A BONDADE DE LUIZ GAMA

Paralelo a seu odio, esse sentimento violentissimo, feroz, quasi brutal, que ardeu numa chama inextinguivel, durante toda a sua vida, contra os senhores, “contra os salteadores da liberdade humana,” Gama teve outro: foi um assombro de bondade.

Sua vida inteira está marcada pelos gestos espontaneos dessa sua qualidade insigne. Veja-se, em primeiro logar, a sua coragem estôica, em que se ha uma infinita piedade, ha tambem muito de heroismo, negando-se sempre a nomear o homem que o vendeu, cobrindo-lhe o delito com o manto de sua imensa misericórdia.

Atente-se, depois para a capacidade desse homem, desde os seus tempos mais humildes, em fazer amigos entre as figuras de maior relevo social e inteletual da cidade. Esse seu poder de atrair simpatias só rivalizava, do outro lado, do lado abolicionista, com a sua facilidade de provocar inimizades.

Em 1859, Gama já conquistára o afeto de José Bonifacio, o Moço, que seus biografos não se cansam de apontar como espírito retraído e dificil ao contato da intimidade. Em sua primeira edição das “Trovas Burlescas” já figuram tres poesias do sobrinho do Patriarca: “Saudades do Escravo”, “Calabar” e “O Tropeiro”. [1]

Na edição seguinte, esse numero cresce notavelmente, aparecendo mais as seguintes composições: “A Rodrigues dos Santos”; “Enlevo”; “A Garibaldi”; “Teu nome”; “Prometeu”; “Saudade” e “Olinda”. Isso quer dizer que apezar da observação de Gama, no “Prefácio”, dizendo haver lançado mão das poesias de José Bonifácio, sem autorização deste, que lhas oferecera sem visar publicá-las, o gesto não desgostára o amigo, tanto assim que os trabalhos do Andrada tinham subido de tres para dez, na segunda fornada do livro. E prova mais que a camaradagem era suficientemente estreita para que Gama fizesse o que fez, sem licença prévia do amigo.


Os testemunhos dos contemporaneos, que com ele privaram, são unanimes em frizar-lhe esse aspeto da personalidade: Raul Pompéa, Rui Barbosa, Brasil Silvado, Alberto Torres, Americo de Campos...

Embora elevado ás culminancias da fama, áquelas alturas que o nosso país comportava, podendo ter sido tudo o que lhe aprouvesse, bastando-lhe, para tanto, não direi recuar nas suas idéas, mas transigir apenas, viveu sempre pobre. Os seus proventos não estavam em proporção com o seu trabalho e sua clientéla porque esta se compunha de gente que precisava não só de sua capacidade profissional, mas tambem do socorro de sua bolsa.

Gama não libertava apenas os escravos, ajudava-os, depois, longamente a se manterem em posição de defender a liberdade conquistada.

Em seu escritório costumava haver dois caixotes com moedas do cobre e níquel, destinadas a acudir os pretos e mendigos que o procuravam nas horas de advocacia. O aspeto da visita denunciava-lhe os intuitos:

— Tire aí no caixote, dizia Gama.

E depois que o hospede se havia servido, era comum a interrogação do abolicionista:

— Quanto tirou?

— Dois gintens, siô.

— Homem, você é burro. Nem sabe aproveitar. Pois aí no caixote, tem níquel... [2]

Aos sabados, aquela alma de São Francisco a quem os trópicos bronzearam a pele, costumava fazer distribuição de dinheiro ás familias necessitadas. Punha as notas que suas posses permitiam, dentro de envelopes, reunia todo o material numa maleta e lá ia ele á sua prática da caridade. E nesse dia, desaparecia de tal forma que ninguem era capaz de dar noticias do tribuno. A própria esposa andou ás vezes desconfiada com essas fugas inexplicaveis e hebdomadárias. E’ que Gama escondia a prática e sabia respeitar o constrangimento dos necessitados envergonhados.


Conta-se dele o episodio da Condessa de *** Esta nobre dama andava em demanda com o marido, tendo tido necessidade de afastar-se do lar. Viajara para São Paulo, vinda do Rio, recomendada a Luiz Gama, a quem viera pedir tomasse a peito a sua causa. Gama ouviu-lhe o relato e prometeu fazer o que fosse possivel, dentro dos recursos legais. Depois, perguntou-lhe em que hotel ia hospedar-se afim de ter com ela facilidade de comunicar-se.

— Hotel? — exclamou a condessa — Pois se eu não tenho nem onde morar.

— Ah! não tem para onde ir? Pois, vamos já arrumar isso. A senhora vai me dar licença para que tome providencias.

Chamou o seu fiel criado, o Nicolau, mandou que arranjase imediatamente um carro de praça e conduzisse a Condessa á sua residência, avisando a Nhanhã (era o apelido carinhoso que ele dava á esposa) que a hospede ia ficar residindo lá e que de tarde explicaria.

E de fato, a Condessa morou na casa de Gama algum tempo.

Mais tarde, regularizados os seus negocios, a Condessa costumava dizer, abertamente, que “Luiz Gama, sósinho, valia mais que todos os barões do Imperio” [3].

Gama casou-se com Claudina Fortunata Sampaio, uma crioula da familia Arruda Sampaio, de Campinas, criatura boa e meiga, que se identificou á vida perigosa do marido e que foi sua companheira de todas as horas, carinhosa, solícita. delicadíssima. Do consorcio só houve um filho, Benedito Graco Pinto da Gama, que estudou na Escola Militar, chegou ao posto de major de artilharia do Exercito e ocupou, durante muitos anos, o lugar de comandante de nosso corpo de bombeiros. [4]

Esses dois aspetos da individualidade de Luiz Gama, a sua bondade, de um lado, o seu odio a todas as formas de opressão, de outro, fazem a gente refletir em como conseguiu ele realizar o milagre do equilibrio entre esses dois sentimentos antagônicos, ele que tinha sobrados motivos para ser um revoltado á maneira dos cangaceiros, dos bandidos da Córsega e de todos os injustiçados do mundo.

Entretanto, o seu caso psicologico tem explicação facil. Aos vinte anos, quando mal acabavam de surgir os fatos que fariam nascer a lei de Euzebio de Queiroz, Gama encontrou-se, talvez sem o saber, numa encruzilhada de sua existência. Trazia, como o Fausto, de Goethe, duas almas adversárias, que se adivinham e se pressentem em toda a sua obra social: o odio inextinguivel contra a opressão da raça branca, que lhe roubara a mãi, que o fizera escravo contra toda a razão e contra toda a moral, um odio que o havia de ter martirizado até quando, por ser baiano, o refugaram para pagem e lhe impuzeram a miseravel condição posterior; e uma bondade quasi angélica, inata, congênita, tão espontanea e nativa que ele, em toda a sua vida, nunca a pôde esconder. A primeira alma vinha-lhe, sem duvida, como herança materna. Ele mesmo confessa as qualidades de rebeldia e de inconformismo de Luiza Mahin. A outra só seria imputavel ao caracter do pai, o estroina, jogador, amante de súcias e de farras...

Ingressando para a Polícia, acoutando-se nas hostes que mantinham a autoridade, ninguem sabe que homem brotaria dali e qual das duas qualidades fundamentais de seu temperamento sobrepujaria a outra, nos embates da luta quotidiana, mais dificeis de vencer que todos os momentos supremos dos homens. O gesto de inclinar-se para a Força Publica poderia fazer supor nele a supremacia dos instintos belicosos a procurar uma válvula comoda para a satisfação de seus odios. No cumprimento dos seus deveres de mantenedor da ordem, encontraria sempre a maneira de desalterar a sua raiva impotente contra a sociedade cruel...

Salvou-o Furtado de Mendonça, tomando-o como seu ordenança, pondo-o sob sua proteção e franqueando-lhe a sua biblioteca.

E aquela biblioteca realizou o milagre da conversão de Gama. O grande negro encontrou, no estudo do Direito e da jurisprudencia, a formula de equilíbrio que o reconciliaria comsigo mesmo e com a sociedade. O Direito satisfazia-lhe, ao mesmo tempo, o seu odio insopitavel contra todas as formas de coação e de violência, permitindo-lhe que as agredisse e assaltasse dentro dos quadros legais, e dava-lhe todos os prazeres e todas as alegrias de sua bondade ingênita, consentindo-lhe exercê-la sem desvio das regras que a sociedade homologara. A Justiça, cuja sêde avassaladora e absorvente ele sentia no mais profundo de sua alma, fá-lo-ia o heroi e o santo que conseguiu ser. Elevava-o a super-homem, permitindo-lhe a possibilidade de imitar Jesus Cristo, postado á entrada do Templo e vergastando, com a violência de um Deus, os vendilhões que o prostituiam.

E quando, na ardorosa peleja de quasi trinta anos, os sofrimentos se exacerbariam pelos contínuos prélios em que os interesses pecuniários, por ele fundamente feridos, revidavam em ataques crueis, injustos, dolorosos, lacerantes, o equilíbrio e a serenidade a que aquele admiravel espírito havia atingido, pairando na região da luz, da bondade e da alegria, tinham a sua suprema válvula de segurança na sua veia satírica, que se vingava, numa estrondosa gargalhada, das dores e das maguas que os outros lhe causavam.

Era sempre a biblioteca que estava atuando. Recheiando-o de cultura e de ensinamentos, deu-lhe tambem a elegancia moral, a finura, o discernimento, a capacidade de distinguir e, principalmente, de compreender, que toda cultura profunda pressupõe.

E fazendo dele um homem notavel, dos mais ilustres do tempo, foi capaz de projetá-lo, na história do Império, como o verdadeiro precursor da campanha negra, como a figura máxima da abolição no Brasil.

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.
  1. Reporto-me à informação de José Feliciano, no artigo retro citado do «Estado de São Paulo». Não possuo a 1.ª edição das «Trovas». Apezar de meus esforços, apenas consegui a segunda e a terceira.
  2. Não se extranhe o epíteto. Gama era desbocado e de lingua sôlta. Para os pretos que ele protegia e que costumavam saudá-lo: — Sancristo |... Gama respondia invariavelmente: — Deus te faça branco, a começar pelo ..»
  3. Informação do sr. Antonio dos Santos Oliveira.
  4. Benedito Gama casou-se com D. Maria Vidal, senhora que ainda vive. O casal não teve filhos, mas Benedito Gama legitimou uma filha, que ainda reside em São Paulo.