Os Trabalhadores do Mar/Parte I/Livro III/VI
VI.
LETHIERRY ENTRA NA GLORIA.
Prosperava a Galeota. Mess Lethierry via chegar o dia em que elle seria gentleman. Em Guernesey não se pode ser gentleman da noite para o dia. Ha uma escala entre o homem e o gentleman; o primeiro degráo é o nome simplesmente, Pedro, supponhamos; depois, visinho Pedro; terceiro degráo, pai Pedro; quarto degráo, senhor (sieur) Pedro; quinto degráo, mess Pedro; ultimo degráo, gentleman (monsieur) Pedro.
Esta escada, que sahe da terra, interna-se pelo céo acima. Entra nella toda a hierarchia ingleza. Eis os degráos mais luminosos: acima de senhor (gentleman) ha esq., (escudeiro), acima de esq., o cavalheiro (sir vitalicio) depois o baronet (sir hereditario), depois o lord, laird na Escocia, depois o barão, depois o visconde, depois o conde, (earl na Inglaterra, jarl na Noruega), depois o marquez, depois o duque, depois o par de Inglaterra, depois o principe de sangue real, depois o rei. Esta escada sobe do povo á burguesia, da burguesia ao baronato, do baronato ao pariato, do pariato a realesa.
Graças aos seus triumphos, ao vapor, ao Navio-Diabo, mess Lethierry já era alguem. Para construir a Galeota teve de pedir dinheiro emprestado; endividou-se em Bremen, e em Saint-Malo, mas ia amortisando a divida todos os annos.
Lethierry comprou fiado, na entrada do porto de Saint-Sampson, uma linda casa de pedra e cal, novasinha, entre o mar e o jardim; no angulo estava este nome: Bravées. A casa, cuja frente fazia parte da muralha do porto, era notavel por duas fileiras de janellas, ao norte, do lado de um cercado cheio de flôres, ao sul, do lado do mar; de modo que era uma casa com duas fachadas, dando uma para as tempestades, outra para as rosas.
As fachadas pareciam feitas para os dous moradores: mess Lethierry e miss Deruchette.
Era popular a casa de Lethierry, porque elle proprio acabou sendo popular. A popularidade nascia em parte da bondade, da educação e da coragem delle, parte dos homens que elle salvara de perigos imminentes, em grande parte do bom exito da Galeota, e tambem por ter dado ao porto de Saint-Sampson, o privilegio das partidas e chegadas do vapor. Vendo que decididamente o Devil-Boat era um bom negocio, Saint-Pierre, capital, reclamou o vapor para si, mas Lethierry conservou-o para Saint-Sampson. Era a sua cidade natal. Daqui é que eu fui lançado ao mar, dizia elle. Tinha por isso grande popularidade local.
A qualidade de proprietario e contribuinte fazia delle o que em Guernesey se chama um unhabitant. Deram-lhe um cargo. O pobre marinheiro galgou cinco degráos, dos seis que tem a ordem social guernesiana; era mess; estava quasi gentleman, e quem sabe mesmo se não passaria dahi? Quem sabe se algum dia não se havia de ler no almanack de Guernesey, no capitulo Gentry and Nobility esta inscripção inaudita e soberba: Lethierry, esq.
Mess Lethierry, porém, desdenhava ou antes ignorava o que era a vaidade das cousas. Sentia-se util, era a satisfação delle; ser popular commovia-o menos que ser necessario. Já o dissemos, tinha dous amores, e por consequencia, duas ambições: Durande e Deruchette.
Fosse como fosse, Lethierry arriscou-se na loteria do mar, e tirou a sorte grande.
A sorte grande, era Durande navegando.