Os Trabalhadores do Mar/Parte I/Livro VII/I
I.
A PEROLA NO FUNDO DO PRECIPICIO.
Minutos depois do curto colloquio com o Sr. Landoys, Gilliatt estava em Saint-Sampson.
Gilliatt ia inquieto até á anciedade. Que teria acontecido?
Saint-Sampson tinha um rumor de colmêa assustada. Toda a gente estava ás portas. As mulheres exclamavam. Muitas pessoas contavam alguma cousa, fazendo gestos; as outras agrupavam-se á roda dessas. Ouviam-se estas palavras: que desgraça! Alguns sorriam.
Gilliatt não interrogou ninguem. Não era proprio delle fazer perguntas. Demais, ia demasiado commovido para fallar a indifferentes. Desconfiava das narrações, preferia saber logo tudo; foi á casa de Lethierry.
A sua anciedade era tal que nem mesmo teve medo de entrar naquella casa.
Demais, a porta da sala baixa estava escancarada. Na soleira havia um formigueiro de homens e mulheres. Todos entravam; elle entrou.
Entrando, achou encostado á porta o Sr. Landoys que lhe disse a meia voz:
— Então, já sabe do successo?
— Não.
— Eu não quiz dizer-lh’o ha pouco do meio da rua. Pareceria correio de desgraças.
— Que foi então?
— Perdeu-se a Durande.
Havia muita gente na sala.
Os grupos fallavam baixo, como no quarto de um doente.
Os assistentes, que eram os visinhos, os viandantes, os curiosos, estavam amontoados ao pé da porta, com uma especie de receio, e deixavam vasio o fundo da sala onde estava, ao lado de Deruchette lacrimosa e assentada, mess Lethierry de pé.
Lethierry estava encostado ao tabique do fundo. O bonet de marujo cahia-lhe nas sombrancelhas; uma mecha de cabellos grisalhos prendia-se-lhe na face. Não dizia nada. Os braços não tinham movimento, a boca parecia não ter alento. Parecia uma cousa encostada á parede.
Ao vê-lo, sentia-se um homem dentro de quem se extinguira a vida. Deixando de existir a Durande, Lethierry já não tinha razão de ser. Tinha uma alma no mar, e essa alma acabava de perecer. Que faria elle agora? Levantar-se de manhã, deitar-se de noite. Já não podia esperar a Durande, nem vê-la partir, nem voltar. O que é um resto de existencia sem objecto? Beber, comer, e depois? Aquelle homem tinha corôado os seus trabalhos com uma obra prima, e as dedicações com um progresso. Abolira-se-lhe o progresso, morrera-lhe a obra prima. Para que viver ainda alguns annos vasios? Não tinha mais nada que fazer. Naquella idade não é possivel recomeçar; de mais a mais estava arruinado. Pobre velho!
Deruchette, assentada ao pé delle, e chorando, tinha entre as suas duas mãos a mão de mess Lethierry. As della estavam postas, a de Lethierry apertada. Via-se nisso a differença daquelles dous abatimentos. As mãos postas ainda tem esperança: a apertada, nenhuma.
Mess Lethierry abandonava-lhe o braço sem resistencia. Estava passivo. Tinha em si apenas aquella porção de vida que póde haver depois do raio.
Ha certas descidas ao fundo do abysmo que retiram um homem do meio dos vivos. As pessoas que andam em roda são confusas e indistinctas; acotovelam-n’o e não lhe chegam. De parte a parte ficam inacessiveis. A ventura e o desespero não são os mesmos centros respiraveis; o desesperado assiste á vida dos outros, mas de muito longe; ignora quasi a sua presença; perde o sentimento da propria existencia; que importa ser de carne e osso, o desesperado já se não sente real; já não é elle proprio, é apenas um sonho.
Mess Lethierry tinha o olhar dessa situação.
Cochichavam os grupos.
Cada qual dizia o que sabia.
Eis as noticias:
A Durande perdera-se na vespera nos rochedos Douvres, com o nevoeiro, uma hora antes do pôr do sol. Á excepção do capitão, que não quiz deixar o navio, toda a gente salvou-se na chalupa. Uma borrasca, vinda do sudueste, depois do nevoeiro, quasi fez naufragar a chalupa, e carregou-a para o mar largo além de Guernesey. De noite tiveram os naufragos a boa fortuna de encontrar o Cashmere, que os recolheu elevou a Saint-Pierre Port. O culpado de tudo foi o timoneiro Tangrouille, que já estava preso. Clubin mostrou-se magnanimo.
Os pilotos que abundavam nos grupos, pronunciavam estas palavras escolho Douvres, de um modo particular.—Má hospedaria aquella! dizia um delles.
Via-se na mesa uma bussola e um masso de registros e notas; eram sem duvida a bussola de Durande e os papeis de bordo entregues por Clubin a Imbrancam e a Tangrouille no momento de partir a chalupa; magnifica abnegação desse homem, salvando até os papeis no momento em que ia morrer; minuciasinha cheia de grandeza, esquecimento sublime de si proprio.
Todos eram unanimes em admirar Clubin, e igualmente unanimes em julga-lo salvo. O cuter Shealtiel chegára poucas horas depois do Cashmere, e esse cuter trazia as ultimas informações. Esteve vinte o quatro horas nas mesmas aguas da Durande. Parou e bordejou durante o nevoeiro e a tempestade. O patrão do Shealtiel estava tambem na sala do Lethierry.
No momento em que Gilliatt entrou, acabava elle de fazer a sua narração a mess Lethierry. Era um verdadeiro relatorio. De manhã, tendo cessado a borrasca o acalmado o vento, o patrão do Shealtiel ouvio mugido de bois em pleno mar. Este rumor proprio das campinas, ouvido alli nas vagas, surprendeu o patrão. Descobrio a Durande nos rochedos Douvres. A calma era sufficiente para que elle podesse acercar-se dos rochedos. Chamou o navio á falla. Só lhe respondeu o mugido dos bois que se afogavam no porão. O patrão do Shealtiel estava certo de que não havia ninguem á bordo da Durande. O casco estava completamente preso; e por mais violenta que fosse a borrasca; devia ter passado a noite á bordo. Não era homem de desanimar facilmente. Não estava á bordo, logo estava salvo.
Muitos sloops e lugars de Granville e Saint-Malo, desprendendo-se do nevoeiro, era fóra de duvida que deviam ter costeado as Douvres. Evidentemente algum delles recolheu o capitão Clubin. Devem lembrar-se que a chalupa da Durande estava cheia ao deixar o navio, ia correr perigos, mais um homem poderia fazel-a sossobrar, e foi isso sobretudo o que resolveu Clubin a ficar na Durande: mas, cumprido esse dever, se apparecesse um navio salvador, Clubin, não teria difficuldade de aproveitar-se delle. Deve-se ser heróe, não se deve ser pascacio. Um suicidio seria tanto mais absurdo quanto que Clubin portára-se com dignidade. O culpado era Tangrouille, não Clubin. Tudo isto era consequente; o patrão do Shealtiel tinha razão, e toda a gente esperava vêr Clubin de um momento para outro. Premeditava-se recebel-o em triumpho.
Da narração do mestre resultavam duas certezas: Clubin salvo e a Durande perdida.
Quanto a Durande estava decidido que a catastrophe era irremediavel. O patrão do Shealtiel assistira á ultima phase do naufragio. O grandissimo rochedo em que naufragara a Durande, resistira ao choque da tempestade, como se quizesse guardar comsigo o navio; mas de manhã, no momento em que o Shealtiel, verificando que não havia ninguem para salvar affastava-se da Durande, houve um desses movimentos de mar que são como os ultimos arrancos da colera das tempestades. Essa onda levantou furiosamente a Durande, arrancou-a do cachopo, e com a rapidez e a rectidão de uma flexa disparada, atirou-a entre as duas rochas Douvres. Ouvio-se um estalo «diabolico» dizia o patrão. A Durande, levada pela vaga a uma certa altura, metteu-se entre as rochas. Estava outra vez pregada, mas desta vez mais solidamente que no escolho submarino. Ficou ahi deploravelmente suspensa, exposta a todo o vento e a todo mar.
A Durande, no dizer da equipagem do Shealtiel já estava quasi toda despedaçada. Teria sossobrado, com certeza, de noite, se o cachopo não a sustivesse. O patrão do Shealtiel com o seu oculo estudou o casco. Descreveu o desastre com precisão maritima; o lado de estibordo estava roto; os mastros truncados, o velame sem tralhas, as correntes dos ovens quasi todas cortadas, as sangadilhas cortadas o mais rente possivel desde o meio do mastro até acima; o lugar dos viveres arrombado, os cavaletes da chalupa destruidos, a arvore do leme rôta, os cabos despregados, os pavezes arrasados, as abitas levadas pelo vento, a antena do mesmo modo, o cadaste quebrado. Era a devastação frenetica da tempestade. Quanto ao guindaste do carregamento, preso ao mastro de prôa, já não existia, não havia noticia delle, completamente limpo, levaram-n’o os diabos, com todas as roldanas, polés e correntes. A Durande estava deslocada; a agua começava agora a sargal-a. Dentro de alguns dias nada mais restaria della.
E comtudo a machina, cousa notavel, e que provava a sua perfeição, soffreu pouco com a tempestade. O patrão do Shealtiel affirmava que a manivella não teve avaria grave. Os mastros do navio cederam, mas o cano da machina resistio. Os baluartes de ferro do lugar do com mando estavam apenas torcidos; as caixas das rodas soffreram, mas as rodas pareciam não ter um só raio de menos. A machina estava intacta. Era a convicção do patrão do Shealtiel. O machinista Imbrancam, que estava entre os grupos, partilhava esta convicção. Aquelle negro, mais intelligente que muitos brancos, era o admirador da machina. Levantava os braços abrindo os dez dedos das suas mãos negras, e dizia a Lethierry mudo: meu amo, a machina está viva.
O salvamento de Clubin parecia cousa segura; o casco da Durande estava sacrificado; a conversação dos grupos recahio sobre a machina. Interessavam-se por ella, como se fosse uma pessoa. Todos admiravam o bom procedimento da machina. — Solida comadre aquella, dizia um marinheiro francez.—É magnifica! exclamava um pescador guernesiano.—Deve ter sido muito astuciosa, accrescentava o patrão, para escapar apenas com alguns arranhões.
A pouco e pouco tornou-se a machina a preoccupação unica. Animou as opiniões pró e contra. Tinha amigos e inimigos. Mais de um, que tinha algum velho cuter de vela, e esperava apanhar a freguezia da Durande, alegrou-se por vêr o escolho Douvres fazer justiça á nova invenção. O cochicho tornou-se algazarra. Discutia-se com barulho. Era com tudo um rumor discreto, que de quando em quando se calava sob a pressão do silencio sepulcral de Lethierry.
Do colloquio havido em todos os pontos resultava isto:
A machina era o essencial. Refazer o navio era possivel, não a machina. Era unica. Para fabricar outra faltava o dinheiro e o fabricante. Lembram-se que o constructor tinha morrido. Custou quarenta mil francos. Ninguem arriscaria agora aquelle capital naquella eventualidade; tanto mais quando acabava de provar-se que os vapores naufragam como navios de vela; o accidente actual da Durande mettia á pique o seu passado succedimento. E era doloroso pensar que naquelle momento a machina ainda estava em bom estado, e que, antes de cinco ou seis dias, ficaria despedaçada como o navio. Emquanto existia a machina, podia dizer-se que não havia naufragio. Só a perda da machina era irremediavel. Salvar a machina era reparar o desastre.
Salvar a machina, é facil dizel-o. Mas quem ousaria? era acaso possivel? Fazer e executar, são cousas differentes, e a prova é que é facil formular uma aspiração e difficil executal-a. Ora, se houve jámais um sonho impraticavel e insensato era este; salvar a machina encalhada nas Douvres. Mandar trabalhar naquellas rochas um navio e uma equipagem seria absurdo; não se devia pensar nisso. Era a estação dos temporaes: ao primeiro que houvesse, rasgavam-se as correntes das amarras nos pontos submarinhos e o navio despedaçava-se. Era mandar um naufragio em soccorro do primeiro. Na especie de buraco da planura superior onde se abrigára o naufrago legendario morto de fome, mal havia lugar para um homem. Era preciso pois que, para salvar essa machina, fosse um homem aos rochedos Douvres, e que fosse sozinho, só naquelle mar, só naquelle deserto, só a cinco leguas da costa, naquelle medo, só durante semanas inteiras, só diante do previsto e do imprevisto, sem vitualhas nas angustias da privação, sem soccorro nos incidentes da desgraça, sem outro vestigio humano que o do antigo naufrago morto alli, sem outro companheiro além daquelle finado.
E como salvaria elle a machina? Era preciso que fosse, não sómente marujo, senão tambem ferreiro. E quantas difficuldades! O homem que o tentasse seria mais que um heróe. Seria um louco. Porquanto, em certos commettimentos desproporcionados, onde parece necessario o sobrehumano, a bravura tem acima de si a demencia. E com effeito, sacrificar-se por um pouco de ferro não era estravagante? Não, ninguem iria aos rochedos Douvres. Devia-se renunciar á machina do mesmo modo que ao navio. O salvador que era preciso não apparecia. Onde encontrar esse homem?
Isto, dito de outro modo, era o fundo das conversas murmuradas daquella multidão.
O patrão do Shealtiel que era um antigo piloto, resumio o pensamento de todos, exclamando em alta voz:
— Não! está acabado. Não existe um homem capaz de ir buscar a machina!
— Se eu não vou, disse Imbrancam, é que é impossivel ir.
O patrão do Shealtiel sacudio a mão esquerda com aquelle arrebatamento que exprime a convicção do impossivel, e repetio:
— Se existisse...
Deruchette voltou a cabeça.
— Casava-me com elle.
Houve um silencio.
Um homem pallido sahio do meio dos grupos e disse:
— A senhora casava-se com elle, miss Deruchette?
Era Gilliatt.
Entretanto todos levantaram os olhos. Mess Lethierry endireitou-se. Tinha nos olhos uma luz estranha.
Tirou o boné e lançou-o ao chão, depois olhou solemnemente para a frente sem vêr pessoa alguma e disse:
— Deruchette casava-se com esse homem. Dou a minha palavra de honra a Deos.