O ABOLICIONISTA

O sucesso de 1859, que parece haver-se repetido em 1861, não foi capaz de manter viva e alta a tendência de Gama, no sentido de aumentar sua bagagem literária Sua estréa é tambem um ponto final. Pareceria que satisfeita a vaidade de ter livro publicado, desalterada a sêde de renome, a benevola e carinhosa acolhida da crítica atuara como calmante e como sedativo. A mim, afigura-se-me diversa, entretanto, a causa da sua paralização literaria.

Gama encontrava no seu meio questões outras, bem mais importantes e bem mais sérias, que não comportavam, senão esporadicamente, um tratamento paliativo pelo ridículo. E entre elas, para seu espírito de ex-perseguido, não podia deixar de avultar a liberdade dos negros, dos homens de sua raça, a que estava preso pelos laços de sangue. Devia parecer-lhe um absurdo, quiçá mesmo um crime, que ele andasse em busca do renome literário, da glória pelas letras, deixando-se favonear pelos mesmos homens que sacrificavam seus infelizes irmãos e se pavoneasse com o exito de um brilho secundário, quando tantos desventurados gemiam no jugo do cativeiro.

A retirada de Gama do campo das letras é, destarte, quasi arrependimento ou remorso por se haver embaido com ideal de somenos, quando havia tanto que fazer numa luta muito mais trágica e muito mais grandiosa.

Para o seu fôro íntimo, não era inteiramente censuravel que houvesse publicado o livro: serviria a demonstrar, na raça negra, a capacidade de atingir ás alturas e á civilização que a branca lhe declarava interditas. Mas, cumprida a façanha, Gama desiste de prosseguir na trilha. O seu repentino e definitivo abandono do campo da literatura, parece-me um caso de renúncia voluntária e propositada. A vida exigia dele bem maiores provas de capacidade e de valor.

E a liberdade dos negros, sujeitos á tirania dura e feroz da servidão corporal, acabou por se transformar, em pouco tempo, na sua máxima, na sua invencivel paixão, alvo e razão justificativa de sua existência. Naquele temperamento de fogo, feito de chama e de idealismo, a questão tinha de assumir o carater exclusivista, fechado, intransigente que nele teve.

Na luta que Gama sustentou em nossa terra, a favor dos escravos, luta tenacíssima, áspera, sem quartel, em que ele jogou tudo, sem excetuar a propria cabeça, sem a esperança da menor recompensa, teve de sua parte a veemência de uma idéa-fixa, a intensidade irraciocinada de uma paixão amorosa e a irreversibilidade de um apostolado místico. Chega a espantar o odio que ele revelou possuir em tão alta dose, concentrado em redobrada potência e com uma tão resistente capacidade de durar que nem a morte o extinguiu. Pois, foram ainda os raios fulgurantes despedidos nessa campanha, que a prolongaram no tempo, atravez do juramento que a multidão fez á beira de seu túmulo.

Para entender esse odio, para compreender essa animadversão que não arrefeceu, que não soube amainar, é preciso colocar-se no seu tempo e no seu meio e examinar detidamente a crase desse homem admiravel.

Admiravel é o termo. Outros muitos escravos, agrilhoados injustamente, tinham conseguido libertar-se, sem que ao depois viessem a se constituir em paladinos dos outros que permaneciam dentro das rêdes da crudelissima instituição. Muitos, pelo contrario, vieram a ter escravos debaixo de suas unhas e se mostraram mais carrascos do que os outros haviam sido para com eles. E’ que os jugulava o clima mental da epoca. Invalidava-lhes qualquer tentativa de melhoramento o ambiente que reconhecia normal e perfeitamente aceitavel o crime que a especie vinha cometendo desde a aurora da civilização, punindo todas as veleidades daqueles que ensaiassem romper com um estado de cousas que séculos de prática intensiva legitimavam.

E maravilha e deixa atônito este fato verdadeiramente singular: um homem de côr, mal egresso do cativeiro, pobre, pauperrimo, sem outras armas que não uma primorosa inteligencia e uma indomavel coragem moral, teve a audácia de enfrentar o opressivo regime social, vigente talvez ha milênios, sózinho, isolado, contra tudo e contra todos, numa hora em que era crime pôr em dúvida a legalidade da instituição. Tão viciados estavamos no goso desse privilegio de desfrutar, em nosso proveito, o suor do trabalho alheio, que não podiamos admitir siquer a hipótese de que viesse a estancar-se a fonte da renovação perene desse gado humano. Quanto mais conceber a idéa de que, um dia, esse rebanho de párias pudesse vir a recuperar o precioso bem que perdera, igualando-se a nós outros.

Mas se assombra e admira, essa atitude de Luiz Gama tem cabal explicação nos seus antecedentes individuais.

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.