Vinha surgindo o sol, vermelho como uma brasa, no meio da quietação mórbida da natureza.

Grupos e grupos, maltrapilhos e esgroviados desfilavam praguejando contra o destino e contra os homens. Iam e vinham da mesma direção: um pano grande de areia de cor intensamente hidrargirada, no meio do qual havia uma escavação, em que manava um olho de água.

Nos que de lá voltavam reinava o mesmo desgosto que mostravam os que para lá se dirigiam; todos eram acordes nas lamentações e paravam para cruzar doestos e pragas às autoridades do lugar.

— É mesmo para fazer ferver o sangue de um santo: os cavalos do sr. vigário têm mais direito do que nós!

— O comissário manda tirar barris e barris para os seus amigos; os pobres que morram à sede.

— Há de dizer-se que a água é deles; que não brota da terra para todos os cristãos.

— Uma pouca vergonha: família em que há mulher bonita não sente faltas; a água aumenta logo pelos seus bonitos olhos.

— Corja, mil raios os partam!

— E o diabo do comissário é quem atiça o vigário. Ainda este vá, porque precisa dos cavalos para levar o sacramento; mas aquele velho delambido só para agradar os seus amigos; é um desaforo!

— Um cancro lhe roa o bandulho para que saiba se é bom ou não sofrer.

Eulália, entrando no povoado, teve de atravessar esses grupos, e ouvindo-os estremeceu pelo futuro que a esperava.

Envergonhada por se ver só, vestida tão pobremente, com o vestido de chita com que saíra de casa, quase descalça, cumprimentava a todos para ver se a curiosidade hospitaleira da província dirigia-lhe perguntas, e assim tivesse ela ocasião de dirigir outras. Os grupos desatentos, porém, passavam sem reparar em si.

Continuou, pois, a caminhar silenciosa até a igrejinha que ficava no meio do povoado, e cujas portas abertas deram-lhe a esperança de encontrar com quem falasse.

Entrou pela tosca nave coberta de telha vá e foi ajoelhar-se entre umas dezenas de pessoas, que aí estavam. As queixas que ouvira lá fora continuavam dentro do templo.

— É porque os pais de família não querem; senão aquele velho descarado deixaria a comissão. Onde é que se viu uma vadia, como a tal Mundica, ser dona de uma terra e governá-la assim?

— Qual, dona, os homens nada podem fazer; o meu homem, que é entendido em política, diz que ninguém pode com o velho, porque o partido dele está de cima e ele é quem é o chefe aqui.

— Forte peralta é a tal bicha!

— Uma atrevida!

— Veja o que ela fez com aquela pobre família de luto, que dizem ser a de um professor?

— Ameaçou-a com chicote, não é?

— Qual ameaçou?! Mandou metê-lo, e a velha e uma mocinha, se não quiseram ficar lanhadas, tiveram de fugir, deixando até perdida, entre o povaréu, uma criancinha de uns quatro anos.

— Isto há de ter um fim, seja qual for; não pode continuar.

— Do céu venha remédio; se não houver outro recurso, faz-se na vadia o mesmo que ela mandou fazer à família.

— O que diz o vigário a isto?

— É um mole; quer estar bem com todos. Agora então ninguém poderá obter dele nada. Está com hóspede.

— Não há de ser de grande importância, porque o vigário ainda não saiu com ele a passeio.

— Pois as pessoas da casa não dizem o mesmo. Na mesa eles tratam-se por colega, ainda que o hóspede tenha os cabelos da coroa e a barba crescida.

— Então é segredo que eles querem guardar.

— Deve ser, porque o vigário nunca diz o nome do hóspede. É colega para lá, colega para cá.

— Quer que lhe diga uma coisa? Se formos à casa do vigário fazer uma queixa em regra, ele talvez tome providência agora, para não parecer fraco aos olhos do outro.

— Nós conversaremos: a tal Mundica é que não pode continuar aqui.

Eulália bebia com voracidade todas as palavras das duas interlocutoras. O nome de Mundica, o padre que se escondia na casa do vigário impressionavam-na vivamente.

— Quem sabe se não são eles? - pensava Eulália. - Devem ter parado aqui.

Demais uma circunstância a sobressaltava com uma suspeita pavorosa: Mundica tinha mandado açoitar a família de um professor. Não seria esta família a sua?

A infeliz retirante não pôde mais conter-se e dirigiu-se a uma das interlocutoras.

— A senhora não sabe o nome da família?

— Não perguntei, mas é fácil saber no abarracamento.

— E você não é de lá - perguntou a outra interlocutora -, não é retirante?

— Sim, senhora - respondeu Eulália cujas faces quase sangraram de vexame pelo qualificativo; - mas ainda não entrei para o abarracamento.

— É fácil, quando acabar a missa vá ter com o vigário.

A campainha tangida repetidas vezes anunciou o começo da missa e a igreja encheu-se do sussurro das saias das mulheres que se ajoelhavam. O vigário Belmiro apareceu na capela-mor revestido de branco, segurando com uma das mãos o cálice e pousando a outra sobre o véu e a bolsa.

— Vê? É aquele o sr. vigário, muito bela pessoa; vá ter com ele.

Eulália agradeceu a indicação e ajoelhou-se devotamente para suplicar aos céus que lhe afastasse o golpe, que as palavras das duas mulheres lhe anunciavam iminente. As duas interlocutoras calaram-se também por algum tempo, mas para logo começaram a cochichar.

— Lá está o comissário; quem dirá que ele é quem é? Brejeiro!

— Homem que reza muito dá sempre em vadio; eu tenho conhecido uns poucos assim.

— Eu só quero ver como ele se tira desta alhada; não queria estar no pêlo dele.

— Ora, tudo se esquece, e, se ele tiver a repentiva de pôr ao campo a vadia, ninguém lhe fala mais nas chicotadas.

— A verdade é que as mulheres que as levaram, levaram e nem Santo Antônio as tira.

Depois de haver desfiado, pachorrento e demorado, todo o latim da missa, o vigário Belmiro, fazendo profundas reverências, retirou-se para a sacristia, acompanhado pelo comissário.

Eulália levantou-se logo para ir ter com aquele que devia dar-lhe informações que a torturassem ainda mais ou que lhe serenassem o ânimo. À porta da sacristia, porém, o sacristão deteve-a com uma frase imperiosa e grosseira:

— Olá! Não vê que está aqui gente a conversar? Espere, se quiser falar.

A moça não respondeu e esperou.

— Digo-lhe que não é mais possível demorar esta gente - ponderava o comissário; - a água não chegará nem mais para uma semana, vai diminuindo como se a chupasse uma esponja.

— Cava-se noutro lugar; não lhe parece que Deus não há de permitir que esteja tudo seco por esta vizinhança de umas duas léguas?

— Tem-se cavado tudo, homem, nem tão descuidado sou eu, mas a água é uma pilha de sal. O que quer você que lhe faça? Deus não há de permitir; mas lá se vai um ano de seca.

— Experimente sempre, teime, porfie; bem vê que, se for por essas estradas fora, de todo o povaréu que está no povoado não escapam cem pessoas.

— Por minha parte não faço mais nada; demais, dizem que o novo presidente não quer que continuem as comissões no interior; não estou para perder trabalho. De hoje até amanhã teremos notícias do Ceará e o vigário verá se estou mentindo.

Mas, enquanto não chega, vai-se fazendo uma obra de misericórdia.

— Eu não admito mais uma só pessoa no abarracamento.

— Salvo se for mais bonita do que a Mundica, não é verdade?

Riram-se ambos, e, como o vigário já se houvesse desrevestido, dirigiram-se para a porta.

Eulália saiu-lhes ao encontro e formulou o primeiro pedido ao vigário.

— Eu sou retirante - murmurou envergonhada -, e venho pedir a Vossa Mercê que me mande entrar para o abarracamento.

— Filha, isto não é comigo - respondeu o bonachão do Belmiro; - aqui está quem pode mandá-la para lá.

— É só por um ou dois dias - acrescentou Eulália -, eu sigo viagem para o Ceará.

— É a cantiga de todos - sorriu o comissário; - já não caio. Com muito gosto se não fosse ter de cessar com os socorros. De hoje em diante é impossível.

— Eu peço porque não conheço ninguém aqui, e não sei os caminhos para seguir viagem.

— Tanto pior para você, minha filha - observou o comissário. - O que lhe hei de eu fazer? O que não tem remédio...

— Remediado está - disse o vigário, acabando a frase.

— Venha comigo que eu lhe arranjarei onde passar os dois dias. Serve-lhe?

Eulália meneou a cabeça afirmativamente e acompanhou os dois poderosos da localidade. Toda a conversação das duas mulheres afluía-lhe tumultuariamente à memória, impondo-se-lhe como verdade, e Eulália mal podia conter a impaciência que a impelia a perguntar ao pároco o nome do seu hóspede.

— Aqui está a casa onde vai ficar; entre - disse o vigário e gritou da porta: - ó mana, ai vai uma filha de Deus para dormir duas noites.

A mão carnuda de Belmiro foi bater no queixo de Eulália acariciadoramente, e ele acrescentou:

— Agradeça-me, hein? Não seja ingrata.

Embora a liberdade tomada pelo pároco a houvesse magoado, embora o pudor da mísera retirante se houvesse ofendido, Eulália entrou com semblante alegre.

O que lhe importava não era o pensamento oculto do pároco, mas saber se a família do professor tinha alguma relação com a sua.

O dia, porém, passou desaproveitado para a sua missão. Falou-se por diversas vezes no fato, que era o principal assunto de todas as conversas, mas ninguém sabia o nome das mulheres que tinham sido vitimas da violência brutal de Mundica e dos guardas do abarracamento. A noite, mais propícia, preparou para Eulália a certeza que ela devia obter.

Mundica, assenhoreando-se dia a dia do ânimo do comissário, preparava o caminho para estabelecer-se inteiramente ao lado dele. Não passava um dia sem que, a pretexto de esmola, fosse à casa do apaixonado viúvo e lhe exacerbasse a paixão com a prodigalidade de carícias. O último acontecimento, porém, fechou-lhe de dia as portas da casa comissário, que, para acalmar a opinião pública, aparentava ter-se afastado da amante, e de tal forma que ele não visitava mais os cubículos por ela ocupados no abarracamento. Os encontros foram, de comum acordo, mudados para adiantadas horas da noite, em que Mundica saía do abarracamento acompanhada por um dos escravos do comissário.

O vigário Paula, que para furtar-se aos olhos dos seus paroquianos não acedera ao convite do colega para visitar de dia o povoado e que premeditava uma desforra da sua ex-amante, saía também à noite e só voltava muito tarde, fato que o pachorrento Belmiro assim explicava a sorrir:

— Você é um destemido, Paula, pode dizer como César: veni, vidi, vici.

E Paula com o seu ar de hipócrita respondia-lhe satisfeito:

— O que se há de fazer? A sociedade impõe-nos o recato das virgens.

As vizinhanças do abarracamento eram o ponto em que Paula perdia as noites, não feliz como ele fazia crer ao colega, mas emaranhando-se num dédalo de planos, que abortavam todos diante da ignorância em que ele estava da morada de Mundica e do modo de fiscalização que se punha em prática no abarracamento.

O acaso veio em auxílio do projeto do vigário contra Mundica.

Desde a primeira noite, Paula colocara-se em posição de poder estender o olhar por toda a frente do abarracamento e por longo espaço da estrada que o comunicava com o povoado. Por duas noites foi em vão tomar lugar no seu observatório; várias pessoas entraram e saíram, mas nenhuma delas deu-lhe ao menos a esperança de poder ver Mundica. O insucesso das suas pesquisas fazia desanimar e retirar-se arrependido de haver perdido o tempo.

Na terceira noite, porém, antes de ir postar-se no seu ponto de mira, dirigiu ao colega algumas perguntas que mais ou menos o orientavam acerca da morada da sua ex-amante.

Chegado ao abarracamento, ao ver passarem, como nas outras noites, diversas pessoas, pensou em falar com uma delas, mas abandonou logo o projeto: se a maioria dos retirantes não o conhecia, havia muitos a quem não seria possível enganar, embora disfarçasse a voz. O projeto, porém, sugeriu-lhe outro e resolveu:

— Entrarei, como os outros entram; com estas roupas, sou também um retirante.

Penetrou corajosamente na própria área do abarracamento, que era uma linha de casinholas feitas de ramos secos e cobertas de palhas; mas, quando já se adiantara muito da casa de Mundica, refletiu e parou.

Se alguém me visse rondar-lhe a casa? Tem inimigos e muitos, eles podem se aproveitar da circunstância, e depois, quando se souber que eu estive na localidade, sobre mim cairá a condenação.

O impulso do ódio impediu-o de retroceder. Demorou-se quedo por algum tempo e em seguida entrou num vão dos muitos que separavam as casinholas.

— É impossível que eu não veja ao menos o comissário, hoje. Ficarei até que venha a madrugada, se tanto for necessário.

Sentou-se e pôs-se à espera. Lembrava a paciência da cascavel enrodilhada no caminho à espera de presa. Ninguém poderia suspeitar semelhante emboscada; a própria respiração de Paula havia diminuído de intensidade; dir-se-ia que ele fizera parar os pulmões e respirava apenas pela epiderme.

Um sussurro, porém, veio restituí-lo à atividade e à paixão que o agitava na empresa. A princípio a areia estalitou sob passos cautelosos e depois duas vozes abafadas trocaram entre si uma frase, ao passo que dois vultos passavam pelo vão.

— Por ora ninguém e nem quero que saibam, o resto fica por minha conta.

— Se puder conseguir é coisa grossa; eu posso jurar que ele trouxe do Ceará mais de um conto de réis.

Paula não pôde ouvir o resto da frase, mas ouvira quanto bastava - o som da voz de Mundica. Saiu cautelosamente do esconderijo, e, distanciado bastante, acompanhou os dois conversadores.

Os vultos saíram perto do local do abarracamento e tomaram a estrada na direção do povoado, onde pararam quase na extremidade da rua em que Paula se hospedava.

— Eu contava já com isto - murmurou ele; - deve ser a casa do comissário. Perdi o meu tempo.

Parou, e já se decidia a voltar para casa, quando viu que só Mundica entrara; o outro vulto continuara a caminhar. Pensando em reconhecê-lo, Paula ia seguir-lhe ao encalço, mas, ao passar pela casa em que vira a sua ex-amante entrar, empurrou por demais a porta. A porta, porém, cedeu, e ao seu movimento, como se uma barreira se houvera erguido ante si, Paula estacou.

Uma tentação invencível apoderou-se do ânimo temerário e apaixonado do vigário, que maquinalmente entrou para logo parar estupefato da sua própria ousadia. Felizmente a porta abria sobre um corredor que estava às escuras, e, portanto, fácil era ao vigário voltar sobre os seus passos, sem que fosse percebido. Tentou fazê-lo, mas, sentindo passos na rua, e temendo que fosse o companheiro de Mundica, seguiu tateando e a pensar consigo que estava perdido.

O temor de Paula tornou-se logo realidade.

A porta foi discretamente trancada e o amedrontado vigário, que apenas teve tempo para ocultar-se por detrás de uma porta, sentiu que alguém atravessava o corredor.

—Oh! rapaz - disseram de dentro a meia voz -, venha acordar-me às matinas.

A pessoa que passava respondeu com a submissão do escravo e seguiu.

Paula, por uma reação inexplicável do próprio temor, encorajou-se, e, não podendo retirar-se logo, porque o ranger da chave denunciaria a presença de um estranho na casa, caminhou vagarosa e cautelosamente até que, entrando em uma sala, a claridade que escoava por uma porta entreaberta o fez parar.

— Ouça, eu se zanguei-me com elas não foi porque tenha desejo de fazer mal aos outros; é que elas foram a causa da morte de meu pai.

— Mas devia ter feito as coisas de outro modo, assim comprometeu-se e comprometeu-me.

— É porque o senhor quer; com pouco mais de nada eu posso ir por algum tempo morar fora daqui e depois volto.

— Se fosse tão fácil eu não duvidava fazer, mas infelizmente falta-me agora o melhor.

— O que é?

— O dinheiro...

— É o que não falta aqui - disse Mundica, ao mesmo tempo que se espalhou no silêncio da sala o som de uma tampa de lata brandamente percutida.

— Aí não há nada meu, abra e veja.

— E esta latinha?

— Leia o que tem em cima - dinheiro da comissão -, este é sagrado. Sabe o que mais, vamos dormir.

— Você é bem mau, sr. Cassiano; eu ainda lhe faço uma.

— Até ver não é muito, apague a vela.

Ouvindo o nome do comissário, e ao mesmo tempo a afirmação de que na lata havia dinheiro, Paula foi avassalado por uma idéia que nunca lhe ocorrera. Quedou por um tempo, que lhe pareceu uma eternidade, e conservou-se atento como a dominar o estremecimento que lhe causava o horror da idéia que concebera, até que a respiração compassada e tranqüila do comissário e de Mundica assegurou-o de que estavam dormindo.

O ódio deu-lhe então o sangue-frio de que precisava e, penetrando no quarto, abriu imperceptivelmente a lata maior e conseguiu apanhar a menor.

Pouco depois estava fora da casa do comissário, da qual saira pulando uma das janelas da sala de visitas, e a passos largos palmilhou a rua até a casa de Belmiro. Dentro do quarto, acendeu a vela e arrancou com a ponta da faca o fecho da pequena lata.

— Cá está o dinheiro - disse consigo -, amanhã ela será uma ladra.

— Já sei que teve uma boa noite, colega - exclamou a bocejar o vigário Belmiro, que, deitado na sala, acordava sempre que Paula entrava.

— Uma excelente noite, colega, até amanhã.

Paula não se enganava a respeito do escândalo que se daria, logo que o comissário desse por falta do dinheiro dos socorros.

A ação parecia abjeta aos seus próprios olhos. A consciência não o absolvia, acusava-o de haver praticado um furto: ainda que não tivesse a intenção de utilizar-se do dinheiro, não podia também entregá-lo de pronto, porque seria justificar Mundica e engrandecê-la como vítima diante daqueles mesmos que a houvessem condenado. Chamava-se, pois, a si próprio gatuno, mas ao mesmo tempo regozijava-se com a idéia de ver Mundica expulsa da afeição de Cassiano, e entregue à irrisão geral e talvez mesmo à prisão.

Ao almoço, conversando com Belmiro, mostrou-se tão jovial que o pachorrento colega observou-lhe:

— Ora, pois, como o vejo mais alegre, quero dar-lhe um conselho.

— Venha ele, meu padre, hoje ou ontem era sempre bem-vindo.

— Vá lá - sorriu Belmiro agitando o indicador. - Estas fazem mal; é preciso não ir com tanta sede ao pote.

— Não sairei mais; eu ontem já pensei nisto; corro perigos apesar de disfarçado: do que eu preciso é de forças para a viagem que deve ser amanhã ou depois, e a pé.

Belmiro, atribuindo a resolução do seu colega à sua observação, insistiu em demonstrar-lhe que não tinha tido a intenção de magoá-lo, e acabou oferecendo um dos seus cavalos e um pajem ao vigário Paula.

— Então partirei depois de amanhã; quero convencê-lo que não me ofendi consigo; bem vê que estou alegre.

Bem diverso do estado de espírito de Paula era o de Eulália. Hospedada na casa em que Belmiro a recomendara, não tendo senão as consolações banais da hospitalidade indiferente, a mísera retirante sentia o coração sitiado pela quase certeza de que o hóspede do vigário da localidade, a amante do comissário e, sobretudo, as mulheres insultadas por esta eram o vigário Paula, Mundica, d. Ana e as suas irmãs.

Desde o amanhecer quis logo sair para receber em cheio o golpe que já lhe doía; mas, refletindo melhor, pediu à velha senhora que a hospedara para mandar saber do vigário o nome das mulheres que haviam sido chicoteadas. Ainda assim o golpe foi adiado, porque só depois da missa o vigário poderia responder.

Como se houvesse uma intenção providencial de delongar a dor imensa reservada à infeliz, o vigário demorou-se na igreja mais do que tinha por costume e, com grande espanto do sacristão, fechara-se por dentro na sacristia com o comissário.

O sacristão, intrigado por esta prova momentânea de desconfiança que lhe era dada, explicou-a engenhosamente aos fiéis que igualmente se espantavam de que o confidente do pároco fosse excluído do colóquio.

— Isto há de ser negociata com a tal Mundica; eu sinto-lhe o cheiro, porque não há outra razão para tal segredo.

Qual, é impossível; o sr. Cassiano está pelo cabresto - ponderavam todos.

— É justamente aí que a besta empaca. Eu não creio que ele esteja disposto a mandar embora a delambida, isto não; mas que tenha outros fins tapar a boca do mundo.

— De que modo? Ninguém se deixará enganar; enquanto a Mundica estiver aqui, o povo inteiro repetirá que ela é a senhora do comissário.

— Pois ele aceitará o que dizem e pedirá à igreja que lhe dê o direito de andar com ela por toda a parte. Fará da retirante sua mulher.

— Ora esta agora! Havia de ter graça.

— Não era coisa do outro mundo; a paixão cega o homem.

Quando o vigário e o comissário saíram da sacristia, ao passo que este se conservava carrancudo, aquele escondia uma risada sob o semblante de piedade, e, logo que se viu livre do olhar do comissário, despregou a rir como um perdido.

— Então há alguma novidade? - perguntou-lhe o sacristão. - Vossa Mercê ri enquanto o comissário quase chora?!

— Coisas da vida; ele anda em rapaziada e eu conheço-me como velho.

— O passarinho bateu as asas?

— Não, mas levou alguma coisa no bico. Segredo de cova, hein? - observou o vigário esforçando-se por ficar sério.

— Se eu não sei nada, como hei de guardar segredo?

O vigário, abaixando a voz, contou que o comissário, desde a estralada das chicotadas, havia mudado para tardas horas da noite e em sua casa os seus encontros com Mundica, e que hoje dera por falta do dinheiro da comissão de socorros.

— Está danado!

— É uma bucha - ponderou o sacristão. - E o que vai; ele fazer agora?

— Vai ao abarracamento ter com ela e obrigá-la a entregar o dinheiro.

— E se ela não o entregar?

— Ele mesmo não sabe o que fará. Está tremendo de raiva. Eu é que não perco a festa; logo que acabe da missa, lá irei ter.

Esta resolução do vigário fez com que, só pelo meio-dia, Eulália pudesse ter a certeza de que se temia. Como soubesse que o vigário estava no abarracamento, perdeu o receio de ser aí insultada por Mundica e seguiu para lá.

A massa dos retirantes sussurrava surpresa com o acontecimento descomunal que veio tomá-la de assalto. O comissário, seguido pelos guardas do abarracamento, dera busca em todas as casas do abarracamento e afinal mandara também revolver todos os cubículos ocupados por Mundica, que não podia conter as lágrimas.

O comissário, parando diante dela, perguntou-lhe secamente.

— Você não entrega a latinha?

— Não está comigo, já lhe disse; nunca furtei.

— Bem - bradou ele, dirigindo-se aos guardas -, ponham-me para fora a chicote esta ladra.

Em vão Mundica tentou obter com as súplicas a revogação da cruel sentença; os mesmos guardas que havia poucos dias obedeciam-na na afronta a d. Ana e Chiquinha, vibravam contra ela os instrumentos ignominiosos, e a suposta ré era obrigada a fugir entre os apupos da multidão.

— Fora também com o resto da súcia, nem mais um minuto fique aqui no povoado um só parente da ladra.

Os guardas obedeceram e a família de Marciano foi obrigada a sair no mesmo momento.

Eulália, que chegava no instante mais violento da cena, vendo Mundica, teve a dolorosa certeza de que se tratava com efeito de d. Ana e de suas irmãs.

Cambaleando como uma bêbada, pôs-se a andar espiolhando para dentro dos albergues até que lhe perguntaram por quem procurava. Murmurou então o nome de sua família, e obteve uma resposta desdenhosa:

— Ah! Procure-as lá para aquela banda, há uns quatro dias que partiram; talvez a fome a tenha feito demorar e possa encontrá-las pelo menos mortas.