Os Trabalhadores do Mar/Parte I/Livro III/IX

IX.


O HOMEM QUE ADVINHOU QUEM ERA RANTAINE.


Mess Lethierry governou a Durande emquanto pode navegar, e nunca teve outro piloto nem outro capitão; mas lá chegou um dia em que elle foi obrigado a deixar o mar. Escolheu para substitui-lo o Sr. Clubin, de Torteval, homem silencioso. O Sr. Clubin tinha em toda a costa fama de severa probidade. Era o alter ego e o vigario de mess Lethierry.

O Sr. Clubin, embora desse mais ares de tabelião que de marinheiro, era um maritimo capaz e raro. Tinha todos os talentos que exige o perigo perpetuamente transformado. Era arrumador habil, gageiro meticuloso, contramestre desvelado e perito, timoneiro robusto, piloto instruido, e atrevido capitão. Era prudente e algumas vezes levava a prudencia ao ponto de ouzar, o que é uma grande qualidade na vida maritima. Tinha o receio do provavel temperado pelo instincto do possivel. Era um desses marinheiros que affrontam o perigo em uma proporção conhecida delles, sabendo triumphar em todas as aventuras. Toda a certeza que o mar póde deixar a um homem, elle a tinha. Era além disso nadador de fama; pertencia a essa raça de homens exercitados na gymnastica da vaga, que se conservam n’agua o tempo que se quer, e que partindo do Havre-des-Pas, dobram a Collete, fazem a volta da Ermitage e a do castello Elisabeth e voltam ao cabo de duas horas ao ponto de partida. Era de Torteval e dizia-se que fizera muitas vezes a nado, o temivel trajecto desde Manois até á ponta de Plaintmont.

Uma das cousas, que mais recommendaram o Sr. Clubin a mess Lethierry, foi que, conhecendo ou penetrando Rantaine, assignalou a mess Lethierry a improbidade daquelle homem, e disse-lhe: — Rantaine ha de roubal-o. Verificou-se a profecia. Mais de uma vez, em negocios pouco importantes, é verdade, mess Lethierry experimentou a escrupulosa honestidade do Sr. Clubin e descançava nelle. Mess Lethierry dizia: Consciencia quer confiança.