X.


NARRATIVAS DE VIAGENS DE LONGO CURSO.


Mess Lethierry, que se não accomodava de outro modo, vestia sempre a sua roupa de bordo, preferindo mesmo a japona de marinheiro, á japona de piloto. Deruchette torcia o nariz por isso. Nada é tão bello como uma caretazinha da formosura em colera. Deruchette ralhava e ria—Bom paisinho, dizia ella, está cheirando a alcatrão. E dava uma palmadinha na larga espadua do marinheiro.

Aquelle velho heróe do mar trouxe das suas viagens, narrativas maravilhosas. Vio em Madagascar plumas de passaro das quaes bastavam tres para cobrir uma asa. Vio na India hastes de azedinhas, de nove pés de altura. Vio na Nova Hollanda bandos de perús e de patos dirigidos e guardados por um cão de pastor, que naquella terra é um passaro, e chama-se galinha silvestre. Vio cemiterios de elephantes. Vio em Africa uma especie de homens-tigres de sete pés de altura. Conhecia os costumes de todos os macacos, desde o macaco bravo até o macaco barbado. No Chile vio uma bugia commover os caçadores apresentando-lhes o filho.

Vio na California um tronco de arvore ouco, no interior do qual um homem a cavallo podia andar cento e cincoenta passos. Vio em Marrocos os mozabitas e os biskris baterem-se com matraks e barras de ferro, os biskris por terem sido tratados de kelb, que quer dizer cães, e os mozabitas por terem sido tratados de khamsi, que quer dizer gente da quinta seita. Vio na China cortar em pedacinhos o pirata Chanh-thong-quan-harh-Quoi, por ter assassinado o Ap de uma aldêa. Ern Thudanmot, vio um leão arrebatar uma mulher velha do meio do mercado da cidade. Assistio á chegada da grande cobra mandada de Cantão a Saigon, para celebrar na pagode de Cho-len, a festa de Quan-nam, deosa dos navegantes. Contemplou na terra dos Moi, o grande Quan-Su.

No Rio de Janeiro, vio as senhoras brasileiras collocarem nos cabellos pequenas bollas de gaze contendo cada uma dellas um vagalume, o que lhes fazia uma coifa de estrellas. Destruio no Uruguay os formigueiros, e no Paraguay um certo bichinho, que occupa com as patas um diametro de um terço de vara, e ataca o homem, por meio dos proprios pellos, que lhe atira em cima, e que se cravam na carne produzindo pustulas. No rio Arinos, affluente do Tocantins, nas mattas virgens do norte da Diamantina, verificou a existencia do terrivel povo-morcego, os morcilagos, homens que nascem com os cabellos brancos e os olhos vermelhos, habitam os bosques sombrios, dormem de dia, accordam de noite, e pescam e caçam nas trevas, vendo melhor de que quando ha lua.

Perto de Beirouth, no acampamento de uma expedição de que fazia parte, foi roubado de uma tenda um pluviometro; então um feiticeiro vestido de duas ou tres fachas de couro, assemelhando-se a um homem vestido com os proprios suspensorios, agitou tão furiosamente uma campainha na ponta de um chifre que appareceu logo uma hyena trazendo o pluviometro. A hyena é que o tinha roubado.

Estas historias verdadeiras, assemelhavam-se tanto a historias da carochinha que divertiam Deruchette.

A boneca de Durande era o élo entre o vapor e a moça. Chama-se boneca nas ilhas normandas a figura talhada na prôa, estatua de madeira mais ou menos esculpida. Dahi vem que para dizer navegar, a gente das ilhas usa desta locução; estar entre popa e boneca (poupe et poupée.)

A boneca de Durande tinha as predilecções de mess Lethierry. Elle encommendára ao carpinteiro que a fizesse parecida com Deruchette. Parecia-se como obra feita a machado. Era uma acha de lenha esforçando-se por ser moça bonita.

Mas a cousa, embora disforme, illudia mess Lethierry. Contemplava-a como um crente. Estava de boa fé diante daquella figura. Reconhecia nella a imagem de Deruchette. É mais ou menos assim que o dogma se parece com a verdade, e o idolo com Deos.

Mess Lethierry tinha duas grandes alegrias por semana; uma na terça-feira e outra na sexta. Primeira alegria, ver partir Durande; segunda alegria, vê-la chegar. Encostava-se á janella, contemplava a sua obra, era feliz. Ha alguma cousa assim no Genesis. Et vidit quod esset tonum.

Na sexta-feira, a presença de mess Lethierry na janella era um signal. Quem o via chegar á janella da casa de Bravées, acender o cachimbo, dizia logo: Ah! o vapor está a chegar.

Uma fumaça annunciava a outra.

A Durande, entrando no porto, atava a amarra debaixo das janellas de mess Lethierry, n’uma grande argola de ferro. Nessas noites Lethierry, gozava um admiravel somno na sua maca, sentindo de um lado Deruchette adormecida, do outro Durande amarrada.

O ancoradouro de Durande era perto do porto. Diante da casa de Lethierry havia um pequeno cáes.

O cáes, a casa, o jardim, as marinhas orladas de sebes, a maior parte das casas vizinhas, nada existe hoje. A exploração do granito de Guernesey fez vender os terrenos todos. Aquelle lugar está hoje occupado por estancias de quebradores de pedra.