O MOTEJADOR DA CÔR DA PELE

A questão da pigmentação da epiderme, que tantos pruridos levantou em certas classes nacionais, sem nunca haver conseguido formar, realmente, um preconceito de raça, teve em Gama um impenitente zombeteiro, que dela chasqueou em tom de bom humor. Testemunha ocular e fruto, ele mesmo, da intensa mestiçagem que se operou no Brasil, através das senzalas, sentindo o ambiente liberto de prejuizos autênticos, porque o português, antecipando-se, por uma questão econômica e quiçá se pelos pendores atávicos, ás conclusões da ciência, nunca trepidou em manter vivo e intimo o contacto com a negra e com a india e nunca teve pelos bastardos, nascidos desse conubio, antipatia vincada nem desprezo invencivel, Gama deixou, em ditos e versos irreverentes, a sua descrença nas linhagens arianas puras, mesmo nas familias de brancos que tres séculos depois da colonização, se jatavam da imaculada alvura de sua pele, proclamada imune de qualquer mescla bárbara.

Na sua citada Carta, ao rememorar os seus antecedentes baianos, dissera esta perfidia sorridente, falando do homem a que devia a existência: “Meu pai não ouso afirmar que fosse branco, porque tais afirmações, neste país, constituem grave perigo perante a verdade, no que concerne á melindrosa presunção das côres humanas...”

Nem o pai, com tantos titulos de fidalguia para aspirar á classificação de leucoderma, na rigorosa classificação de Roquete-Pinto, escapou á sua desconfiança. O homem parecia branco e tinha ascendência que autorizava a suposição... Mas quem vai lá saber, nesta terra, onde pretos carregados nas tintas da mãi-natureza, acabam tendo bisnetos de cabelos louros e olhos azues?

Pelo que lhe tocava a ele, individualmente, nunca teve o menor pejo ou menor constrangimento em confessar-se negro e em alardeá-lo mesmo. Conservam-se, pela tradição oral, várias anedotas, autênticas, algumas até já transpostas para os anais da biografia, que provam que Gama não dava importancia nenhuma a essa insignificante particularidade da somatologia dos individuos.

Uma delas, que se contou e se reconta a muido, e que nunca apareceu com o seu interlocutor perfeitamente identificado, nem com o motivo verdadeiro da pendência, é a seguinte:

Luiz Gama e o cel. Teodoro Xavier se haviam inamistado porque o baiano, na sua função de advogado dos escravos, conseguira, por intermedio da justiça pública, libertar um negro de propriedade do coronel, provando que aquele se encontrava ilegitimamente reduzido ao cativeiro.

O senhor não se conformara com a decisão jurídica e viera pela imprensa (se o informante não se engana, parece-lhe que foi pela “Província de São Paulo”) [1] — e puzera--se a descompor o patrono do liberto, chamando-o repetidamente de bode. O apodo não melindrava Gama, que vivia a fazer ditos picantes acerca de sua qualidade de mestiço. Mas tanto insistiu o outro na descomponenda, que o abolicionista resolveu desapontar o adversario. Encontrando-o na rua, achegou-se-lhe, dizendo que precisavam desmanchar uma diferença.

O cel. Xavier supondo que era um convite para as vias de fato, irritou-se e perguntou-lhe em tom violento:

— Pois você já não me furtou o negro? Ainda quer desmanchar a diferença? Diferença de que, seu bode?

— Justamente essa — replicou calmamente Gama — Eu não sou bode, eu sou negro. Minha côr não nega. Bode é V. Exa., que pretende disfarçar, com essa côr clara, o mulato que está por baixo.”

Ha outra perfeitamente averiguada, [2] e que tambem se conta, ás vezes, mas sem atribuir a paternidade ao verdadeiro autor.

Numa audiencia em que Luiz Gama, como advogado, teve necessidade de ouvir o Brigadeiro Carneiro Leão, homem que gostava de se referir com visivel prazer á sua aristocrática ascendência, e que fazia, sempre que calhava, e mesmo quando não calhava, alusões ao seu brazão, o negro interrompeu o depoente para esclarecer um ponto, da seguinte forma:

— Então, o primo afirma que viu...

— Quem é o primo? — indagou o brigadeiro, estupefato com aquela falta de respeito.

— O senhor, naturalmente, — insistiu Gama.

— Mas, primo de quem?

— Ora, meu, de certo.

— Seu primo? — explodiu o fidalgo num assomo de cólera. Mas baseado em que parentesco?

— Homessa! concluiu risonho o advogado. — Eu sempre ouvi dizer que bode e carneiro são parentes. E parentes chegados”.

Ha ainda outras, porque nesse gênero, algumas entrevistas, bem conduzidas, com pessoas que se recordam do grande negro, ou que conviveram com outras que o conheceram, dariam farta mésse de piadas.

Gama e Antonio Carlos eram amicissimos e tinham a banca profissional na mesma casa, [3] um sobradinho da rua Quinze de Novembro, pegado ao atual Café dos Andes. O baiano vivia a chamar Antonio Carlos de “negrinho”, fazendo alusão a ser ele, embora branco, de tez ligeiramente amorenada.

Certa ocasião [4] em que o governo imperial mandara proceder ao recenseamento demográfico, o encarregado do serviço subiu ao escritorio em que ambos trabalhavam. Só encontrou o Andrada e dele tomou os apontamentos necessários. Quando voltava, encontrou o preto, na porta terrea, dispondo-se a subir. O recenseador explicou-lhe ao que vinha, informando-o de que o procurara no escritório, e pediu the fizesse o obsequio de lhe fornecer os dados ali mesmo. Gama não se recusou e foi respondendo a todas as perguntas do formulário. Quando chegou á pergunta da côr, o advogado dos escravos indagou:

— Que côr o Antonio Carlos registrou?

— Branca, respondeu o funcionario.

— Branca? — espantou-se comicamente Luiz Gama. — Pois, si aquilo é branco... ponha branco tambem para mim.

E nessa estatística, o advogado negro figura como “caucásico”.

Ora, um homem, com essa disposição de espírito, não se pouparia a si mesmo, no assunto, nem pouparia aos outros. E as “Trovas Burlescas” estão cheias de chistes e pontas, em que o primeiro zurzido é ele mesmo:

«Quero que o mundo me encarando veja
um retumbante «Orfeu de carapinha»,
que a lira desprezando, por mesquinha,
ao som descanta de marimba augusta».

E na comemoração poetica a que se vai lançar, pelo livro inteiro, celebrando os casos e homens e cousas notaveis de seu tempo:

«Nem eu proprio á festança escaparei.
Com fóros de africano fidalgote,
montando num Barão com ar de zote,
ao rufo do tambor e dos zabumbas,
ao som de mil aplausos retumbantes,
entre os netos da Ginga, meus parentes,
pulando de prazer e de contentes,
nas dansas entrarei d’altas caiumbas».

E escrevendo no album de um amigo, que lhe pedira o autógrafo, escusa-se de não ser capaz de produzir cousa que valha, porque afirma, referindo-se a si mesmo:

«Ciencias e letras
não são para ti.
Pretinho da Costa
não é gente aqui.»

Os outros, os que tinham antepassados de côr escura e queriam aparentar prosápia ilustre na côr, inventando uma superstição que o meio não autorizava, esses teriam, sem duvida, o seu quinhão de boas farpas. E com muito mais motivos, para quem não se poupava individualmente:

«Mulato esfolado
que diz-se fidalgo,
porque tem de galgo
o longo focinho,
não perde a catanga
do cheiro falace,
ainda que passe
por brazeo cadinho.

E si eu que, pretécio,
d’Angola oriundo,
alegre, jocundo,
nos meus you cortando;
é que não tolero
falsarios parentes,
ferrarem-me os dentes,
por brancos passando.»

Idéa que ressurge depois, como inseto que se não cansou de ferrar e que guardou ainda bastante ácido corrosivo no acúleo implacavel:

«Si os nobres desta terra empanturrados,
em Guiné têm parentes enterrados,
e, cedendo á prosápia ou duros vicios,
esquecer os negrinhos seus patrícios;
si mulatos de cor esbranquiçada
já se julgam de origem refinada,
e, curvos á mania que os domina,
esquecem a vovó, que é preta mina:
não te espantes, ó leitor da novidade,
pois que tudo, no Brasil, é raridade.»

Afranio Peixoto, estudando, na “Fruta do Mato”, a psicologia do mulato, afirmou que ele “odeia o negro, que já não é; e o branco, que não chegou a ser”. Esse singular, mas compreensivel estado de alma, que pareceu ser um fenomeno comuníssimo na sociedade brasileira, logo que os mestiços começaram a ascender na escala social, empurrados para cima pelos seus dotes e qualidades inteletuais, dá a impressão de que se exteriorizou principalmente nessa ânsia de figurar como branco, num ambiente onde só o branco valia. E a obsessão dos mulatos, porisso mesmo que na fase inaugural de sua valorisação social — hoje muito diminuida, uma vez que o preconceito de côr não tinha por onde lançar raizes — serviu de pábulo ao riso inextinguivel de Luiz Gama.

Para ele que campava de descendencia fidalga, pelo lado paterno, e de estirpe real, pelo lado materno [5], luxos todos que não lhe adiantaram quando a brutalidade da vida lhe infligira o tremendo castigo da servidão sem esperanças, e de que só o libertara a propria inteligência, só esta valia para o seu fôro intimo. Todas as mais preocupações humanas, que se podiam incluir entre as estólidas manias de simples “figuração”, isto é, dinheiro, importancia, prestigio social, prosápia de boa ralé, apenas se poderiam aproveitar para argumentos de sátiras e burletas. E aqui está a prova no “Soneto”, feito sobre o mote: “E não pôde negar ser meu parente”.

«Sou nobre e de linhagem sublimada,
descendo, em linha reta, dos Pegados,
cuja lança feroz, desbaratados,
fez tremer os guerreiros da Cruzada!

Minha mãi, que é de proa alcantilada,
vem da raça dos reis mais afamados»
— blasonava, entre um bando de pasmados,
certo parvo de casta amorenada.

Eis que brada um peralta retumbante;
— Teu avô, que era de cor latente,
teve um neto mulato e mui pedante!

Irrita-se o fidalgo qual demente,
trescala a vil catinga nauseante...
E não pode negar ser meu parente» |

Com essas credenciais de seu pensamento, tão reiteradamente expresso, não admiraria ver repontar, de repente, no meio do volume das “Trovas Burlescas”, a imperecivel vaia do “Quem sou eu?” que se vulgarizou, com o nome de “Bodarrada”, pelo Brasil inteiro, como a melhor farçada de Luiz Gama, e que lhe deu o direito, reconhecido por Silvio Romero, de ingressar no panteon dos poetas satíricos da nacionalidade.

E’ muito citada a composição, é, a rigor, a unica que se transcreve do insigne negro, mas não posso deixar de a trasladar mais uma vez. Na sua biografia não póde faltar a peça que lhe deu a nomeada de literato. Ei-la:

QUEM SOU EU?

”Quem sou eu? que importa quem?
Sou um trovador proscrito,
Que traga na fronte escrito
Esta palavra — Ninguém! —


(A. E. ZALUAR — Dôres e flôres)



Amo o pobre, deixo o rico,
vivo como o tico-tico;
não me envolvo em torvelinho:
vivo só no meu cantinho:

da grandeza sempre longe
como vive o pobre monge.
Tenho mui poucos amigos,
porem bons, que são antigos,
fujo sempre á hipocrisia,
á sandice, á fidalguia.
Das manadas de Barões?
Anjo Bento, antes trovões.
Faço versos, não sou vate,
digo muito disparate,
mas só rendo obediencia
á virtude, á inteligencia:
eis aqui o Getulino
cujo pletro anda mofino.
Sei que é louco e que é pateta
quem se mete a ser poeta;
que no século das luzes,
os birbantes mais lapuzes,
compram negros e comendas,
têm brasões, não — das Calendas,
e, com tretas com furtos,
vão subindo a passos curtos;
fazem grossa pepineira,
só pela arte do Vieira,
e com geito e proteções,
galgam altas posições!
Mas, eu sempre vigiando,
nessa sucia vou malhando
de tratantes, bem ou mal,
com semblante festival.
Dou de rijo no pedante
de pilulas fabricante,
que blasona arte divina
com sulfatos de quinina,

trabusanas, xaropadas,
e mil outras patacoadas,
que, sem pingo de rubor,
diz a todos que é DOCTOR!
Não tolero o magistrado,
que do brio descuidado,
vende a lei, trai a justiça,
— faz todos injustiça —
com rigor deprime o pobre,
presta abrigo ao rico, ao nobre,
e só acha horrendo crime,
no mendigo, que deprime.
— Neste dou com dupla força,
té que a manha perca ou torça.
Fujo ás leguas do logista,
do beato, do sacrista
crocodilos disfarçados,
que se fazem muito honrados,
mas que, tendo ocasião,
são mais feros que o Leão.
Fujo ao cego lisongeiro,
que, qual ramo de salgueiro,
maleavel, sem firmeza,
vive á lei da natureza;
que, conforme sopra o vento,
dá mil voltas num momento,
O que sou, e como penso,
aqui vai com todo o senso,
posto que já veja irados
muitos lorpas enfunados,
vomitando maldições
contra as minhas reflexões.
Eu bem sei que sou qual Grilo,
de maçante e mau estilo;

e que os homens poderosos
desta arenga receiosos,
hão de chamar-me tarelo,
bode, negro, Mongibelo;
porem, eu que não me abalo,
vou tangendo o meu badalo
com repique impertinente,
pondo a trote muita gente.

Se negro sou, ou sou bode,
pouco importa. O que isto pode?
Bodes ha de toda a casta,
pois que a especie é muito vasta…
Ha cinzentos, ha rajados,
baios, pampas e malhados,
bodes negros, bodes brancos,
e sejamos todos francos,
uns plebeus, e outros nobres,
bodes ricos, bodes pobres,
bodes sábios, importantes,
e tambem alguns tratantes...
Aqui, nesta boa terra,
marram todos, tudo berra:
nobres condes e duquezas,
ricas damas e marquezas,
deputados, senadores,
gentis-homens, veadores,
belas damas emproadas,
de nobreza empantufadas;
repimpados principotes,
orgulhosos fidalgotes,
frades, bispos, cardeais,
fanfarrões imperiais,
gentes pobres, nobres gentes,

em todos ha meus parentes.
Entre a brava militança
fulge e brilha alta bodança;
guardas, cabos, furrieis,
brigadeiros, coroneis,
destemidos marechais,
rutilantes generais,
capitães de mar e guerra,
— tudo marra, tudo berra!
Na suprema eternidade,
onde habita a Divindade,
bodes ha santificados,
que por nós são adorados.
Entre o côro dos anjinhos
tambem ha muitos bodinhos.
O amante de Siringa
tinha pelo e má catinga;
o deus Mendes, pelas contas,
na cabeça tinha pontas;
Jove, quando foi menino,
chupitou leite caprino;
e, segundo antigo mito,
tambem Fauno foi cabrito.
Nos dominios de Plutão
guarda um bode o Alcorão;
nos lundús e nas modinhas
são cantadas as bodinhas.
Pois, se todos têm rabicho,
Para que tanto capricho?
Haja paz, haja alegria,
folgue e brinque a bodaria,
cesse, pois, a matinada,
porque tudo é bodarrada!!»

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.
  1. O informante é o mesmo sr. Pedro Santos Oliveira.
  2. A anedota foi contada pelo sr. Filinto Lopes.
  3. Alem de Antonio Carlos, foram seus companheiros de na banca de advogado, Januario Pinto Ferraz e Dino Bueno.
  4. Esta anedota tambem foi narrada pelo sr. Filinto Lopes, primeiro tabelião da cidade, e cuja memoria constitue uma cronica viva da Paulicéa de outros tempos.
  5. O proprio Luiz Gama parece inculcá-lo na poesia «A minha mãi».