O precursor do abolicionismo no Brasil/2.6
PRECURSOR
Luiz Gama começa a sua campanha muito longe, quando ainda ninguem se dignara fazer algo, pela acção sistematica, a favor do negro sem esperanças. Literariamente e parlamentarmente, alguns idealistas já se haviam interessado pela sorte crua e horrivel da raça infeliz, a começar por Manuel Ribeiro da Rocha, advogado do fôro da Baía, que, em 1758, escrevera o seu tão citado “Etiope resgatado, empenhado, sustentado, corrigido, instruido e libertado”, que é, no Brasil, o primeiro trabalho sério, juridicamente fundamentado, em prol do negro; ou pelo célebre projeto de José Bonifacio, apresentado, em 1823, á Constituinte Brasileira, primeira tentativa legislativa em defesa do humilde rebanho.
Gama, espirito combativo, qualidade que se iria acentuando com o correr de sua existência, até cair tombado como touro bravio, no meio da aspéra luta, Gama compreendeu o seu momento histórico. Á palavra que fazia a persuasão e que conquistava adeptos, ele queria unir o seu trabalho, o seu esforço pessoal, a sua acção continuada, para que fossem um balsamo, um lenitivo, uma esperança á desgraçada condição de seus irmãos de côr. Ele conta, singelamente, sem retorica, sem desperdício de frases, quando ingressara nessa cruzada, em plena década de 1850, mal egresso ainda do seu proprio cativeiro, quando ainda o Brasil fazia esforços inauditos para poder cumprir a lei de repressão do tráfico.
“Seis anos depois (de incorporar-se á Força Pública), robustecido de austera moral, a ordenança da delegacia de policia, despia a farda, entrava para uma repartição publica, fazia-se conhecido na imprensa como estrenuo democrata e esmolava como até hoje para remir os cativos”.
A frase referente á imprensa denuncia que ele, já nesse tempo, enveredara para o campo do chamado quarto poder. Mas não ha documentação a respeito, e nós só conseguimos encontrar os primeiros traços de sua passagem pela imprensa, em 1864. Não pode deixar, contudo, de ser exata a informação, uma vez que Gama publicou o seu único livro em 1859. Isso faz pressupor um trabalho preliminar, no jornalismo, anterior a essa data, de accordo com os hábitos quasi gerais de nossos homens de letras.
A ultima sentença do paragrafo, porem, não admite vacilações. Gama iniciou o seu sacerdocio civico e sentimental pelos negros, por volta de 1855, tentando a unica solução que a mentalidade da época consentia: a liberdade pelo resgate do preço de custo da “peça”.
O expediente, alem de excessivamente lento, tinha contra ele outra circunstancia ponderavel: é que o meio não levava a serio tais iniciativas e as ridicularizava. Ninguem compreendia que se perdesse tempo com um assunto tão tolo e menos ainda que houvesse quem se comovesse com a sorte dos negros. Ha testemunhos do tempo que mostram até onde ia a indiferença geral pelo problema. A questão, de fato, não existia senão na cabeça de alguns malucos.
Afranio Peixoto comentou no seu “Castro Alves” como fôra recebido no Brasil o verbo do cantor dos escravos e a impressão que ele fizera na coletividade: “A causa era tão nova e tão desinteressante para a propria geração dos moços, que me afirma um seu contemporaneo, causava a todos espanto e pena que o joven Castro consagrasse o seu talento e a sua heróica juventude a um apostolado sem simpatia na multidão, nem favor nas classes dirigentes”. E o criador do “Navio Negreiro” nem é da decada de 1850. Veiu em meados da seguinte.
As menores tentativas de equiparação dos negros aos brancos, inclusive nas práticas mais sagradas e mais santas, como a do enterro, por exemplo, tinham servido sempre de repasto á zombaria popular. Relembrem-se as palavras de Humberto de Campos, nas suas “Memórias Inacabadas”, narrando a historia da escrava Isaura, a qual, depois de liberta, adquirira um caixão de defunto para com ele poder conduzir os cadaveres dos escravos ao cemitério:
“Que eles tivessem, na morte, uma igualdade que não haviam conseguido em vida. O caixão leva-los-ia a enterrar e voltaria para a igreja, á espera de outro viajante para a Eternidade. A caminho do outro mundo, naquele esquife agaloado, que substituiria a rêde humilde e suja, o escravo teria a ilusão póstuma de que morrera redimido. E Teresa, a velha preta, era feliz e resava consolada, porque dera esse último sonho de liberdade aos seus irmãos”.
Acrescenta, entretanto, o doloroso escritor:
“O negro era, porem, antigamente, não só animal de trabalho como objeto de ridículo. Ao passar o caixão de um branco, os transeuntes se calavam, compungidos, murmurando um “Deus te leve!”, com pena e terror no coração. Se era, porem, o caixão de Teresa que atravessava as ruas, aos ombros de quatro negros que levavam a enterrar um companheiro, os brancos paravam pilheirando, e as senhoras corriam para a janela, sorrindo, numa zombaria alegre da ultima vaidade daqueles homens de côr”.
Inutil, portanto qualquer tentativa de levantamento da opinião publica em favor de direitos. Estavamos imensamente longe dessa fase. Só restava o apelo ao coração, ao que restasse de sentimentalismo na raça, rogando a comiseração e a compaixão. Foi o que Gama fez, denunciando-se psicólogo de penetrante lucidez.
Parece que os italianos foram, desde muito cedo, dos que mais solicitos se mostraram em proteger os ideais do então humilde advogado dos negros. Contou-nos o sr. Antonio dos Santos Oliveira que no Circulo Operario Italiano, já existente, Gama costumava fazer conferências de intuitos emancipadores e que sempre encontrou ali contribuição pecuniária para a sua campanha. No fim das palestras, organizava-se a coleta entre os presentes, que eram sempre numerosos quando falava o notavel tribuno, e o montante era destinado a alforriar escravos.
A’ medida que a prática dos meios policiais e forenses, quasi sempre intimamente unidos, nas cidades pouco populosas, lhe enriquecia a experiência, Gama foi adotando o sistema de amparar os seus protegidos por meio de manobras, quiçá mesmo de chicanas, que denunciavam o futuro e perigosissimo rabula que deveria vir a ser, e pondo assim a coberto das unhas dos senhores quantos escravos pudessem apelar para dispositivos expressos das leis em vigor.
Pressentindo que o prestigio politico lhe traria novos alentos e novas facilidades para o seu apostolado, inscreveu-se nas hostes liberais, porque nestas militavam os homens mais inclinados ás medidas que facilitassem uma lenta e gradual extinção da escravatura. Com a impetuosidade e o calor que Gama, como todos os lutadores destemidos e audazes, punha em todas as iniciativas a que se afeiçoava, não deixaria de em breve chamar sobre a sua cabeça as iras do partido contrario.
Colaborava ele, ainda por cima, nos jornais satiricos e humorísticos do tempo e nestes, como sempre, os pratos prediletos eram os sucessos políticos, cujas glosas são as que maiores inimizades e antipatias costumam determinar nos homens. Alberto Faria afirma que foi Gama quem fundou a imprensa humorística paulistana, criando o “Diabo Coxo”, que durou de 17 de outubro de 1864 a 24 de novembro de 1865, com a colaboração sistematica do celebre ilustrador Angelo Agostini.
De 30 de outubro de 1866 a 1.º de outubro de 1867, Americo de Campos e Antonio Manuel dos Reis editaram o “Cabrião” e neste tambem colaborou intensamente o nosso negro, sob o pseudonimo de “Barrabraz”. Da mesma forma que no outro, Angelo Agostini era o desenhista do periodico.
O partido adversario tinha, pois, sobrados motivos para marcá-lo e esperou pacientemente a oportunidade propícia para dar-lhe o golpe que tirasse ao negro a vontade de prosseguir nas duas campanhas, a política e a emancipadora. O ensejo apareceu em 1868, por ocasião de uma virada ministerial. Gama teve de amargar aquela demissão “a bem do serviço publico”, com a nota de “turbulento” e “sedicioso”. Para o Partido Conservador era ele muito peor que isso e mereceria mesmo a deportação, se coubesse como pena do delito.
Na impossibilidade de o fazer, a demissão trazia consigo a quasi certeza de que Gama desistiria, pelas dificuldades econômicas que o golpe the criava inesperadamente, reduzindo-o ao silêncio.
O caso, como se sabe, não passou em branca nuvem. Um colega e amigo seu, aproveitando-se da sua ausencia, escreveu uma nota a proposito da demissão. E isso foi o bastante para que se acendesse uma polêmica entre Gama e o seu velho e antigo protetor, o conselheiro Francisco Maria de Souza Furtado de Mendonça, chefe de policia, que o fizera, em 1848, seu ordenança e que lhe facilitara o acesso ao cargo de amanuense em 1856.
A polêmica durou varios dias, tendo alvoroçado a cidade pelo imprevisto do acontecimento: um embate entre protetor e protegido. Gama portou-se á altura de sua gratidão e manteve uma linha impecavel de correção moral diante do homem a quem devia o ter ascendido na vida, revelando-se a criatura reconhecida, respeitosa e profundamente grata que sempre foi. Mas não cedeu uma linha no âmbito de sua dignidade e de sua independência de espírito, de sua maneira de pensar e de agir.
O encerramento da polemica foi feita pelo negro, com um artigo a que deu o titulo “Pela ultima vez”, o qual, embora mui repetido, precisa ficar arquivado nas páginas desta biografia. Traz a data de 2 de dezembro de 1869 e é do seguinte teor:
PELA ULTIMA VEZ
“O meu ilustre mestre e honrado amigo, o exmio. sr. conselheiro Furtado de Mendonça, teve a infelicidade de ler com prevenção os meus escritos, traduziu mal as minhas idéas, tomou a nuvem por Juno e julgou-me com inconveniente precipitação.
A prova cabal deste asserto está estampada na sua primeira explicação que corre impressa “com carater oficial”. Eis o motivo porque eu tachei de “ingenua e notavel” essa publicação. Será isto um novo doesto?
Um meu distinto amigo e ilustrado colega da redação do “Radical Paulistano”, escreveu, em minha ausência, algumas palavras amargas, mas sinceras, relativamente á minha demissão. S. Excia. teve a feliz lembrança de amistosamente impôr-me a responsabilidade desse escrito.
Pois bem, satisfaço os desejos do meu nobre amigo e desvelado protetor; aceito com orgulho a responsabilidade que me impõe. Agora uma ultima palavra:
A ninguem dei ainda o direito de acoimar-me de ingrato. A minha história encerra o evangelho da lealdade e da franqueza. O benefício é para mim um penhor sagrado, “letra” que se não resgata, porque escrita no coração.
Ha cerca de vinte anos, o exmo. sr. conselheiro Furtado, por nimia indulgencia, acolheu benigno em seu gabinete um soldado de pele negra, que solicitava ansioso os primeiros lampejos da instrução primaria.
Hoje, muitos colegas desse soldado têm os punhos cingidos de galões e os peitos de comendas.
Havia ele deixado de pouco os grilhões de indébito cativeiro, que sofrera por oito anos, e jurado implacavel odio aos “senhores”.
Ao entrar nesse gabinete consigo levava ignorancia e vontade inabalavel de instruir-se. Seis anos depois, robustecido de austera moral, a ordenança da delegacia de polícia, despia a farda, entrava para uma repartição publica, fazia-se conhecido na imprensa como extrenuo democrata e esmolava, como até hoje para remir os cativos.
Não possuia pergaminhos, porque a inteligencia repele os diplomas, como Deus repele a escravidão.
O ex-soldado hoje, tão honesto como pobre, quaker ou taciturno ebionita, arvorou á porta da sua cabana humilde o estandarte da emancipação e declarou guerra de morte aos salteadores da liberdade. Tem por si a pobreza virtuosa, combate contra a imoralidade e o poder.
Os homens bons do país, compadecidos dele, chamam-no de louco; os infelizes, amam-no; o governo persegue-o.
Surgiu-lhe na mente inapagavel um sonho sublime, que o preocupa: “O Brasil americano e as terras do Cruzeiro sem rei e sem escravos”.
Enquanto os sabios e os aristocratas zombam prazenteiros das miserias do povo; enquanto os ricos banqueiros capitalizam o sangue e o suor do escravo; enquanto os sacerdotes de Cristo santificam o roubo em nome do Calvario; enquanto a venalidade togada mercadeja impune sobre as aras da justiça, este filho dileto da desgraça escreve o magnifico poema da agonia imperial. Aguardo o dia solene da regeneração nacional, que ha de vir; e, se já não viver o velho mestre, espera depô-lo com os louros da liberdade sobre o túmulo que encerrar as suas cinzas, como testemunho de eterna gratidão.”
Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.
Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.