II.


GRANDE ESPANTO NA COSTA OESTE.


A noite desse dia, das 10 horas em diante, devia ser noite de luar. Todavia, qualquer que fosse a boa apparencia da noite, do vento e do mar, nenhum pescador estava disposto a sahir nem de Hongue la Perre, nem do Bordeaux, nem de Houmet Benet, nem de Platon, nem de Port Grat, nem da bahia Vason, nem de Perrelle Bay, nem de Pezeris, nem de Tielles, nem da bahia dos Santos, nem de Petit Bô, nem de nenhum outro porto ou angra de Guernesey. E isto por uma razão simples; o gallo tinha cantado ao meio dia.

Quando o gallo canta a uma hora extraordinaria não ha peixe.

Nesse dia, pois, ao cahir da tarde, um pescador que voltava a Omptolle teve uma sorpreza. Na altura de Houmet Paradis, além de Brayges e Gunes, tendo á esquerda a balisa de Plattes Fougères, que representa um funil virado, e á direita a balisa de Saint-Sampson, que representa uma figura de homem, o pescador acreditou ver uma terceira balisa. Que balisa era essa? quando foi posta alli? que banco indicava ella? A balisa respondeu logo a estas interrogações; mexeu-se; era um mastro. Não diminui o o espanto do pescador. Balisa era para admirar; mastro ainda mais. Não havia pesca possivel. Quando todos voltavam, porque sahia aquelle? Quem era? porque?

Dez minutos depois, o mastro caminhando lentamente, chegou a pouca distancia do pescador de Omptolle. Este não pôde reconhecer o barco. Ouvio remar. O ruido era de dous remos. Provavelmente era um homem só. O vento era norte; o homem navegava evidentemente para ir tomar o vento além da ponta Fontenelle. Ahi era natural que abrisse a vela. Contava pois dobrar o Ancresse e o monte Crevel. Que queria dizer aquillo?

O mastro passou; o pescador foi para terra.

Nessa mesma noite, na costa oeste de Guernesey, observadores de occasião, disseminados e isolados fizeram alguns reparos a horas diversas e em diversos pontos.

O pescador de Omptolle acabava de amarrar o barco, quando um conductor de sargaço, a meia milha distante, chicoteando os animaes na estrada deserta de Clotures, perto do Cromleche, nos arredores dos martellos 6 e 7, vio no mar, um tanto longe, em lugar pouco frequentado, porque é preciso conhece-lo bem, do lado da Roque-Nord e da Sablonneuse, um barco içando uma vela. Deu pouca attenção, pois que era homem de carro e não de barco.

Meia hora depois, um estucador que voltava da cidade e contornava a lagôa de Pelée, achou-se repentinamente quasi em face de um barco que penetrara audaciosamente entre as rochas do Quenon, da Roune de Mer, e da Gripe de Roune. A noite era negra, mas o mar estava claro; effeito que se produz muitas vezes, e podia-se distinguir ao largo os navegantes. Só havia no mar aquelle barco.

Mais abaixo e mais tarde, um pescador de lagostas, dispondo as suas tendas no areal que separa o Port Soif do Port Enfer, não comprehendeu o que faria um barco que passava entre a Boue Cornelle e a Moncrette. Era preciso ser bom piloto e ter pressa de chegar a algum lugar para arriscar-se a passar alli.

Sendo oito horas no Catel, o taverneiro de Cobo Bay observou, com algum espanto, uma vela além da Boue do Jardin e das Grunettes, mui perto da Susanna, e dos Grunes do Oeste.

Não longe de Cobo Bay, na ponta solitaria do Houmet da bahia Vason, estavam dous namorados a despedir-se e a reter-se um ao outro; foram distrahidos do ultimo beijo por um vasto barco que passou por perto delles e dirigia-se para as Menellettes.

O Sr. Le Peyre des Norgiots, morador em Catellon Pipet, estava examinando, ás 9 horas da noite, um buraco feito por larapios na cerca da sua horta, e ao mesmo tempo que averiguava os estragos, não pode deixar de observar um barco dobrando temerariamente o Croce-Point áquella hora.

No dia seguinte ao de uma tempestade, com o resto de agitarão que sempre fica no mar, aquelle itinerario era pouco seguro, a menos que se não saiba de cór todos os passos.

Ás nove horas e meia, no Equerrier, um pescador levando a rede, parou algum tempo para ver entre Colombellee Soufleresse alguma cousa que devia ser um barco, e que se expunha muito ao tempo. Ha ventos perigosos nesse lugar. A rocha Soufleresse é assim chamada porque sopra constantemente os barcos que passam.

Ao levantar da lua, estando a maré cheia, e havendo pleno mar no estreito de Li-Hou, o guarda solitario da ilha de Li-Hou, assustou-se ao ver passar entre a lua e elle uma longa forma negra. Esta forma ia resvalando lentamente por cima das especies de paredes que formam os bancos da rocha. O guarda de Li-Hou pensou ver a Dama Negra.

A Dama Branca habita o Tau de Pez d’Amont, a Dama Cinzenta habita o Tau de Pez d’Aval, a Dama Vermelha habita a Lilleuse ao norte do Banc-Marquis, e a Dama Negra habita o Grand-Etacré ao este de Li-Houmet. Ao clarão da lua todas essas damas sahem e encontram-se ás vezes.

Rigorosamente essa forma negra podia ser uma vela. As longas fileiras de rochas sobre as quaes parecia que a vela andava podiam com effeito esconder o casco de um barco vogando a traz de si, deixando ver apenas a vela. Mas o guarda perguntou á si proprio que barco ousaria arriscar-se aquellas horas entre Li-Hou e a Pecheresse, e as Angullieres e Lerée Point. E com que fim? Pareceu-lhe mais provavel que fosse a Dama Negra.

Estando a lua já acima da torre de Saint-Pierre du Bois, o sargento de Rocquaine levantou metade da escada da ponte levadiça, e distinguio na foz da bahia, mais perto que a Sambule, um barco á vela que parecia descer do norte a sul.

Existe na costa sul de Guernesey, atraz do Plainmont, no fundo de uma bahia, toda precipicios e muralhas, cortada a pique na onda, um porto singular que um francez residente na ilha desde 1844, talvez o mesmo que escreve agora estas linhas, baptisou com o nome de porto do quarto andar, nome geralmente adoptado hoje. Esse porto que então se chamava a Moie, é uma planura de rocha meio natural, meio talhada, de quarenta pés de altura acima d’agua, e communicando com as vagas por duas grandes pranchas parallelas em plano inclinado. Os barcos, içados á força de braços por correntes e roldanas, sahem ao mar e descem ao longo dessas pranchas que são dous trilhos. Para os homens ha uma escada. Esse porto era então muito frequentado pelos contrabandistas. Sendo pouco praticavel, era lhes commodo.

Pelas onze horas, alguns trapaceiros, talvez os mesmos com quem Clubin contava, estavam com os seus fardos na Moie. Quem trapaceia, espia; elles espiavam. Admiraram-se de ver uma vela desembocando repentinamente além das linhas negras do Cabo Plainmont. O luar estava claro. Os contrabandistas espreitavam a vela, receiando que fosse algum guarda-costa collocar-se de emboscada atraz do grande Hanois, mas a vela passou os Hanois, deixou atraz de si a noroeste a Boue Blondi, e mergulhou-se ao largo nas brumas lividas do horisonte.

Onde diabo vai aquella barca? disseram os contrabandistas?

Na mesma noite, pouco depois de pôr o sol, ouvio-se alguem bater na porta da casa mal assombrada em que morava Gilliatt. Era um rapaz vestido de escuro, com meias amarellas, o que indicava ser sacristão. A casa estava fechada, porta e postigos. Uma velha pescadora de fructas do mar, passeando pelo banco, com uma lanterna na mão, chamou o rapaz, e trocaram-se estas palavras entre elles:

— Que quer você?

— O homem d’aqui.

— Não está em casa.

— Onde está?

— Não sei.

— Virá amanhã?

— Não sei.

— Foi-se embora d’aqui?

— Não sei.

— É que o novo cura da parochia, o reverendo Ebenezer Caudray, queria fazer-lhe uma visita.

— Não sei.

— O reverendo mandou-me saber se o homem estava em casa amanhã de manhã.

— Não sei.