Vai clareando o dia. Amália está recostada no sofá, com os pés cobertos; Júlia recebe de suas mãos uma taça.
CENA I
editarJÚLIA e AMÁLIA
JÚLIA - Estamos salvas! Não desesperes, que tudo tem remédio. Aquela gargalhada... Ainda me estruge nos ouvidos como as vociferações dos condenados do inferno. Sou bastante animosa, mas custou-me a suportá-la! No entanto, não me arrependo do que fiz.
AMÁLIA - Nem eu, apesar da triste realidade.
JÚLIA - Não me creias tão indiferente como pareço. Estou profundamente abalada.
AMÁLIA - Sei bem, minha irmã, porque te conheço. A intensidade do sofrimento é sempre medida pela alteza da sensibilidade. Tive uns minutos de morte e da pior, que é a morte da esperança, da fé, dessa vida do coração da mulher. Devia morrer ali, porque só levava saudades de ti, de meu pai, e de... mais ninguém. A entrada do inferno se deverão ouvir daquelas gargalhadas! Ah! como a mulher é hedionda quando degenera! Nossa mãe que está lá, e que de lá nos está repreendendo, bem nos dizia: foge da mulher má, porque é mais perigosa do que o homem. E por que não ouvi eu os conselhos de meu pai?
JÚLIA - O amor dos pais é santo e previdente; e quem o despreza paga, e paga duramente.
AMÁLIA - Como eu, que confundi o aparente com o real e o falso com o verdadeiro.
JÚLIA - Mas tu não ouviste, como eu, aquela gargalhada, aquele concerto de fúria, aquela descarga do cinismo e da ironia da perdição... Ah! foi como uma barra ardente: repassou-me a medula dos ossos! Nunca me esquecerei!... Como o vício tudo desfigura! E algumas daquelas mulheres eram ainda novas, e mesmo bonitas e bem feitas! Coitadinhas!
AMÁLIA - Custa a crer tanta perfídia e tanto fingimento! Entregar a uma existência inteira, uma vida pura, inocente, virginal, cheia das mais belas crenças e ilusões a um homem; depor aos pés deste monstro refalsado tanta elevação e tanta santidade; entregar-lhe a riqueza, a abundância, a paz, o amor de um pai e ser ludibriada? É para desesperar! Ver tudo isto esmagar-se pela mais revoltante das ingratidões, é para se morrer. Quisera vingar-me, fazê-lo devorar todas as serpentes do ciúme e do aviltamento, mas falta-me a consciência de que o crime possa vingar o crime. Não, eu sou mais nobre que ele, não desço a tanto. E que remédio, meu Deus, haverá aqui?
JÚLIA - Quando o homem degenera, compete à mulher salvá-lo e suspendê-lo do lodaçal dos vícios com o exemplo de suas virtudes. Assim como arranquei Alfredo da companhia desses bandidos da honra conjugal, assim também o poderás fazer a Juliano. Dizem que o marido faz a mulher, não duvido, porque O homem é tudo na sociedade; mas também certo é de que a mulher é tudo para o marido. Sabes que sempre gostei de brincar, mesmo às vezes de embalar-me na rede folgazona de algumas leviandades inocentes; sabes que gosto de rir, de doidejar; mas também sabes quanto sou severa em certos princípios, que tenho sempre em vista, como uma barreira invencível, como a defesa eterna e gloriosa de uma mulher. Casei-me virgem e quero morrer senhora; porque o altar está lá, (Apontando o céu) e o juramento aqui (No coração).
AMÁLIA - Mas quanto não difere o teu Alfredo de Juliano? Alfredo é leviano, mas não é hipócrita. Ah! minha irmã, tu não sabes que infernal comédia se representa nesta casa há perto de um ano? Juliano, por artes diabólicas, por aquele talento trágico que tanto admiramos, chegou a convencer-me de que era lobisomem, de que se transformava em bicho, e... (Chora)
JÚLIA - Ah ah ah! Só assim me farias rir. Pois tu acreditaste nisto?!
AMÁLIA - Como uma criança, como quem ama, minha irmã, como quem desconhece o veneno da serpente.
JÚLIA - Pois nunca desconfiaste?
AMÁLIA - A princípio, não. A mulher é de uma natureza singular: confia e confia muito quando deve desconfiar, e começa a desconfiar quando é tempo de confiar. Quando o espelho nos desengana é que vemos o mundo tal qual ele é, porque então não temos mais nem vaidade nem lisonjeiros.
JÚLIA - Não te julgava tão simples. É verdade que teu marido é um ator consumado, uma dessas naturezas profundamente elásticas, cheias de recursos, e prontas para todas as metamorfoses! Fala como quer.
AMÁLIA - Natureza de subterrâneo, sempre nas trevas, sempre na mesma temperatura. Trêfego e constante no teatro de suas torpezas misteriosas, nunca perdeu o tino e o discurso de refalsado! Nunca o vi desmentir-se, mas tu sabes que há momentos de dúvida, e eu os tive algumas vezes; e uma delas... Aquele Albano é um homem sem nome! Um perverso, um miserável.
JÚLIA - Confesso-te que esse enganou-me completamente.
AMÁLIA - E não é metade do que o outro é em dissimulação. Uma vez, num dia destes, lancei-me nos seus braços, procurei o seu amparo, as suas luzes e a sua experiência; disse-lhe o que pensava, sem falar em meu marido; apresentei-lhe dúvidas, dissimulei quanto podia; mas o malvado penetrou logo o fundo de minha alma e tratou, habilmente, de salvar o seu cúmplice e amigo. Trouxe-me uns livros sobre o caso, sobre a realidade do fato; e eu fiquei, confesso que fiquei?, crente depois daquela leitura; e só vivendo na esperança de um breve desencanto! O desencanto aí está!
JÚLIA - Como este mundo está cheio de enganos e perigos! Quem diria?
AMÁLIA - Procurava um amigo, um ostensor, um anjo da guarda, e achei a Satanás traidor: caí no fogo; e agora dele me ergo lacerada, sangrenta e nas agonias da desesperação.
JÚLIA - Sossega. Vamos tirar estas vestes, ainda impregnadas daquele ar pestífero; e deixa à minha boa estrela o desenlace desta trama. Eles ainda por lá ficaram, mas a claridade do dia os há de rechaçar do antro, a menos que o sono da embriaguez os não retenha sobre o chão da orgia. (Pausa) Juro-te que hei de desencantar todos os lobisomens. O meu já há de estar bem arrependido. E o teu, que me chamava de sua Clarice!...
AMÁLIA - Nunca a julguei tão falsa! Eu a tinha como uma irmã, uma irmã d'alma e coração! Ainda ontem aqui esteve, como se nada houvesse. Como é triste tudo isso!! Como está tão pervertida?!
JÚLIA - Não façamos juízos temerários sobre uma amiga de infância. Tenho uma boa idéia! Vou agora verificar isto mesmo.
AMÁLIA - Queres mais claro? Pois não está tudo verificado?
JÚLIA - Ainda não; tenho motivos para assim proceder.
AMÁLIA - Mas ele a esperava no baile, e não é tão tolo para iludir-se.
JÚLIA - Tenho motivos. Uma mulher pode cometer uma leviandade, sem muitas vezes comprometer a sua honra. E nós, não fomos ao teatro?... Não entramos na caverna?... Quero escrever um bilhete...
AMÁLIA - Aí tens tudo em cima da mesa. (Júlia pensa e escreve ) E ele repetiu: "Já te disse que eu não amo essa mulher!" (Levanta-se) Não; está tudo acabado! Mesmo que volte a si, quem me certificará se é arrependimento ou cálculo? Meu pai tinha toda a razão, quando dizia: as mulheres não conhecem os homens, nós é que nos conhecemos. E talvez prevendo isto, fez-me aquela escritura de casamento... Sim, que volte à pobreza donde o arranquei; e sofra o castigo da ingratidão com as penas daquela que teve e já não tem. Morri para ele. (Júlia toca a campainha)
CENA II
editarTIBÚRCIO, JÚLIA e AMÁLIA
TIBÚRCIO - Minha senhora, ainda não chegaram os senhores. Foi festa grande, porque ainda está passando muita gente mascarada.
JÚLIA - Vai à casa de dona Clarice e entrega este bilhete. Tem resposta, e traze-a.
TIBÚRCIO - Já há de estar dormindo, porque a vi passar há muito tempo.
AMÁLIA - Pois ela foi ao baile? Como a conheceste no escuro?
TIBÚRCIO - Passou com seu marido; falou-me e mandou lembranças à senhora.
AMÁLIA - Não perguntou pelo senhor?
TIBÚRCIO - Não, senhora. (Júlia o faz sair com um aceno, mas o retém)
AMÁLIA - Nem era preciso. Então?
JÚLIA - Espera. (Pensa) Dize lá em casa que eu estou aqui.
TIBÚRCIO - Mais nada?
JÚLIA - Nada mais. Depressa, anda.
CENA III
editarJÚLIA e AMÁLIA
JÚLIA - O caso é este: se ela foi ao baile com o marido, está claro que recusou O presente.
AMÁLIA - Qual presente?
JÚLIA - Este dominó, que não era para ti.
AMÁLIA - Está claro, que se fosse com ele, o mande, que não é rico, havia de indagar.
JÚLIA - Poderia mentir-lhe, dizendo que era emprestado. Não te precipites. Está claro que recusou o presente, pois o mandou para cá, certamente com o fim de que tu o visse e naturalmente indagasses do fato e soubesses do caso. Se ela fosse cúmplice, ele a teria encontrado certamente e não se enganaria comigo como se enganou. Não a viu e nem lhe falou. Clarice é uma rapariga muito sisuda e muito honesta; tem o meu defeito de brincar muito às vezes, mas é senhora: sabe respeitar-se e repelir insolências e ousadias.
AMÁLIA - E como ousou ele mandar-lhe este dominó, sem, ao menos, uma esperança?
JÚLIA - Porque o homem que não crê em si, também não crê na mulher. Perdido no deboche, sem Deus, sem fé, ousa tudo, e algumas vezes vence. Vence quando a miséria aspira ao luxo, e a pobreza ao ouropel da vaidade. Juliano sabe que Clarice gosta dos prazeres e do luxo; mas não sabe que o exterior daquela folgazona não é mais do que o grão de prata que engasta um diamante sem preço, como é o das suas virtudes. Conheço-a perfeitamente, porque é muito franca.
AMÁLIA - Por isso não é bom brincar.
JÚLIA - É verdade. Hei de ficar mais séria, pois não preciso de mais convicções. Oh! aquela gargalhada! Foi como uma apupada de selvagens, disparando flechas envenenadas! Ah! nunca mais... Vamos mudar isto: dá-me um dos teus vestidos.
AMÁLIA - Não ouves galopar ao longe? É ele, é ele, que aí vem muito contente, cuidando que me engana... Estou como louca, não sei o que faça?...
JÚLIA - Vamos para dentro, e prudência...
AMÁLIA - Quero matá-lo com um desengano agora mesmo...
JÚLIA - Temos tempo: para brigar nunca é tarde. Vamos, vamos... (Como que lutam, mas Júlia a leva para a alcova).
CENA IV
editarJULIANO
JULIANO - Estou acabrunhado! O movimento do cavalo e a frescura da manhã fizeram-me algum bem: bebi muito, bebi demais, mas tenho a cabeça aliviada. Bebi muito vinho e comi pouco. Vamos dormir, se eu puder dormir! Ah! é preciso dar tréguas a esta vida de lutas e de sobressaltos. A ociosidade, o amor próprio, uma vaidade ruinosa e a sociedade em que vivo arrojaram-me nesta vida e nesta comédia sombria, que poderá acabar em drama! Quem seria aquela dama que acompanhava Clarice? Desmaiou quando ou proferia esses lugares comuns, essas frases banais de todos os tempos! Não era Carolina, porque essa não desmaiaria; seria?... (Pensa) Não; é impossível! A tanto se não abalançaria. É tímida, e virtuosa, e cândida. Mas aqui há sempre alguma coisa de sério, porque Alfredo tomou a sua defesa heroicamente! É verdade que ele costuma dramatizar, às vezes, e faz-se o defensor extremo do belo sexo; mas ali houve alguma coisa bem significativa! O que lhe diria Clarice ao ouvido, que o fez ir logo buscar uma sege, embarcar nela as duas damas e desaparecer, como um relâmpago, sem dar-me uma palavra? Eu bem procurei penetrar aquele mistério, mas todos ficaram mudos, ou eu fiquei perturbado. Talvez que hoje à noite se decifre o enigma. Mas que lucro eu com tudo isto? Estou estragando uma saúde de ferro, minha fortuna e talvez a felicidade de um anjo de bondade e de candura! E tudo isto por vaidade de primar, e primar em quê? Depois que deixei o estudo, depois que abandonei os livros, não tenho aquela mesma paz e felicidade: o ócio, a fraqueza de ânimo e as condescendências estão me desgraçando! Vou parar com tudo isto. Vou para a fazenda de meu sogro passar lá um ano inteiro, junto de Amália; e, a pretexto de saúde, acabarei com esta vida de embriaguez e de torpor moral e de perdição. Albano já salvou-me uma vez, mas noutra?... E meu sogro, que é temível?... ai! ai! Vamos descansar. (À porta da alcova) Nunca penetro nesta alcova, depois de um engano destes, sem um certo pavor, sem todas as agonias do remorso! Ah! se eu pudesse purificar-me, purificar-me aqui mesmo, à porta deste santuário, onde repousa a mais pura e a mais bela de todas as mulheres; ah! se eu pudesse despegar de mim este ar e este fumo criminoso para envolver-me num globo atrativo de amor e luz, para subir à atmosfera de suas virtudes... Mas eu sou um grande miserável, um ingrato, um louco, e um marido desprezível! Estará ela dormindo? Escutemos!... Coragem, vamos; quase que não tenho ânimo de entrar...
CENA V
editarAMÁLIA e JULIANO
AMÁLIA - (Pondo a mão no peito de Juliano) Não entra, senhor, que não é digno de entrar aqui.
JULIANO - Que estavas fazendo aí?
AMÁLIA - (Muito alterada) À espera da hora da justiça.
JULIANO - Mas que é isto, senhora?!... Deixa-me entrar, Amália...
AMÁLIA - Não entra, que aqui esta é a minha alcova.
JULIANO - E a minha?
AMÁLIA - A sua? Não quero dizer; não quero sujar a minha boca.
JULIANO - Agora mesmo, neste instante, minha alma te perfumava com os mais sagrados pensamentos...
AMÁLIA - As almas que sagram, não hesitam. Medi o terror de teus pensamentos pela tua respiração, pelas tuas ânsias, por esse ofego, que embebe o ar de tenebrosas agonias, e derrama em torno uma atmosfera repulsiva. Saia daqui.
JULIANO - Mas que tens, meu amor, que delírio é esse?! Acalma-te...
AMÁLIA - Calma estou; porque a morte do coração é a da vida; (Forte) porque a morte d'alma é maior do que a de todo o corpo. Sabes o que eu sou?... Um cadáver, uma vitima da traição!...
JULIANO - Não te entendo; nunca te vi assim!
AMÁLIA - Não me entendes, sim, porque não sentes o que eu sinto.
JULIANO - Vamos, acalma-te;... vamos descansar...
AMÁLIA - Não entras, já te disse: esta alcova é minha. Nunca me viste assim? Nunca, porque eu estava cega,... porque estava na escuridão.
JULIANO - (À parte) Bem mo dizia o coração! Era ela!...
AMÁLIA - ... cega, mas agora?... Eu vi... (Soluça e chora)
JULIANO - Se tens queixas de mim, se tens graves ofensas, escuta-me. e...
AMÁLIA - Não tenho mais que escutar, porque vi e ouvi...
JULIANO - ... guarda o teu ressentimento para mais tarde; invoco a tua prudência, a tua generosa bondade, e... o teu amor! Sufoca estes ímpetos; castiga-me com o teu desdém, com o teu desprezo, se quiseres; condena-me à sorte cruel de viver contigo como um irmão, mas não prorrompas com todas as violências do ódio e do despeito; e não dês causa ao mundo de se deleitar com mais esta desgraça... Eu quero viver contigo...
AMÁLIA - Como um irmão? Tu sabes o que é ser irmão?! Pois eu te amava, como irmã, como filha e como amante... (Chora)
JULIANO - Eu quero justificar-me...
AMÁLIA - É impossível...
JULIANO - (De joelhos) Amália, não me mates, por quem és...
AMÁLIA - (Energicamente) Levante-se, monstro, e não venha parodiar a cena que há pouco representava no teatro de suas torpezas.
JULIANO - Amália, tem compaixão de um desgraçado... arrependido...
AMÁLIA - Quando o cinismo se alia ao crime, completa a malvadez. Os maus não se arrependem.
JULIANO - Tranqüiliza-te... Tenho muito para dizer-te...
AMÁLIA - Não tenho que ouvir. Responde: para quem fora aquele dominó branco?
JULIANO - Aquele dominó branco?!
AMÁLIA - Que me trouxeram aqui?
JULIANO - Para quem seria;... pois para quem era, se o trouxeram para aqui?
AMÁLIA - Seja franco, ao menos uma vez na vida.
JULIANO - (Levantando-se) Já o disse...
AMÁLIA - Não o disse; e basta de mentir. Dê por finda a comédia e responda-me: quero saber para quem era aquele decoro!
JULIANO - E para quem mais seria se não para ti...
AMÁLIA - Cobarde! Já se atirou no lodo com o diadema da dignidade, com a coroa da verdade; já não tem pejo, nem... nem vergonha.
JULIANO - Não me aviltes, não me insultes, que eu...
AMÁLIA - Que eu o quê? Não tenho medo de ti. Sê brutal, muito embora; mas lembra-te de que a brutalidade não salva a ignominia...
JULIANO - Não me provoques, não me faças perder o decoro!
AMÁLIA - Não tenho medo. Quando a mulher se eleva, reúne todas as forças do céu e com elas abate o homem, e o confunde no charco imundo de seus convícios. (Juliano a segura no braço, mas recua com a chegada de Alfredo)
CENA VI
editarALFREDO, JULIANO e AMÁLIA
ALFREDO - (Muito açodado) Ora vivam!... Minha mulher não está aqui?
JULIANO - Não. (Grande pausa; Alfredo observa-os)
ALFREDO - A Júlia não está por cá?
JULIANO - Não sei.
ALFREDO - (À parte) Estão na vinagreira! Assim estarei eu logo mais... (Alto) Então, como a Júlia... sim... boa noite... (À parte) Safa...
CENA VII
editarAMÁLIA e JULIANO
AMÁLIA - (Depois de largo silêncio) Estamos separados d'alma, pelo destino, e o seremos de corpo pela lei.
JULIANO - Que estás dizendo, louca?
AMÁLIA - Estamos separados por toda a vida. Quero desquitar-me.
JULIANO - Eu não me separo, porque não quero, não devo, e porque te amo.
AMÁLIA - Que horror! Eu não amo essa mulher! Eis a minha sentença de morte, eis o que disseste ao dominó branco.
JULIANO - Nego, não disse tal; nunca o disse, nem o poderia dizer...
AMÁLIA - Ignomínia sobre ignomínia! Pois tu o não disseste?
JULIANO - Juro que...
CENA VIII
editarJÚLIA, JULIANO e AMÁLIA
JÚLIA (Com o dominó branco) - Não jures falso, Juliano, que o perjuro é dos infernos.
JULIANO - (À parte) Clarice! Traição feminina...
JÚLIA - Pensaste que a pobreza é a porta de todos os crimes, e que a mulher é um joguete de caprichos criminosos. Disseste-o, ouvimos, e não jures o contrário.
JULIANO - Quem é esta mulher? (Vai indo para ela com a mão no ar)
JÚLIA - Não me toques, porque sou uma mulher honrada...
AMÁLIA - Nem mais um passo. (Interpondo-se)
JÚLIA - ... e por que tenho um marido para te castigar.
JULIANO - Usa da tua voz, que aqui não é teatro.
AMÁLIA - O grande ator ainda não deixou a cena: estamos no teatro.
JULIANO - Queres intrigar-me com teu marido, depois do que acabas de fazer? As senhoras honradas procedem de outra maneira.
JÚLIA - Assim procedem. Toma a tua carta, o teu processo, que estava aqui (Na algibeira do dominó) e pede perdão a tua mulher. (Amália toma-lhe a carta)
JULIANO - Tudo se complica! (Cai sentado) Vamos à verdade, que é mais segura. (Amália lê a carta com ansiedade. Quase que desfalece)
AMÁLIA - É bem a sua letra; é toda a sua perfídia! Quero saboreá-la em voz alta...
JÚLIA - Não leias essa elegia da mentira; essa violência do crime, mascarada pela perfídia de um falso amor.
AMÁLIA - (Lendo) "O que farei neste mundo para merecer-te um sorriso, minha adorada Clarice?" Assim começou ele uma das primeiras cartas que me entregou! "A minha vida seria vida se fosse uma esperança e não este contínuo ansiar, este desespero, esta escuridão, esta incerteza e estas agonias que superam todos os horrores da morte. Se eu fosse um desses espíritos celestes, que lêem os corações como se lê no diamante as cores do céu..." Basta, é uma cópia; saiu da mesma fábrica que me iludiu. Bem me dizias, Júlia, que as orgias do coração viciam o talento! Os homens são muito desprezíveis.
JULIANO - (Erguendo-se) Júlia! Será possível?!
JÚLIA - (Tirando a máscara) Eu mesma; e agora? (Dá o subscrito da carta a Amália) Antes que vás mais longe, lê o que aquela honrada Clarice aqui escreveu.
AMÁLIA - Não vejo nada; tenho a vista escurecida. Lê.
JÚLIA - (Lendo) "Enganou-se; guarde o seu presente; e não venha mais a esta casa, e se o fizer, meu marido o receberá como merece. Clarice." Está assinada e é letra dela.
JULIANO - Assim, minha cunhada, assim! Sempre a tratei com tanto respeito e agasalho; sempre a tive por amiga e hoje...
JÚLIA - Não é novo, nem extraordinário o ver-se o amigo da manhã convertido no inimigo da tarde. O presente desfez todo o passado.
CENA IX
editarTIBÚRCIO, JULIANO, AMÁLIA e JÚLIA
TIBÚRCIO - A senhora D. Clarice está dormindo; voltou cansada do baile. O senhor Alfredo tem andado como louco e a chorar, em procura da senhora D. Júlia. Bateu por todas as portas, e até foi à casa do senhor Bernardo, que estava almoçando e pronto a partir para a fazenda; eles aí vêm com muita aflição.
AMÁLIA - Meu pai! Que felicidade!
JÚLIA - Assim é que eu o quero. Há de pagar-me tudo.
JULIANO - Sabemos tudo. Retira-te, depressa.
CENA X
editarBERNARDO, ALFREDO, JULIANO, AMÁLIA e JÚLIA
AMÁLIA - Meu querido pai. (Beija-lhe a mão)
JÚLIA - A bênção, meu pai? (Beija-lhe a mão)
BERNARDO - Eu bem disse que estava aqui! Pois aonde mais estaria, saindo com a irmã do baile? Esta sua cabeça, senhor Alfredo, esta sua cabeça!... Pois para onde Iria minha filha? Fale...
ALFREDO - Mas eu vim aqui e... e não a vi...
BERNARDO - Não a viu, logo não está; como se a casa fosse de vidro! E já castelos no ar e quanta coisa pode passar por uma cabeça leviana! E fez-me susto; porque mandei parar a bagagem, e agora perco este trem, deixando os cavalos e os outros animais à espera em Belém, o que é tudo uma desordem. (Para Júlia) Ah! tu não viste, que girândolas perdidas, que foguetes saíam daquela cabeça; e, já se sabe cada um rebentando a seu modo, estourando um despropósito no campo de todos os disparates. Não sei o que foi fazer à Europa! Então? É ela ou não é?
ALFREDO - É ela mesma, e estou sossegado.
JÚLIA - O barulho do baile estonteou-o e a multidão das luzes o deslumbrou.
ALFREDO - Mas eu vim aqui primeiro e disseram-me que cá não estavas. Não tenho culpa deste engano. (À parte) Obra do senhor Juliano. (Para Júlia) Agora que tudo está acabado, vamos, que eu hoje quero dormir até a hora do jantar.
JÚLIA - Eu estava lá dentro. Há momentos em que... (Devorando-o com os olhos)
ALFREDO - Sim, bem sei que vim em maus momentos...
BERNARDO - Pois houve alguma coisa séria?
ALFREDO - Houve, ... houve o que quiserem... mas não houve nada de sério.
JÚLIA - Vem cá dentro, que te quero mostrar uma coisa, anda, vem cá.
ALFREDO - Espere, que seu pai já vai sair.
BERNARDO - Como lhes disse anteontem, parto; e só virei por cá, se vier, depois da safra. A cada dia sinto crescer o tédio que tenho à cidade: está muito grande e muito cheia de coisas. Adeus, meninas, até a volta; adeus, meus senhores.
(Amália chora e se abraça com o pai) Mas que é isto? Menina, tu tens alguma coisa?!
AMÁLIA - Espere, que eu vou aprontar-me: eu parto com vosmecê.
JULIANO - E eu também.
BERNARDO - E porque não me preveniram? Não pode ser hoje, porque só tenho lá condução para um, e não há mais; o resto são bestas de carga e vocês não podem ir assim...
JULIANO - Ficaremos à espera em Belém, se não houver cavalgaduras de aluguel...
BERNARDO - Meus filhos em cavalos de aluguel! O que está dizendo?!
AMÁLIA - Quem parte sou eu somente, meu pai; é sua filha quem vai, e não aqui o senhor...
JULIANO - Amália! O que é isso?
AMÁLIA - (Apoiando a voz)... e não aqui o senhor, que tem muitíssimo que fazer na cidade.
BERNARDO - Temos arrufos? Pois o que é que temos, vamos lá com essas bagatelas? (Assenta-se)
JULIANO - Coisas passageiras, zelos bem perdoáveis.
BERNARDO - Saiu à mãe em corpo e alma! Era um composto de todas as perfeições, e seria um anjo se não tivesse esse defeito. As vezes custava-me a sofre-la, porque era injusta.
JULIANO - A filha não é menos virtuosa.
AMÁLIA - Não é injusta, é desgraçada. Desgraçada, meu pai, e muito desgraçada! A mais infeliz de todas as mulheres.
ALFREDO - Ora, cunhada, isso agora é exageração.
JÚLIA - Cale-se.
BERNARDO - (Levantando-se) Desgraçada! Pois tu és desgraçada? Como é isso agora e repentinamente? Julguei-te sempre feliz e bendizia a tua escolha...
AMÁLIA - Escolha funesta. A vara mágica dos meus sonhos era uma serpente; o cordeiro não era mais do que um lobo disfarçado.
BERNARDO - Está bem, sossega, que tudo isto há de passar. Fica, que eu daqui a um mês te virei buscar. Vou preparar a estrada na fazenda, a fim de que desembarques de caleche na porta, como o faz o meu vizinho marquês.
JULIANO - Essa viagem será mais agradável.
ALFREDO - Assim, até eu quero ir. Vim mal acostumado da Europa.
AMÁLIA - Devo partir, meu pai, e o quanto antes. Não posso ficar nesta casa e se me obrigarem a isso, morrerei. Já pronunciei o meu divórcio.
BERNARDO - O teu divórcio! Divórcio, por quê?
JULIANO - Minha Amália, não te abandones a tanto excesso! Não dês desgostos a teu pai, ao teu melhor amigo.
BERNARDO - Divórcio! Tu não sabes o que é um divórcio.
AMÁLIA - Sei; é o inferno da mulher na terra, quando o marido tem razão; mas aqui, meu pai, é diferente e bem diferente.
BERNARDO - Olha que o divórcio é a morte social de dois entes; a quebra de uma jura, de um sacramento.
AMÁLIA - Não quebrei juras, nem profanei o sacramento. Deus me está ouvindo!
BERNARDO - Estou certo, porque do contrário não terias mais pai. Mas que é isto, senhor Juliano? Então? Não se justifica?! Se o não fez em particular, faço-o agora, somos todos de casa, e amigos...
AMÁLIA - O inferno só tem argúcias para enganar e não para destruir a verdade. A ocasião é oportuna e o juiz imparcial.
JULIANO - Pois o senhor seu pai, um homem grave, deve entrar nestas coisas?
BERNARDO - Está bom, está bom; adeus meninas: um abraço. A roupa suja lava-se em casa e às escondidas. (Amália enfia o braço no do pai)
AMÁLIA - Adeus, Júlia. Não chores por mim, quando eu morrer, reza somente; porque a oração sobe e o pranto desce. (Juliano a segura no braço, mas ela o repele energicamente) Não me toque, senhor, que lhe não pertenço mais. Sou uma desgraçada que saiu de casa de seu pai, enganada por um monstro, mas que agora volta arrependida; um pai é sempre bom, porque é o imediato de Deus sobre a terra.
BERNARDO - Quero isto claro, e bem claro: basta de acusações vagas.
ALFREDO - Não digas nada, mana, porque é feio... Júlia, vem ajudar-me a pedir a tua irmã que se cale; tu podes tanto nela e sabes tão bem falar... Eu só me contento com uma palavra...
JÚLIA - Contente-se com o meu silêncio, agora, que não é pouco; e tome conta em si.
BERNARDO - Pois também há por lá coisa? Parece que a moléstia é geral.
JÚLIA - Este, ainda o salvei a tempo, porque é mais simples.
ALFREDO - Está sempre com gracinhas; porque sabe que lhe quero bem. (Para Juliano) Fala, homem, que esse teu silêncio!... Bota esse orgulho na rua.
JULIANO - Confesso que tive um erro, um erro grave aos olhos de uma senhora; tive uma alucinação passageira, um desvio, um crime, se quiserem, mas espero que será esquecido pela senhora sua filha,...
AMÁLIA - Nunca.
JULIANO - ... em quem reconheço todas as virtudes de uma perfeita senhora.
BERNARDO - Assim deve ser; e eu espero que esse erro...
AMÁLIA - Não foi um erro, meu pai, nem uma alucinação, nem um crime passageiro, foi um plano de refalsário, uma abominação contínua. Uma mulher que se estima pode esquecer o abandono, a traição e o renegá-la seu marido no meio de uma orgia? Não meio de uma dessas saturnais, em que se consome o dever, a honra, o dote que seu pai lhe dera e se prostituem todos os vínculos sagrados, e o juramento entre esposos?! Ninguém mo disse, meu pai, eu vi e eu ouvi! Este homem há um ano que me ilude, e de que maneira?!
BERNARDO - Vejo que é o caso grave, e que o senhor Juliano...
JULIANO - Prometo emendar-me e ser doravante um outro.
BERNARDO - Estou satisfeito. Aceita, minha filha, este arrependimento sincero.
AMÁLIA - Não, meu pai, porque não é sincero. Aquela língua é de goma elástica, estende-se, enrosca-se, mas não tem firmeza. É uma lâmina que se dobra, mas quando se desdobra é para matar. Este homem é o maior hipócrita do mundo, e de uma tal habilidade, que chegou-me a convencer de que era lobisomem, para não dormir em casa e andar por aí...
BERNARDO - Pois tu és tão simples que acreditaste?
AMÁLIA - Os meses têm trinta dias, e destes apenas o via em casa cinco ou seis noites; o resto era consumido em deboches contínuos. A nossa mesa foi-se reduzindo de dia em dia, porque o dinheiro que vosmecê lhe entregou, se ia por outras vias! Aquelas minhas visitas a sua casa, na hora do jantar, não eram as de uma filha, mas sim as de uma desgraçada faminta; e aquele apetite era o da cólera e o do disfarce. A minha alegria era fingida, era uma máscara porque o meu coração era um vaso de amarguras. Ele que o diga, se me ouviu uma só queixa, uma só palavra, uma só lágrima?
JÚLIA - A tanto não avaliei os teus sofrimentos.
AMÁLIA - Só, e só aqui, consumia dias de pranto, horas de fome e momentos de desespero. Eu, a filha de Bernardo José da Silva, morrendo de fome e vendo o suor de meu pai esbanjado em vícios, evaporado em licores consumidos nos lábios de quanta mulher devassa infama as ruas da cidade?! É isto ser esposo?... Ainda tenho pai e, graças a Deus, não perdi a sua estima. Meu pai, dê-me um abraço e um beijo, porque ainda os mereço.
BERNARDO - Vamos, minha filha, que eu saberei consolar-te.
JULIANO - Esperai, senhor, esperai. Amália, não me abandones, porque morrerei de dor! Amália, já sou outro homem. Eu quero acompanhar-te como um escravo, como uma vítima que expia no cativeiro os seus crimes, e o tempo,
o grande e seguro revelador de todas as verdades, te mostrará o meu arrependimento.
AMÁLIA - Fujamos, meu pai, daquela língua, que é como esses frutos cheirosos que dão a morte a quem os prova. Não se iluda, que é a onça imitando o canto do inocente macuco.
ALFREDO - (Para Juliano) Não a deixes partir. Atira com o orgulho no chão, ajoelha-te. (Pesa-lhe no ombro)
JULIANO - (De joelhos) Não me deixes, Amália, porque morro. Longe de mim, quem compartilhará teus males?
AMÁLIA - Meu pai, que me ama; meu pai, em cujo seio encontrarei aquela serenidade do céu imaculado; aquela paz, aquele refúgio por onde não cruzam os tufões e os raios da ingratidão. As tuas palavras, os teus excessos não são mais do que outros tantos enganos calculados, como aqueles em que caiu este coração inocente. Estás conjurando a riqueza, porque temes voltar à miséria: fica com o meu dote, que me não serve em casa de meu pai. Lá, eu tenho tudo.
JULIANO - A tua dor é grande, porque te desconheço...
AMÁLIA - Cuidei achar em teu seio aquela existência que me pintavas com o fogo do inferno, cuidei entrar nesses êxtases de felicidade, nesse paraíso da amizade e do amor com que me fascinaste, mas enganei-me, e oh! muito que me enganei! Arrancaste a vítima, despojaste-a das brancas vestes da virgindade, pisaste a coroa sagrada do himeneu, rasgaste o véu da esposa e cuspiste no altar. Aquela grinalda celeste, tecida da matéria dos astros que me prendia a uma vida, a um sonho de venturas, ao céu, é hoje um símbolo da morte: mirrou-se na fronte da manceba... como tu, que morreste! Não te quero mais bem.
JULIANO - Tens razão, Amália, tens toda a razão. (Com força) Despedaça-me esta cabeça, mas respeita o meu coração. Levado pelos maus exemplos, pelo contato perigoso, pela ociosidade, pelo falso orgulho, e pela febre imitativa que leva o homem ao delírio e à loucura, mergulhei-me no lodaçal do crime, nesse charco brilhante, semeado do ouropel de todas as vaidades; falsifiquei palavras, não os sentimentos, blasfemei contra o teu amor, contra a tua santidade, mas oh! nunca em mim baixaste das alturas em que brilham tuas virtudes; nunca te precipitei daquele santuário em que o céu te colocou para minha admiração. Deus me está ouvindo, e ele bem o sabe. Por tua mãe, que nos ouve agora, pela paz de sua alma; por teu pai que nos honra com sua compassiva bondade; por todos estes exemplares sagrados, por todos estes amores tão santos e tão respeitáveis, não me abandones, Amália, não me deixes assim morrer. Sê minha outra vez, Amália, e vem com teus dotes celestes regenerar esta alma, que se levanta agora da perdição, para subir à esfera da perfeição e da felicidade! Sim, sim, minha querida Amália... (Ambos choram e todos limpam as lágrimas. Pausa, e ele continua:) Sim, sim, minha querida Amália.
CENA XI
editarDOUTOR ALBANO e os mais
(Juliano levanta-se)
DOUTOR ALBANO - Ora muitos. bons dias, meus amigos. (Olha espantado para todos) Como vão?
JÚLIA - Foi engano, não temos doentes na casa, senhor doutor.
DOUTOR ALBANO - Vim aqui para outro mister. Venho chamar o senhor Juliano, a pedido do nosso amigo Barão, que está às portas da morte.
BERNARDO - Pois o que é que lhe sucedeu! Ainda ontem à tarde jogamos o gamão e ele estava nas melhores disposições de saúde! Bem diz lá o ditado: para morrer basta estar vivo! Mas que tem ele, que moléstia?
DOUTOR ALBANO - Uma forte indigestão. Está mal, muito mal, e receio bastante pelos seus dias.
ALFREDO - Se ele ontem à noite comeu e bebeu como um alarve!
DOUTOR ALBANO - Aonde? Só se foi em casa. Coitado! Vive na mais rigorosa dieta, nunca ceia e nem mesmo toma chá! Não posso adivinhar do que lhe proveio semelhante indigestão!
JÚLIA - (À parte, para Alfredo) Pois não era ele um dos lobisomens? Juro que o vi lá sentado.
ALFREDO - (Para ela em voz baixa) Estava sentado à direita deste inocente e em companhia lírica.
BERNARDO - É verdade que ele é de um belo parecer, vermelho e um tanto colérico...
DOUTOR ALBANO - Um tanto sangüíneo; e, por sabê-lo, vive com o prumo na mão...
ALFREDO - (À parte) Com a garrafa e o copo... e tu que o digas, maganão.
DOUTOR ALBANO - ... e como se fora um doente. É homem que se deita muito cedo; nunca anda fora de horas; vive engaiolado ao pé da sua querida metade, que faz inveja a todos. Venha, senhor Juliano, porque é tempo; mais tarde será inútil, poderá a congestão...
JULIANO - Daqui a pouco lá irei; estou agora com um negócio muito importante. O senhor Bernardo parte para a fazenda e temos negócios...
ALFREDO - (Para Albano) Está mal o nosso Barão? Muito sinto. (À parte) Isto é que se chama ser amigo! E com que carinha? (Alto para Albano) Então está o caso feio? E aí está, fiem-se lá em dietas!
DOUTOR ALBANO - (À parte) Parece-me que o caso está mais feio por aqui. (Para Juliano) Não perca tempo, meu amigo, que é uma de caridade e de dever.
AMÁLIA - Eis o fruto das orgias! O senhor grão-mestre dos lobisomens tem largas contas que dar a Deus e sérias à sociedade.
DOUTOR ALBANO - Que está dizendo, minha senhora? Eu não a entendo!
BERNARDO - É o que vê, senhor doutor; minha filha quer divorciar-se, e isto dilacera-me o coração.
JULIANO - Amália, crê na sinceridade do meu arrependimento.
AMÁLIA - Decidi partir e não mudo de resolução. Morri de corpo e alma; considere-se livre e viva como quiser. Vamos, meu pai.
DOUTOR ALBANO - Perdão, senhor Bernardo. A senhora quer ir agora para a fazenda?
BERNARDO - Quer, e dou-lhe toda a razão.
DOUTOR ALBANO - Não consinta nisso de modo algum. A senhora D. Amália está num estado muito interessante e perigoso e, assim, não deve montar a cavalo.
JULIANO - (À parte) O céu se compadece de mim.
AMÁLIA - Que tem o senhor doutor comigo: não sofro nada e nada tenho.
DOUTOR ALBANO - Tem, minha senhora, tem; e eu tenho obrigação de o dizer, apesar de que a senhora simule o que bem sabe.
AMÁLIA - Nada sei e nada simulo.
DOUTOR ALBANO - Sou médico, e o declaro na família: essa viagem pode acarretar duas mortes.
JULIANO - Eu, por certo, que morrerei.
DOUTOR ALBANO - Três! E quando menos a de seu filho ou filha, minha senhora.
AMÁLIA - Céus!
DOUTOR ALBANO - E assim prevenida, se o fizer, comete mais do que um erro. Senhor Bernardo, a senhora sua filha traz em seu seio um fruto, que é seu neto.
JULIANO - Pois Amália está em caminho de ser mãe?! Eu de nada sabia!
DOUTOR ALBANO - Guardei este segredo porque a ela pertencia revelá-lo.
AMÁLIA - O senhor nunca me falou de uma maneira afirmativa.
DOUTOR ALBANO - Nem o podia dizer na primeira consulta, mas disse-o na segunda e da maneira a mais clara. Marquei-lhe o tempo e disse-lhe o que se costuma às senhoras respeitáveis. Declaro que a senhora D. Amália está grávida.
BERNARDO - Assim, minha filha, não deves partir; não consinto. (À parte) Agora se explica toda esta exaltação!
JULIANO - (Indo para Amália) E eu ignorava tão grande ventura. Amália... (Amália o repele)
BERNARDO - Amália, irás comigo. Não chores, minha filha.
JULIANO - Para a fazenda não, não é possível.
BERNARDO - Para minha casa. Já não vou para a fazenda, fico na cidade.
JULIANO - Meu pai, por quem é, não me roube Amália. Agora tenho mais outro motivo para emendar-me.
BERNARDO - Veremos. Dizem que o tempo é médico tardio e que cura radicalmente todas as moléstias. Veremos.
AMÁLIA - Muito bem, meu pai. Vamos, fujamos desta casa.
JULIANO - Amália, não infundas sobre essa criatura um ódio criminoso. Deus perdoa aos arrependidos e tu deves imitá-lo; tu em quem sempre admirei todas as virtudes da mulher! Fica, que eu dou a teu pai por meu fiador.
BERNARDO - Veja lá o que diz! Olhe que serei implacável.
JULIANO - (De joelhos) Juro por vossas respeitáveis mãos, que beijo, juro pelo novo amor que em mim se abre, agora mesmo, por esse fruto, por essa criancinha, que virá santificar-me com seu sorriso e com sua inocência, e conduzir-me à verdade de esposo, de pai, e de homem de bem. Juro pelas virtudes de vossa filha, juro por Deus, que está vendo o meu arrependimento... Meu Deus e meu Senhor, matai-me neste instante se eu não falo a verdade!
BERNARDO - Minha filha, então, que dizes? Isto parece-me sério. Olha que eu fico por fiador e aqui hei de vir todos os dias conversar contigo. A mais pequena coisa, estará tudo acabado; porque eu cá não brinco. Então?... Responde-me.
AMÁLIA - Ficarei, meu pai... mas...
JULIANO - Amália, dá-me a tua mão...
AMÁLIA - Ainda não, senhor lobisomem!
JULIANO - Esperarei, esperarei pela minha futura felicidade. (Levanta-se)
DOUTOR ALBANO - (Para Alfredo) Quem diria, que esta tímida criatura, que esta menina havia de matar a nossa tão bela sociedade. Há sempre uma Lucrécia em todos os desastres. Isto está sabido, e não há remédio para ela.
ALFREDO - Está morta, e morta para sempre. Será bom enterrá-la já, antes que lhe exponham o cadáver à irrisão púbica.
JÚLIA - (Entre os dois e por trás) E nem ao menos um epitáfio, uma pedra em forma de garrafão ou de empada?
DOUTOR ALBANO - (À parte) Este espalha-brasas (Olhando para Alfredo) foi quem nos fez a brecha. Não lhe vejo remédio. É pena.
BERNARDO - Vamos todos para minha casa; quero-os todos comigo hoje.
JÚLIA - Eu ainda tenho umas contas aqui com o senhor Alfredo.
ALFREDO - Não falemos mais nisso; não há mais lobisomens; está tudo pago e acabado, não é assim, grão-mestre?
DOUTOR ALBANO - Estamos desencantados. Agora vamos ser homens.