revestido a jovial morada da tristeza mercenaria dos aparatos funebres. Um brutal reposteiro negro fechava lugubremente a porta. A sala ardente ostentava umas largas fachas de fazenda preta agaloada de amarelo, distendidas do teto para o chão, na sua convencional seriedade lugubre. No meio da sala havia uma pequena eça, forrada de negro e dourado; ao fundo um singelo altar. No altar havia, enfiados como silenciosos guardas, um crucifixo e seis velas; sobre a eça jazia um longo esquife listado de ouro, cercado de outras seis velas. Espessa penumbra flutuava no ar; mal se via, atravez de umas estreitas frinchas das janelas, o dia brilhando lá fóra. Dentro daquela sala, julgava-se a gente encerrada num grande esquife quadrado, ou em alguma espaçosa sepultura. Desgostava mais do que entristecia. Se o gosto dos mortos se consultasse, Luiz Gama quizera que o seu corpo fosse bucolicamente estendido ao ar livre, á sombra de uma bela arvore cheia de passarinhos e peneirando flores, guardado por alguns bons amigos, cercado da surdina longinqua, indistinta da natureza viva e selvagem... Porque se havia de privar aquele pobre morto da claridão generosa daquela manhan? Eu fui a uma das janelas e abri-a um pouco. Um raio de claridade pura entrou pela sala e foi até o esquife, como um menino inocente e curioso. Exatamente nessa ocasião, invadiram o recinto mortuario um bando de meninas que iam á escola, com as suas ardosias velhas e os seus cadernos enegrecidos e as caixanhas de costura á ilharga... Examinaram o morto e retiraram-se logo, caladas e timidas. Depois entraram sucessivamente amigos do finado, negros, que ele libertára, vizinhos que o prezavam. Todos, com um raminho de alecrim que havia por perto num copo, respingavam agua benta sobre o cadaver. Um deles acercou-se da eça e descobriu o rosto do morto. A fisionomia calma não perdêra o seu ar imponente. Apenas sentiu-se como que um resecamento da pele. Na vespera, um escultor fizera em gêsso, um molde do semblante do cadaver. Nota-se tambem um ou outro vestigio do gesso. No mais, era a mesma aparência veneravel, distinta, serena, marmorea... Assim pelas tres horas, começou a atividade precursora do saimento. Principiou a encher-se de gente a casa. Na rua parava-se, a olhar para o reposteiro negro da casa enlutada. Fechou-se o caixão. Momentos antes, houvera uma cena de que a linguagem não póde dar conta: — despedida da viuva. Atroz!
E a tampa do caixão caía cerrando-se sobre o defunto com o ruido de uma boca que mastiga. Dentro de poucos minutos, o povo, aglomerado diante da casa, viu levantar-se o reposteiro negro e estender-se para a rua um longo esquife, coberto de luzentes listrões de ouro. Depois do esquife, precipitou-se uma multidão numerosa. Todos de preto. Era o enterro. Devia fazer-se a pé. O cemiterio estava longe, no extremo oposto da cidade, para as bandas da Consolação. porem, que o corpo do amigo de todos, como chamavam a Luiz Gama, fosse por todos um pouco carregado. A consideravel distancia que separa os dous arrabaldes, devia ser percorrida a pé, para que a muitos fosse possivel a honra de levar aquele glorioso cadaver. Ao saír da casa, pegaram nas argolas Gaspar da Silva, do Centro Abolicionista, e outros amigos do Gama, como o Dr. Antonio Carlos, o Dr. Pinto Ferraz, o conselheiro Duarte de Azevedo... Em roda do feretro apertava-se a multidão, empenhando-se por tomar as alças. Havia de prestar-se aquela grande reliquia uma homenagem ardente. Para diante caminhava uma porção imensa do povo; atraz do prestito, desfilava uma enorme quantidade de carruagens, seguindo a passo. Entre as carruagens, via-se o coche funebre. Vasio. Era um prestito respeitavel. Em meio do caminho do Braz, uma banda de musica, ali postada, saudou a aproximação do feretro com uns acordes lagrimosos, umas notas surdas que pareciam chegar do horizonte, ou das nuvens. Ritmados pela cadencia daquela musica, foram-se os passos da multidão pela estrada acima. Um silencio mortal rodeava o finado, sendo apenas interrompido pelos que pediam que lhes deixassem tambem carregar o esquife. Por cima do prestito flutuavam os esplendores de uma tarde olimpica. O sol batia de rijo sobre as cabeças descobertas e dourava a poeira espessa que levantava-se da estrada. Para longe fugiam os campos do Carmo, muito verdes, rasgados em varios pontos pelos extravasamentos do Tamanduateí, alagados em grandes espelhações cintilantes. Da linha do horizonte erguiam-se colunas azues de fumaça, que dissolvia-se pela transparencia imaculada da atmosfera. Em frente alinhava-se, como em cerrado pelotão, a casaria da cidade. As habitações sobrepostas pelos outeiros de São Paulo, pareciam apertar-se para espiar o prestito. As torres, satisfeitas da sua estatura, olhavam, sem esforço, por cima dos telhados. E a procissão avançava. E a banda de musica ia desfolhando adiante do esquife as suas harmonias roxas e soluçantes. Na ladeira do Carmo, a irmandade de Nossa Senhora dos Remedios, para cujos fins de beneficiencia o defunto concorrêra um dia, veiu encontrar o enterro, com as opas de azul e branco e suas enormes velas, grossas como cajados. Ao entrar na cidade, uma comissão de seis membros do Centro Abolicionista de São Paulo tomou as alças do caixão. A cidade estava triste. Inumeras lojas tinham as portas fechadas, em manifestação de pezar; as bandeiras das sociedades musicais e beneficentes da capital pendiam a meio mastro. Apinhava-se povo nos lugares por onde devia passar o enterro. Ás janelas acotovelavam-se as familias. Em alguns pontos viam-se pessoas chorando. Ia sepultar-se o amigo de todos. — Nunca houve cousa igual em São Paulo, dizia-se pelas esquinas. E o nome de Luiz Gama, coberto de bençãos, corria de boca em boca. No posto de honra das alças do esquife sucedia-se toda a população de São Paulo. Todas as classes representavam-se ali. Reparou-se particularmente num contraste estranho. Em caminho da Consolação viu-se Martinho Prado Junior, o homem que quer a introdução de escravos na provincia, a fazer pendant com um pobre negro esfarrapado e descalço. Um e outro carregavam orgulhosamente, triunfantemente o glorioso caixão. Eu perguntei a mim mesmo se Martinho Prado era um escravocrata sincero.
O esquife partindo do Braz ás 4 horas e 5 minutos, ás 5 1/2 ainda estava longe do cemiterio. E ninguem se fatigava. A multidão não rareava. O sol, muito proximo do horizonte, varria a rua com mil feixes rasteiros de luz. Um cone deslumbrante de raios feria os olhos da multidão e lampejava nas facetas douradas do caixão. Meia hora mais tarde passava o funebre cortejo por entre os pilares do portão do cemiterio. O sol se fôra pelo horizonte abaixo... A luz do dia trepava pelas arvores espetrais do Campo Santo, para extinguir-se na profundidade do ceu. A banda de musica misturava com as sombras do crepusculo a tristeza das suas melodias. Ás 7 horas, entrava o cadaver para a capelinha do cemiterio rodeando-o sempre uma multidão compacta, no meio da qual se confundiam os membros do Centro Abolicionista, da Caixa Emancipadora Luiz Gama, da Loja America, de que era veneravel o finado, da Loja Sete de Setembro, da Sociedade Quatorze de Julho, do Club dos Girondinos, e outros.
Na capela, ficaram depositadas as corôas oferecidas pelo Centro Abolicionista, pela Gazeta do Povo, pela imprensa portugueza, pelo comercio de São Paulo, pelo Club Ginastico Portuguez, pela Academia de Direito...
Da capela, conduziu-se o feretro para a sepultura. Houve aí uma cousa solene que se deve registrar. Colocára-se o caixão á beira da cova. A multidão, que invadira o cemiterio, rodeiava o sepulcro, enchendo uma area espaçosa. A lua, que principiava a fazer sentir os seus clarões, banhava de azul a multidão, projetando no fundo do sepulcro aberto a sombra dos circunstantes, como se lhes escrevesse lá dentro o memento homo... Veiu um padre. Resmungou umas frases em latim, sacudiu agua benta, e retirou-se. — Quando os coveiros iam a descer para o tumulo o cadaver, um homem disse: — Esperem!... O Dr. Climaco Barbosa (era o homem) ergueu então a voz. A voz soluçava-lhe na garganta. Disse duas palavras, sem retorica, sem trópos, a respeito do grande homem que ali jazia caído... Lembrou aos presentes que aquele fôra Luiz Gama... A multidão chorou. Então, o orador reforçou a voz, reforçou o gesto: e intimou a multidão a jurar sobre o cadaver, que não se deixaria morrer a idea pela qual combatera aquele gigante. Um brado surdo, imponente, vasto, levantou-se no cemiterio. As mãos estenderam-se abertas para o cadaver... A multidão jurou. [2]
Passaram os coveiros dous laços ás extremidades do esquife e o desceram para o fundo da sepultura...
Eu olhei para a noite. Estava calma e estrelada. Com o espirito perdido em meio da magestade serena do espaço, fui-me encaminhando para casa.
Sobre minha mesa achei um jornal do dia. Trazia a noticia do passamento de Luiz Gama: “Faleceu ontem o cidadão Luiz Gonzaga Pinto da Gama, conhecido advogado desta cidade.” Só. Encolhi os ombros. E’ preciso que, mesmo nos momentos épicos, apareça uma ponta da miseria humana.
São Paulo, 3 de setembro de 1882,
Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.
Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.
- ↑ A ogeriza de Gama, inquisilando-se contra o escravagismo disfarçado de muitos republicanos do tempo, crivando-os de setas e de piadas, não era, como se vê, sem razão. O voto do republicano, dado a favor de Dantas, haveria empatado a partida. E naquela legislatura não eram mais os liberais e os conservadores que se defrontavam. Eram os escravocratas e os abolicionistas que se mediam. Os republicanos não podiam deixar de estar com Souza Dantas, como estiveram os outros dois dos tres representantes que a nação mandara ao Parlamento.
- ↑ Neste ponto, o sr. Antonio dos Santos Oliveira discorda de Raul Pompéa. Para aquele quem fez o juramento foi Antonio Bento. E a tradição oral sustenta esta versão, possivelmente porque foi o ex-juiz municipal de Atibaia quem o cumpriu á risca, levando a campanha á vitoria definitiva.