A INFLUENCIA DO NOVO AMBIENTE

A’ medida que Gama foi vivendo em nossa terra, o seu horror, o seu odio, a sua aversão só podia crescer, porque os aspectos que a nossa escravidão lhe apresentava nada tinham em condições de esbater ou minorar as primeiras e inenarraveis impressões que dela recebera.

Uma pagina de Raul Pompéa, escrita em 1883, mostra, no seu pungente húmor, o ponto a que haviamos atingido nessa matéria. Foi quando o esteta fluminense replicou a Aluizio de Azevedo, que escrevera dizendo ser o Maranhão a província mais escravocrata do Brasil. Pompéa revidou:

“Licença, amigo, para um protesto. Não se vá, sem mais nem menos, tirando glórias a quem as carrega convictamente; não se negue o seu a quem de direito. O teu folhetim de 24 do corrente, assevera que o Maranhão é a província mais escravocrata do Brasil... Não apoiado. São Paulo protesta, com toda a força dos pulmões de ferro das suas locomotivas. E’ mais facil ao Maranhão ser Atenas de agua doce, do que ter a primazia nos orgulhosfidalgais do escravocratismo. Não senhor. A província mais escravocrata deste feliz Império, é, sem discussão, sem concurrências ao logar de honra, sem a mais fugitiva névoa de dúvida, a muito adiantada província do apostolo das gentes. Verdade é que o Rio de Janeiro deu o sr. Paulino e Minas Gerais é a causa desse efeito interessante cognominado Martinho Campos... Mas, qual! São Paulo está na vanguarda. E’ o porta estandarte da bandeira negra. Cada um tem suas vaidades...”

* * *

Nós andamos, hoje, todos empenhados em abrandar, em adoçar, em evanescer os aspectos da escravidão no Brasil, citando os casos de bom tratamento que alguns senhores, em todas as províncias, proporcionavam aos seus servos. Queremos iludir-nos a nós mesmos, porque não podemos aceitar, com a nossa mentalidade moderna, de respeito sagrado á vida alheia, se houvessem os nossos maiores desgarrado tanto da boa razão, do reto proceder, dos ensinamentos da religião que sempre foi a do povo brasileiro.

Mas a verdade, dura, penosa, desagradavel de dizer é que a escravidão sempre foi, em toda a parte, e, portanto, aqui tambem, uma questão suja, nojenta, repugnante. Entrar-lhe pelo âmago a dentro, examinar-lhe as modalidades de degenerescencia que engendrou, baixar de degrau em degrau até o limite extremo a que foram os senhores, em matéria de infâmia, e de ignomínia, de crueldade, de envilecimento, chega a causar arrepios.

Eu não quereria penetrar os umbrais desse capítulo nauseante nem chafurdar no lodaçal dessas memórias, remontando o curso da baixeza humana, como si percorresse as “bolgie” dos círculos dantescos. Tenho de fazê-lo, porem, e a contragosto. Não posso evitá-lo, se quero deixar de Luiz Gama uma noção menos inexata e menos incompleta de seu perfil moral, tentar fazer compreender porque esse homem, nascido incontestavelmente para outros vôos, no campo inteletual, se entregou, de corpo e alma, á causa negra, tendo sido o verdadeiro precursor da acção abolicionista, no Brasil.

O primeiro desapontamento, profundo, enervante, contristador, que a escravidão reservava a um homem com a privilegiada inteligência de Luiz Gama, foi o verificar que a sociedade brasileira em peso considerava o negro como não sendo gente. São inequivocas, convincentes e unânimes as manifestações nesse sentido, que punham o escravo debaixo do ponto de vista do direito romano: “non tam vilis quam nullus”. Incorporavam-no, concientemente, á categoria dos brutos, assim á moda de uma sub-ordem dos simios, grupo ou familia dos catarrinios. A classificação de “folego-vivo”, que se lhe dava nos engenhos, respondia cabalmente ao conceito fundamental de que os negros não se diferenciavam em nada dos demais semoventes que a propriedade comportava. E o regime de servidão que se lhes aplicava não só não constituia crime algum, mas era, ao contrário, a única forma de proteção e defesa do próprio negro, como as jaulas e as gaiolas dos animais, nos jardins zoológicos,

As provas abundam. Uma é, sem duvida, decisiva e definitiva, quanto a essa maneira de pensar e de sentir: a marca a fogo com o nome do senhor no corpo dos escravos. Nós não tinhamos progredido. Enquanto, na Irlanda, por exemplo, já em meiados do seculo XVIII, os escravos ostentavam, em volta do pescoço, um colar com o nome do proprietario, abandonando o processo da marca a fogo, nós acharamos o sistema muito próprio para facilitar as fugas, pelo simples gesto de deitar fóra a preciosa “joia”. E, surdos á piedade, vivendo a Idade Media bem depois da Revolução Francesa, mantiveramos o sistema de garantir a posse pelo sinal indelevel, que o negro não pudesse, em hipotese alguma, mesmo depois de livre, fazer desaparecer.

Ao tempo de Luiz Gama, a praxe continuava, em pleno vigor, embora a Constituição do Imperio, promulgada a 25 de março de 1824, contivesse este dispositivo salutar e terminante:

“Desde já ficam abolidos os açoites, a tortura, a marca de ferro quente e todas as mais penas crueis”. (art. 179 § 19).


Gama, porem, tivera carradas de razão quando soltara o epigrama viperino das “Novidades Antigas”, para cravá-lo, como uma comenda, no peito dos juristas:

«Doutores da Verdade, do Direito —
Mas que ao «torto» tambem lá dão seu geito»

Efetivamente, os senhores continuaram a aplicar todas essas formas brutalissimas de castigo e quando solicitados em juizo, a jurisprudência pátria achou o escaninho salvador pelo qual se esgueirou o direito de persistir nas práticas crueis da repressão domestica. "O geito" consistiu em declarar, perentoriamente, que a Constituição do Imperio se referia a cidadãos e os escravos não pertenciam a tal categoria. De fato, escravo era gado.

Evaristo da Veiga, no seu "A Campanha Abolicionista", arrola anúncios em que as marcas de fogo são confessadas publicamente e, entre eles, um que deixa os contemporaneos em suspenso, transcrito do "Diario de São Paulo", de 19 de dezembro de 1884 e assim concebido:

ESCRAVO FUGIDO

Acha-se acoutado nesta cidade o escravo pardo de nome Adão, de 29 anos de idade, pertencente ao fazendeiro abaixo-assinado. E’ alto, magro, tem bons dentes e alguns sinais de castigos nas costas[1], com as marcas S. P. nas nádegas. E’ muito falador e tem por costume gabar muito a provincia da Baía, donde é filho. Quem o prender e levar á Casa da Correcção será gratificado com a quantia de 200$000.


São Paulo, 17 de dezembro de 1884.

Saturnino Pedroso”.

Vejam a idade do negro, 29 anos. Reparem na data do anuncio, ha pouco mais de tres anos de antecedência da Lei Aurea. Conclua, agora, o leitor o que lhe fôr possivel, acerca da mentalidade brasileira em matéria da escravidão.

E o ponto de vista de que o regime escravocrata era a solução adequada para os negros africanos, uma verdadeira salvação para eles, nós, se não tivessemos o testemunho de nossas crônicas nacionais e até a opinião de alguns proprios negros [2], poderiamos citar os depoimentos de estrangeiros, que visitaram o nosso país, no tempo. Um deles é sintomaticamente expressivo. Tratra-se de uma carta de Forth-Rouen, que, como enviado e encarregado de negocios da França, na China, passou pela Baía, em 1847, de viagem para o Celeste Imperio, tendo permanecido na capital baiana de 7 a 23 de julho desse ano [3]. Pois, nesse brevissimo tempo de estadia, o diplomata francês pôde fazer o nosso julgamento acerca do já então escaldante problema e revelou-o ao seu Ministro das Relações Estrangeiras, em carta datada de 16 de julho de 1847. Escreve ele:

“Seria, de resto, dificil achar um brasileiro que partilhe, relativamente ao tráfico de escravos, as idéas dos europeus. Não somente ele lhes parece indispensavel, do ponto de vista de seus interesses, como os brasileiros estão convencidos de que, no dia em que cessar o tráfico de escravos, a existência do Brasil, cuja riqueza toda consiste nas suas plantações, estará perdida, como, no ponto de vista da humanidade, eles nem siquer o consideram ílicito, porque estão convencidos de que os negros não só não são aptos para outra cousa senão para aquilo que os obrigam a fazer, e mais, que os negros são mais bem tratados nas fazendas do que no seu proprio país. Vou citar um fato que pode dar uma idéa exata do modo de ver dos brasileiros a esse respeito. Numa igreja da Baía, entre um grande numero de ex-votos, tive ocasião de ver um quadro representando um navio negreiro sob o pavilhão brasileiro e dois outros, um francês e outro, inglês, que lhe dão caça. No ceu aparece a figura de Cristo que, com sua mão poderosa, protege o barco brasileiro. Este navio escapa ao perigo que o ameaça e consegue entrar, em paz, no porto... Este quadro é de pintura recentissima”.

Fazia, nessa ocasião, mais de vinte anos que nós, solenemente, reconheceramos, em tratados internacionais, que o comercio da carne humana era imoral e ilegal e nos obrigaramos a combatê-lo, a reprimí-lo, a tudo fazer para extinguí-lo. Isso, porem, era nos tratados e, no caso, exclusivamente “para inglês ver”. Na realidade, mantinhamos o deshonroso tráfico, protegiamos escancaradamente os negreiros de maior evidência e acudiamos ás embarcações em perigo de cair nas mãos dos caçadores implacaveis de contrabandistas de escravos. Não nos passava pela mente cumprir o prometido e só o fizemos — confessemos a dolorosa verdade — quando, premidos pelas incursões inglesas, ultrajados e diminuidos em nossa soberania, afrontados dentro de nossa própria casa pelas forças navais britânicas, Eusebio de Queirós deu ao Brasil a lei de 1850. Mas, antes de ser cumprida com o rigor e a honestidade com que o fez o integro estadista, a mentalidade escravocrata ainda tentou agarrar-se ás suscetibilidades patrióticas, humilhadas pela grosseria e pela brutalidade anglicana, para tentar, com esse último e desesperado expediente, prolongar e protelar a vigência do tráfico. Não havia motivo de espanto. Si nós haviamos até ali mercadejado com a carne humana, porque recuariamos em explorar e especular com um sentimento sagrado como o patriotismo?

Extinto o tráfico, em virtude da firmeza de alguns homens de governo que haviam entendido não ser mais possivel, a uma nação civilizada, na altura da história a que chegaramos, consentir nessa miséria, a chicana legal veiu para dentro de casa. Em não existindo mais a corrente da África, que provia á substituição dos claros e das falhas no exército de párias que a nação reclamava para a sua lavoura, mister foi apelar, em grande escala, para os expedientes que, de qualquer forma, preenchessem as lacunas, provocadas pela velhice, pela morte e pelas alforrias.

A lei de 7 de novembro de 1831 estabelecera que os africanos boçais, isto é, os ignorantes da lingua e dos costumes da terra, importados depois da lei em vigor, seriam devolvidos ao seu país de origem, pagando as despezas o importador da mercadoria.

Os interesses dos que governavam o Brasil, pois a monarquia foi sempre dirigida pela aristocracia rural, conseguiram encontrar, desde logo, dificuldades nessa devolução e, alegando mil pretextos e desculpas, foi a administração pública deixando esses pretos aqui mesmo. “Sei que, sobretudo, pesou para isso a conveniência que se tinha em vista de encher o país de trabalhadores adaptados ao seu clima; sei que se alegava como inepcia reexportar braços que já se possuiam, e de cuja criminosa introdução não era o governo culpado”. Assim escrevia Tavares Bastos, em 1861, nas suas admiraveis “Cartas do Solitario”. E acrescentava, num assomo de coragem para o tempo: “Eis aí a linguagem do egoismo”. Egoismo era um eufemismo para disfarçar o verdadeiro nome dessa torpe traficancia.

Porque o golpe tinha outro intuito. Mantidos aqui os africanos boçais, que legalmente eram irredutiveis ao cativeiro, começou o jogo de astúcia para levá-los, aos poucos, até o tronco dos escravos.

A lei mandava que se lhes entregasse uma pequena lata, pendurada ao pescoço, contendo uma carta declaratória de que o portador era livre. Mas como esses negros, “livres”, não podiam ficar inutilmente pesando sobre as arcas da Fazenda Publica, estabeleceu-se que eles teriam de trabalhar 14 anos em serviços publicos, “enquanto não fossem reexportados”. Estavamos caminhando para o desideratum escravocrata. Já houvera os pretextos para não reembarcar os negros. Agora, já havia a forma para cohonestar a demora da devolução, fazendo-os trabalhar afim de que pagassem o proprio sustento.

O terceiro passo aí vinha. Foi quando o Governo, atendendo a reclamos dos lavradores, achou de bom alvitre alugar o trabalho desses homens “livres”. A princípio a medida foi empregada só para o municipio da Capital. Depois, a cousa estendeu-se, naturalmente, em seguimento a um plano bem amadurecido e bem urdido. Já era uma crueldade aplicar a esses desgraçados o premio de 14 anos de servidão por haverem feito, contra a vontade, uma viagem em navio negreiro, nas condições que ninguem ignora. Com o novo sistema de arrendamento do trabalho manual, os boçais “livres”, dentro de poucos anos, se encontraram, de fato e de direito, definitivamente incorporados ao grosso da população escrava. As substituições se haviam operado de mil modos e maneiras, especialmente pelo registro de óbitos de negros. Toda vez que falecia um escravo antigo, o assentamento registrava o nome do boçal livre. E este ia ocupar, legalmente, o lugar vago deixado pelo outro.

A desenvoltura, nessa materia, foi-se ampliando de tal forma que, enquanto senhores não se arreceiavam de anunciar a venda de africanos livres, o governo tomava medidas muito mais importantes, que tornavam irrecusavel a sua completa, total, absoluta conivência nas praxes e práticas que tinham capturado para a escravidão milhares de indivíduos a quem as nossas leis reconheciam o direito de liberdade.

Uma delas não tinha classificação: foi a que, pela lei orçamentaria de 21 de outubro de 1843, começou a rubricar como verba de receita ordinária do Estado, a arrecadação dos salários dos negros boçais, salários destinados á formação do peculio de reexportação. O dispositivo era tanto letra morta que os estadistas do Imperio incorporaram essa renda aos proventos normais da administração publica.

Ademais, para que desaparecessem as ultimas veleidades desses negros “livres”, portadores da lata escarnecedora, criou-se um sistema aperfeiçoadissimo de formalidades para que o negro nunca chegasse a obter essa suspirada carta de alforria. Foi ainda Tavares Bastos quem, no Apendice IV das suas citadas “Cartas do Solitario”, teve a feliz lembrança de transcrever um artigo publicado no "Diario do Rio de Janeiro", em que se contava a odisséa de um negro boçal "livre", em busca da sua carta, depois dos 14 anos de servidão. Legou-a aos posteros como o atestado mais convincente da profunda indentificação governamental á causa negreira e da corrupção dos homens. Merece traslado esse documento em que se enumeram as infinitas barreiras colocadas propositadamente no caminho de um pobre analfabeto, depois de sugado no seu trabalho de lustros contínuos. Ninguem poderia inventar cousa mais acabada para impedir o acesso á liberdade a respeito de alguns desgraçados que uma lata trágica já declarara libertos. Ouçamô-las. Dizia o artigo:

«Esses infelizes devem resignar-se e esperar.

O africano livre, entregue ao serviço de particulares ou de estabelecimentos publicos, não passa de um verdadeiro escravo; os que desfrutam seus serviços não caem na asneira de facilitar-lhe a emancipação, e, como escravo que é de fato, não pode adquirir meios pecuniarios com que pague a advogados e procuradores para tratarem de sua emancipação.

Segue-se, portanto, que esses infelizes devem resignar-se com a pulha da lei, ou esperar que o acaso lhes depare um protetor desinteressado e que, revestido da mais evangélica paciência, se prepare a sofrer e acompanhar todas as seguintes provas desta nova inquisição moral:

1.º) Pedir ao escrivão dos africanos a certidão demonstrativa de que é passado o lapso de tempo.

2.º) Requerer ao governo imperial por intermedio da secretaria da justiça.

3.º) O ministro da justiça manda ouvir o juiz de orfãos.

4.º) O juiz de orfãos informa e faz volver a petição ao ministro.

5.º) O ministro manda ouvir o chefe de policia.

6.º) O chefe de policia manda ouvir o curador geral.

7.º) O curador geral dá a sua informação e faz voltar a petição ao chefe de policia.

8.º) O chefe de policia manda ouvir o administrador da casa de correcção.

9.º) O administrador da casa de correcção informa e faz voltar ao chefe de policia.

10.º) O chefe de policia informa e faz voltar á secretaria da justiça.

11.º) A secretaria faz uma resenha de todas as informações para o ministro despachar.

12.º) O ministro despacha afinal, mandando passar a carta de liberdade.

Este final quer dizer:

13.º) Volta a petição ao juiz de orfãos.

14.º) E expede-se um aviso ao chefe.

15.º) O juiz de orfãos remete a petição ao escrivão e faz passar a carta, que este demora em seu poder até que a parte vá pagar os emolumentos.

16.º) Remete-se a carta ao chefe de policia.

17.º) O chefe de policia oficia ao administrador da casa de correcção mandando vir o africano.

18.º) O administrador manda-o, e o chefe de policia designa o termo ou município em que ha de residir.

19.º) chefe de policia da côrte oficia ao da província, a que pertence a termo designado, e remete-lhe o africano acompanhado da carta.

20.º) O chefe de policia da província oficia, remetendo o infeliz e a sua carta á autoridade policial do lugar para onde ao chefe de policia da corte aprouve designar o degredo do homem livre e não condenado por crime algum.

E depois de todo o trabalho, de despesas feitas com procuradores ou veiculos para que a petição não ficasse sepultada no mare magnum de nossas repartições, o misero africano consegue ser banido do lugar em que residiu por dez, quinze e vinte anos, em que adquiriu raizes, em que começou a preparar o seu futuro, os seus interesses!

Eis em que dera o refino, o aperfeiçoamento burocratico de governos que declaravam, sempre que podiam, da tribuna das câmaras, o seu máximo empenho em extinguir a mancha negra no Brasil. A insinceridade dessas manifestações ninguem as poderá contestar, dês que tenha lido a confissão do grande jornalista Justiniano José da Rocha, feita na sessão de 26 de junho de 1855, em pleno Parlamento, e que consta dos anais de nossa Assembléa Legislativa. Recontou-a Humberto de Campos no seu “Brasil Anedótico”, sob o titulo de “Confissão de subôrno”, extratando-a do 1.° vol. do livro de J. Nabuco, “Um estadista do Imperio”, pag. 208.

Justiniano José da Rocha narrou o seguinte episódio:

“Distribuiam-se africanos, e estava eu conversando com o ministro que os distribuia, e S. Exa. me disse: — Então, sr. Rocha, não quer algum africano?

— “Um africano me fazia conta — respondi-lhe.

— “Então, porque o não pede?

— “Si V. Exa. quer, dê-me um para mim e um para cada um dos meus colegas.

O ministro chamou imediatamente o oficial de gabinete e disse-lhe: — Lance na lista um africano para o dr. Rocha, um para o dr. Fulano, e outro para o dr. Fulano”.

Não tenho o menor desejo, nem experimento o mínimo prazer em acusar a monarquia, mas são os fatos que falam por si mesmos e são eles que justificam a atitude intransigente, intratavel, intolerante si quizeram, mas indiscutivelmente cheia de nobreza e de beleza de Luiz Gama, combatendo de todas as formas a negregada instituição e negando crédito ás tão gabadas, mas nunca provadas, tendências emancipadoras da Corôa e dos governos.

Como poderia ele acreditar nessa gente, se os jornais, em 1862, segundo refere o já citado Tavares Bastos, noticiavam que se havia negado a carta de alforria definitiva a africanos “livres”, empregados nos serviços públicos desde 1831? Os 14 anos, estatuídos pela administração, haviam se transformado em mais de 30 e nem siquer depois desse dilatado prazo, que é o normal para a aposentadoria dos funcionários públicos, achavam os governos do Império motivo para dispensar dos trabalhos o desgraçado pária, que, desde a sua entrada no país, a lei reconhecera “livre”?

Como confiar na palavra desses homens, se o Ministro da Agricultura, por aviso de 13 de setembro de 1862, remetia ao Presidente da Provincia do Amazonas, que lhos solicitara, 30 africanos emancipados afim de servirem nas óbras públicas?

Como dar fé ás declarações sentimentais da monarquia, feitas sempre “para inglês ver” se nem os atos de bravura, praticados em guerra garantiam a libertação?

Conta Suetonio (Ferreira Viana), em “O Antigo Regime”, pag. 73, que entre os escravos que serviram no Exercito (na Guerra do Paraguai) houve um que se alistou sem o consentimento do senhor. Feita a campanha, voltou num posto inferior, tendo-se distinguido em diferentes combates.

O senhor, logo que soube de sua chegada, reclamou, exigindo em troca forte quantia. Houve grande discussão a esse respeito, entre o ministro e o Imperador, entendendo este que se devia entregar o soldado, para não satisfazer a especulação do senhor, opinião que prevaleceu[4].

Tinhamos perdido a noção moral mais simples e mais rudimentar, quando se tratava de escravos. Não eram gente. E fomos indo de queda em queda, de abaixamento em abaixamento, para a integral eliminação das normas de ética, até mesmo daqueles elementarissimos, sumarissimos preceitos que já nem constituem patrimonio dos homens concientes, mas aquisição instintiva dos brutos. Não pareça a frase uma volada de declamação literaria. Não o é.

Encontrei em o n.º 11 da “Provincia de São Paulo”. de 16 de janeiro de 1875, na sua secção forense, o compterendu da apelação civel n.º 67, da comarca de Amparo, e que viera parar no Tribunal de Justiça da Capital.

Era o caso de um senhor daquele municipio, que, ao morrer, deixara todos os seus haveres a um rebento bastardo, fruto de seus amores com uma escrava. Ora, por motivo que não vem ao caso apurar, entre os bens do herdeiro figurava tambem a propria mãi. Esta reagira contra a situação, de vez que o filho, ou por não ter idade para deliberar ou por qualquer outra razão, não lhe concedera a liberdade, e viera pleitear, perante a justiça, contra a inacreditavel aberração de ter de ser escrava de seu proprio filho.

O Juiz de direito da comarca (cujo nome, generosamente, não quiz indagar) julgara improcedente a acção intentada pela negra “por não achar ilegal que a Autora fosse, ao mesmo tempo, mãi e escrava de seu senhor”.

O Tribunal, para honra nossa, reformou a sentença, libertando a mulher, fundamentando o acordão em que ”nada havia mais repugnante e imoral do que o espetaculo de uma mãi sujeita ao cativeiro de seu proprio filho”.

Mas, se consola o nosso coração aflito a atitude reta e digna do Tribunal de segunda instancia, crispam-se-nos os nervos e contorcem-se-nos os musculos todos do rosto, num supremo rictus de nojo, ao verificar que não apenas o mulatinho, ou quem suas vezes fazia, tinha perdido o senso moral hereditário, qualidade que dizem ser apanágio da cultura da espécie, mas que tambem, para a conciência de um juiz do tempo, homem togado a que incumbiamos a defesa do patrimonio etico da comunhão social, podia, legal e licitamente, podia um filho manter a propria mãi no tronco dos seus escravos. Reconheçamos que não era possivel descer mais. A mentalidade brasileira, em materia de escravidão, raiava pela insânia. E uma instituição que determinava o aparecimento desses alarmantes fenômenos de degenerescência, que era capaz de dar guarida á discussão jurídica de fatos desse jaez, que nos punham fóra não só da humanidade mas do proprio reino animal, que nos putrefizera os últimos resquícios de pudor, que nos apagara, no cérebro morbidamente desfibrado, os derradeiros vislumbres daquelas regras que haviam erigido a civilisação, uma instituição assim asquerosa, tinha de morrer. Precisava desaparecer. A reacção contra ela, era a luta pelo direito de continuarmos a viver como nacionalidade. Ou debelavamos a corrupção que nos gangrenava a alma, ou submergiriamos na noite trágica dos povos perdidos. Não havia alternativa.

Compreende-se, agora, Luiz Gama. Ponde esse temperamento de chama no centro do sistema social da época, fazei-o, com todos os seus antecedentes individuais de índole, de ambiente, de educação, a estação receptora de todas as mil vibrações de revolta, de insurreição, de rebeldia de todos os humilhados, de todos os sacrificados, de todos os injustiçados, imaginai-o o ponto de intersecção de todos os clamores de piedade, de justiça, de simples misericórdia que se vinham entrecruzar no seu coração amargurado, no seu cerebro compreensivo, na sua bilis exasperada, no seu odio impotente e tereis o deflagrar de sua personalidade vibrante, fremente, violenta, indobravel... Tinha de ser um genio, como o crismou Rui Barbosa. Foi o genio da coragem.

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.
  1. O grifo é nosso e foi feito exclusivamente para chamar a atenção do leitor para a circunstancia de que a frase sublinhada é invariavel e infalivel nos anúncios da época. Nas dezenas e centenas de anúncios que consultei, os sinais de castigos nas costas era marca «especifica» que não faltava nunca para acentuar bem vivamente que a Constituição do Imperio nada tinha que ver com as bestas de carga que faziam frutificar as scaras e sustentavam a comunidade.
  2. Contou-me o sr. Felinto Lopes que um escravo de seu conhecimento, liberto pela lei de 13 de maio, e que por sinal lhe revelou a existencia de negros mulssulmis, em São Paulo, contando-lhe onde era a mesquita, isso ainda muito recentemente, lhe afirmara repetidas vezes que, para ele e para outros, fóra uma fortuna ter sido escravisado no Brasil. Que seria ele, dizia, se tivesse permanecido em sua taba natal?
  3. Artigo de Henri Cordier, publicado no «Jornal do Comercio», do Rio de Janeiro, edição de 27 de julho de 1930.
  4. Apud Sussekind de Mendonça, em «Quem foi Pedro II», pg.